*Por Gabriel Ribeiro Alfredo
Em cursos de audiovisual, nas universidades ou em escolas de cinema é comum que sejam ministradas aulas de história do cinema. Além de sua importância para a formação de um repertório para o estudante, são nessas aulas, ao vermos o surgimento da linguagem clássica do cinema norte-americano em seu período mudo e das vanguardas Européias, que percebemos o poder das imagens em movimento sobre nossos sentimentos. Por esse motivo, durante este momento na história, o cinema começou a ser pensado como uma Arte. Michel Hazanavicius é um provável estudante de cinema que se apaixonou pelos filmes produzidos neste período e que decidiu fazer um filme que os homenageasse e reafirmasse a sua qualidade, tornando-o “mudo” assim como eles. Não por menos, decidiu chama-lo de “O Artista”.
Hazanavicius é francês e grande parte das empresas produtoras do filme, além de seu principal ator, também são. Entretanto, o filme não deixa de ser norte-americano. Filmado nos Estados Unidos e com alguns atores consagrados de Hollywood. Portanto, pode entrar na disputa por diversos prêmios promovidos pelos sindicatos e a academia de cinema Norte Americanos, se saindo vitorioso em muitos. Mas isso vai ser comentado mais a frente. O interessante é perceber que há uma conexão neste filme entre o cinema francês e o americano (as duas nações tidas como as criadoras da sétima arte) que conseguiu ultrapassar a admiração mutua e levou à prática. A geração da Nouvelle Vague Francesa é assumidamente admiradora do cinema clássico Americano dos anos 50 e, da mesma forma, a geração de autores do cinema americano dos anos 70 foi inspirada por Godard e Truffaut. Agora, porém, vemos uma espécie de co-produção entre estes dois países, com uma história tipicamente americana somada a um requinte e ousadia tipicamente franceses.
“O Artista” do título do filme, em seu significado mais direto, é o personagem George Valentin, interpretado pelo vencedor do Oscar de melhor Ator, Jean Dujardin. Valentin é um astro na indústria cinematográfica do fim dos anos 20, ele faz parte de um sistema que surgiu neste período e que existe até hoje no cinema norte-americano que é o Star System, onde atores e atrizes com grande reconhecimento pelo público dominam as telas se revezando em diversos filmes feitos sob medida para suas interpretações. Naquele período o poder das Estrelas era tão grande que o personagem de Dujardin sempre consegue o que quer nas produções em que participa, usando seu charme e carisma para conquistar a todos, inclusive a figura do Produtor Al Zimmer, vivida pelo ator John Goodman. Sabe-se que na Hollywood clássica os produtores eram tidos como os verdadeiros “donos” dos filmes. Juntamente com Valentin, a história acompanha Peppy Miller, interpretada por Bérénice Bejo, uma jovem sonhadora que admira astros como Valentin e que deseja se tornar um deles. O destino de ambos acaba se cruzando como deve ser e se desenvolve então um romance que não se concretiza, mas que monta uma relação de amor e amizade que não perde em nada para as contadas em grandes clássicos.
A trama se desenvolve com enredos que já apareceram constantemente. Os mais evidentes são dos filmes Nasce uma Estrela (A Star is Born, 1954) e Cantando na Chuva (Singin’ in The Rain, 1952). Peppy, assim como a personagem Vicki Lester, tem o sonho de se tornar uma estrela e, através de seu esforço e com certa ajuda de Valentin, acaba alcançando seu desejo, porém se vendo no drama de assumir o lugar daquele que a ajudou a subir. Enquanto isso Valentin, assim como Don Lockwood, começa a ter problemas quando se recusa a admitir o sucesso do cinema falado, que para ele era (assim como foi para muitos) o fim do cinema como arte. A concepção dele, como artista, seria a de resistir, fazendo então seu próprio grande filme, que obviamente não dará certo, levando-o a entrar em decadência, que só poderá ser vencida com o fim de seu orgulho. O desfecho é previsível e muito parecido aos dos filmes clássicos. O diferencial está, provavelmente, na forma como os problemas são apresentados e não em sua resolução, principalmente se pensarmos que “O Artista” é um filme mudo e construído em sua mis-en-scène assim como eram os filmes da década de 20 e 30. Está aí talvez a maior ousadia de Hazanavicius e o fato de ele ter conseguido alcançar um resultado de altíssima qualidade foi o que o levou a ganhar o Oscar de melhor diretor neste ano.
Dentre os diversos trechos interessantes do filme, um que chama a atenção é quando a condição de filme mudo é desafiada pelo diretor ao colocar Valentin em um pesadelo após ter recebido a noticia de que os filmes passariam a ser falados e que tudo passa ter som. Dujardin faz um ótimo trabalho na cena, através da expressão corporal, ao mostrar o desespero de estar em um camarim onde os sons de um copo e dos objetos ao redor se fazem ouvir, assim como a ambiência da parte externa do estúdio. A câmera se aproxima do rosto de Valentin que grita para o próprio reflexo em um espelho, sem obter resultado, ou seja, o mundo tem som, mas ele próprio não tem mais como se expressar ou o que dizer: era a premonição de sua vida como ator. Ele sai do camarim e se vê em um ambiente repleto de som, e observa uma Colombina rindo para ele. Com uma montagem que durante todo o filme se faz impecável, observamos a reação do rosto de Dujardin ao observar aquela Colombina, que antes era uma, ir se tornando várias. Rindo, não mais para ele e sim dele. É a imagem do crescimento do cinema falado, rindo de quem antes riu dele e que agora tinha ficado para trás. Por fim, uma pena desce devagar do céu e ao cair no chão faz o barulho de uma explosão. Um primeiro plano do rosto de desespero de Valentin é então passado rapidamente para de um conjunto, dele com a mulher na cama, suando após ter acordado do pesadelo. Ele se levanta e vai para fora do quarto tendo seu caminho desenhado por um jogo de luz e sombra em profundidade de campo. Essa crise vivida por Valentin é um momento dramático que pode ser analisado e metaforizado de diversas formas, tanto que é um tipo de drama muito recorrente no cinema, como a crise de identidade ou o medo da perda da voz, da expressão. Dessa forma, podemos usar esta cena para tentar entender como um filme mudo, francês e em preto e branco conseguiu ganhar o Oscar de melhor filme de 2012, deixando para trás filmes bem atuais como, por exemplo, Os Descendentes de Alexander Payne.
Não é novidade, para quem se interessa pelo assunto, que a indústria americana de cinema passa por um momento de altos e baixos. Juntamente com as recorrentes crises econômicas que o país enfrenta, Hollywood vem somando desde 2008 uma série de problemas que vão desde greve de sindicatos, bilheterias insignificantes até um sério problema de criatividade, se comparado ao que é produzido para outros meios como a Televisão e a internet. Isso é o que a crítica dos Estados Unidos fala, e que nós tendemos a acreditar, levando em consideração que desde o fim dos anos 80 não surgem clássicos contemporâneos em Hollywood, tendo talvez como exceção o Titanic de James Cameron. A própria cerimônia do Oscar foi um grande evento saudosista, onde o tema que parece ter sido escolhido era o “Vamos para o Cinema”, com direito aos Muppets e Cirque du Solei. O que fica subentendido é uma tentativa de valorização do cinema que é pensado, projetado em sala escura, que tem uma mágica que muitos psicanalistas já tentaram desvendar, é uma busca por um cinema que emociona, diverte, entretém e de uma maneira inocente, sem excessos. O cinema contemporâneo de Hollywood é como Valentim em seu camarim: está sofrendo com o surgimento de novas tecnologias, no caso não com o som, mas com a ficção seriada na televisão e a difusão de filmes pela internet.
A confirmação é a vitória de O Artista em diversas premiações norte-americanas promovidas no começo de 2012, culminando no Oscar, que talvez seja a principal delas. Pelo ponto de vista crítico é, ao mesmo tempo, boa e ruim essa iniciativa promovida pela academia, caso ela realmente exista. Bom porque fica expressa a vontade de melhora na qualidade dos filmes indicados a premiação. Se olharmos na última década os filmes que foram premiados com melhor filme, tirando o Senhor dos Anéis no início dos anos 2000, nenhum filme que seja realmente marcante ganhou a estatueta de melhor filme; chegando ao ponto de um filme independente de baixo orçamento e qualidade questionável e de clichês do mercado inglês acabarem levando, como é o caso de Guerra ao Terror, A Rainha, O Discurso do Rei e Slumdog Millionaire. Ruim, porque todo um grupo de filmes de alta qualidade e que são produzidos nos Estados Unidos, vão continuar a serem excluídos pela academia, por motivos como o fato de não fazerem parte da indústria ou por trazerem temas polêmicos, etc. Este ano ficou difícil de entender por que filmes como Melancholia de Lars Von Trier, ou o drama Shame do britânico Steve Mcqueen ficaram de fora da disputa pela estatueta.
Ao contrario de Truffaut em “A Noite Americana”, Hazanavicius conseguiu conquistar a Academia e levar o prêmio de melhor diretor e “O Artista” de melhor filme, ambos de forma merecida. Porém, a pergunta que fica é: o que vai ser feito daqui pra frente? Será que, assim como ele, Scorcese e Woddy Allen, os filmes terão de falar sobre o passado para poder ganhar reconhecimento no presente? Espero que não.
*Gabriel Ribeiro Alfredo é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos e foi editor geral da Revista Universitária do Audiovisual.