O acontecimento anacrônico em As Horas

POESIA NO CINEMA NARRATIVO

Pretende-se estabelecer uma analogia, por meio deste ensaio, entre a teoria literária clássica – através dos estudos de Aristóteles – e a teoria de roteiro – analisando o filme As Horas – procurando contrapor seus diversos momentos temporais e identificar uma especificidade da linguagem cinematográfica, os momentos de poesia, numa narrativa de cinema menos propensa a eles, pois em geral não foge a linguagem convencional. Para isso usa-se a conceituação de cinema de poesia trabalhada por Luís Buñuel e, posteriormente, por Píer Paolo Pasolini, como um cinema que não é relacionado à literatura ou teatro, um cinema-cinema [1].

Neste processo, pretendo considerar as questões de representação das mulheres nas personagens principais e a questão de gênero, abordada no filme através, principalmente, do livro Mrs. Dalloway de Virginia Wolf que estabelece uma ligação entre os diferentes “presentes”.

ELEMENTOS DA NARRATIVA CLÁSSICA

No filme é possível identificar claramente os elementos que formam a base da tragédia grega, pontuados por Aristóteles em sua obra Poética. Sendo eles: enredo, caracter, pensamento, elocução, música e espetáculo. Os termos destacados também são conceitos trabalhados na Poética.

O enredo é estruturado em três linhas narrativas, aproximando-o de uma epopéia, que se desenvolvem simultaneamente em termos de discurso (como o enunciado narrativo, o significante), articuladas paralelamente na montagem, mas em momentos distintos na diegese – os anos de 1923, 1951 e 2001. Frisando que apenas um dia de cada personagem é abordado.

O filme pode ser considerado uma “tragédia de caracter”, pois o mais relevante dos aspectos é como as personagens Virginia Woolf [2], Laura Brown e Clarissa Vaughan se relacionam com o espaço hodológico a sua volta e seus acontecimentos resultantes. Como tal, tem seus personagens agindo sobre o regime da mímesis (imitação da ação humana) que inclui a verossimilhança e necessidade, uma das bases do cinema clássico narrativo. Não fazendo estes, nenhuma ação completamente alheia de uma proposta lógica e que esteja fora do princípio da causalidade, onde tudo tem uma causa e uma consequência bem definidas.

O , que seria o conflito principal do filme, pode ser considerado a relação de três gerações de mulheres com o livro Mrs. Dalloway em busca de uma identidade feminina e sua relação com o suicídio, refletido nas tentativas da Sra. Woolf, na fuga de Laura Brown e na personalidade de Clarissa.

A mudança que acarreta o desenlace (momento de virada) não é a mesma nas diferentes situações. No caso de Virginia, uma visita de sua irmã é o estopim para uma mudança interior que a faz querer se afastar da “vida que não quer viver” [3]. Já Laura Brown, grávida de alguns meses, após perder seu referencial, representado na figura de sua vizinha com quem mantém laços bem estreitos, tenta se matar. Não conseguindo, volta para sua vida doméstica, mas não por muito tempo. No caso de Clarissa, dependente de uma relação desgastada com seu amigo Richard, se modifica muito após a morte dele, fazendo com que reavalie sua vida. O filme se fecha através do livro, quando ocorre o reconhecimento (sabedoria adquirida de um fato) entre os três pólos, o da escritora, o da leitora e o da personificação.

Em termos de como é feita a narração, em sua maioria o filme costuma usar linguagem verbal e não verbal dos atores (elocução), não possuindo uma voz narrativa própria (pensamento), tomando para si a perspectiva de um narrador-observador que não conhece o interior dos personagens da história, dependendo o espectador de outras instâncias comunicativas (falas, ações e gestos) para tomar consciência da trama.

Os outros dois elementos – música e espetáculo – são expressos mais no que diz respeito à forma do filme em quesitos de fotografia, direção de arte e direção de som. Estes não são tão relevantes no que diz respeito a compreender a história, indo a favor da teoria clássica onde estes recursos teriam menor importância, servindo para trazer maior beleza à obra.

MOMENTOS DA HISTÓRIA

Existem três unidades espaço-temporais bem demarcadas dentro do filme. O período de produção de Mrs. Dalloway pela escritora Virginia Wolf, na cidade de Richmond em 1923, a gravidez de Laura Brown nos Estados Unidos do pós-guerra e a festa de comemoração de Richard sendo organizada por Clarissa Vaughan em 2001.

Analisando cronologicamente, a primeira parte imprime as dificuldades de afirmação da escritora pelo seu comportamento instável e suicida. Também, nesse período, o seu desejo de trabalhar e de ser reconhecida era mal visto, pela “mulher [existir] na cultura patriarcal [apenas] como significante do outro masculino” [4]. Os tumultos e vazio interno dela são refletidos na cenografia da casa, sempre escura, sóbria e sem viço; nas suas roupas compridas e fechadas e sua pouca expressividade. O sujeito reflete o interior no exterior: uma subjetividade exteriorizada, o que contradiz o herói(ina) épico, que é estável em personalidade e tem os acontecimentos externos como ponto de partida para suas emoções, não divagando no mundo interno.

Nos anos 50 dos EUA, as estampas dos papéis de parede fazem parte da personagem. Mostram a pluralidade de sentimentos dentro dela que não se manifestam, ficam grudados nos cantos. E mesmo dando um tom de alegria a casa, esta é falsa, estando escondida a verdadeira imagem sob a aparência de harmonia. No típico jantar de aniversário, a família sozinha comemora. Num determinado momento o marido de Laura fala sobre como a conheceu antes da guerra – sozinha e triste – e o “dever” de fazê-la feliz quando voltasse, o que evidencia que “o olhar masculino determinante projeta sua fantasia [da família] na figura feminina, estilizada [na esposa cuidadosa] de acordo com essa fantasia” [5]. Isso não a fez feliz, tanto que ela foge desse modelo, exemplo de fuga da verossimilhança (no caso, a mulher submissa) e perda de momentos da linha narrativa (grande elipse na vida de Laura) nunca retomados.

A representação da época contemporânea é marcada pelo contraste das cores sobre o cinza da cidade. Clarissa por ser uma mulher “confiante, todos pensam que está bem… mas ela não está” [6]. Sofre interiormente com a possibilidade da morte do amigo Richard, com quem já teve um relacionamento amoroso. Essa dependência a impede de se manifestar em sua plenitude, que só é possível após a morte deste e a reavaliação de sua vida, inclusive com relação a sua filha, não muito próxima.

Essas três histórias são postas em paralelo no filme, dando a ideia de que são simultâneas. É sempre a figura feminina que cria o acontecimento, indo em oposição ao “papel do homem como o ativo no sentido de fazer avançar a história” e a representação do cinema hegemônico (MULVEY, op. cit., p. 445).

IMAGEM E POESIA

Para criar este distanciamento entre filme narrativo e não-narrativo eu usei conceitos explorados por Buñuel e Pasolini em seus filmes e textos. Sendo modelo clássico narrativo aquele “onde prospera o cinema, que se limita a imitar o romance ou o teatro” e não explorar a “noite do inconsciente [onde] o tempo e espaço tornam-se flexíveis, prestando-se a reduções e distenções voluntárias” [7]. De alguma forma, o filme se aproxima desse modelo por suas anacronias, discordâncias entre a ordem do discurso e a ordem da história, e acronias, perda de referencial temporal com o entrelaçar das histórias (GENETTE, 1995). Embora estes recursos não tenham sido usados com tal intensidade que chegue a dificultar a compreensão.

Pasolini em um de seus estudos que procuravam relacionar o cinema com termos e ideias da literatura, mas explorando suas especificidades, diz que “o cinema […] é poderosamente metafórico” [8], no sentido de exprimir sentimentos por imagens, como no momento em que Laura, no motel, olha para o lado e vê o bolo em sua casa, como uma possível metáfora de sua família. Esta imagem dá sentidos que dificilmente seriam passados por palavras. Eis aí um momento de poesia.

Também é dito pelo cineasta italiano que por si “a imagem cinematográfica não se presta a abstrações, visto só poder representar uma pessoa pelos seus sinais exteriores” [9]. Seleciona-se uma no caos infinito de imagens possíveis, que são apenas signos icônicos, e a estiliza, revelando assim a dupla natureza da imagem, uma delas diz respeito à comunicabilidade de um sentido (plano sintagmático) e a outra a ambiguidade de vários sentidos (plano paradigmático). Pode-se indicar a cena de Laura sendo “afogada” no quarto. O que o espectador vê não é o que acontece, é uma representação das sensações da personagem. Isso cria um duplo acontecimento, “o que se vê” não é “o que se passa”.

Mesmo tratando-se de um filme com estrutura narrativa clássica, portanto, é possível identificar alguns momentos de poesia dentro dele, como uma fuga da narrativa tradicional explorando as possibilidades exclusivas ao cinema.

BIBLIOGRAFIA

ARISTOTELES. Poética. Ana Maria Valente (Trad.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. 123 p.

BUÑUEL, Luís. Cinema: instrumento de poesia. Teresa Machado (Trad.) In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema (org.). 4 ed. São Paulo: Edições Graal, 2008. p. 333-337.

GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Fernando Cabral Martins (Trad.). 3 ed. Lisboa: VEGA, 1995. 276 p.

MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. João Luis Vieira (Trad.) In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema (org.). 4 ed. São Paulo: Edições Graal, 2008. p. 437-456.

SAVERNINI, Érika. O cinema de poesia segundo Píer Paolo Pasolini In: Índices de um cinema de poesia: Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 33-57.

FILMOGRAFIA

AS HORAS. Direção de Stephen Daldry. Paramount Pictures, 2002. 1 DVD (114 min.), son., color., legendado. Original americano: The Hours.


[1] Expressão usada pelos cineastas da Nouvelle Vague que também sugeriam esta especificidade no cinema, mesmo adaptando algumas obras escritas do movimento Nouveau Roman.

[2] Escritora do começo do século XX que usou muito monólogo interior em seus livros, havendo no filme a menção ao seu livro Mrs. Dalloway.

[3] Citação do filme.

[4] MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. p. 438.

[5] Ibidem. p. 444.

[6] Citação do livro Mrs. Dalloway no filme, feita por Laura a Kitty, o que causa um desconforto na vizinha e ela fala sobre o tumor no útero.

[7] BUÑUEL, Luís. Cinema: instrumento de poesia.

[8] SAVERNINI, Érika. O cinema de poesia segundo Píer Paolo Pasolini.

[9] Ibidem. p. 35.

Henrique Dias Soares de Barros é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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