Álvaro André Zeini Cruz*
Quando David Yates assumiu Harry Potter em A Ordem da Fênix, quinto e mais delicado capítulo da série de J.K. Rowling, considerando os esforços de adaptação, os desafios eram muitos: tratava-se não só da mais extensa obra da saga, como havia também a necessidade de se transpor uma trama estruturada basicamente na preparação dos eventos e alianças entre personagens importantes para os títulos posteriores. Como resultado, um filme cuja aceleração, colocada com fim de estabelecer um clima de tensão constante e guerra iminente – mas também para tapar buracos das várias sub-tramas reduzidas ou limadas – sobrepunha e esvaziava personagens, inclusos o trio protagonista.
Já em O Enigma do Príncipe, título seguinte, Yates encontrou equilíbrio ao propor um aumento gradual da tonalidade sombria, presente desde O Prisioneiro de Azkaban, ao passo que os últimos resquícios de um maravilhoso mundo pueril se esvaíam, até se extinguir por completo ao atingir o clímax. Assim, ao final do sexto filme, já estávamos imersos na atmosfera dominante neste primeiro segmento de As Relíquias da Morte.
A iniciativa claramente comercial dos produtores em dividir o capítulo derradeiro em duas partes, escolha que, a princípio parecia duvidosa, foi revertida pelo diretor em benefício próprio. Aproveitando-se do respiro ganho pela segmentação da obra (e pela desculpa de que tudo era em prol de uma adaptação mais fiel), Yates injeta introspecção em Potter: dilata seqüências; aplica enorme força não apenas aos diálogos, mas também aos silêncios; retrata insistentemente o isolamento de Harry (Daniel Radcliffe), Rony (Rupert Grint) e Hermione (Emma Watson) durante a jornada por um mundo que, outrora mágico, agora se demonstra hostil e duplamente massacrante: seja pelas paisagens grandiosas e desérticas, ou pelo plongée altíssimo em que os personagens são constantemente enquadrados quando caminham por estas. Em suma, um mundo em vias do apocalipse.
A somatória dessa devoção aos protagonistas, ao cuidado dispensado aos diálogos-ações e ao tempo estendido que as coisas têm nesse sétimo filme (algo que para parte do público pode ser frustrante ou aborrecido), faz com que Yates mergulhe no tema, na essência da obra de J.K. Rowling, como somente Alfonso Cuarón fizera antes. Não à toa, ele cria a cena mais sublime e tocante de toda a saga (e que, ironicamente, não está no livro): na tentativa de animar Hermione e a si próprio, Harry tira a amiga para dançar ao som de Nick Cave (O Children). Ele brinca, os dois rodopiam, riem, trocam olhares, se tocam. Trata-se de uma cena breve, mas é o suficiente para que a jornada do herói e os perigos do mundo sejam suspensos, ainda que por esse intante único. Além dos corpos, apenas angústias, medos, frustrações, inseguranças, desejos, privações, carências, novos olhares e a canção sobre crianças que lutam contra seus temores. E David Yates aprofunda a relação entre Harry e Hermione como jamais qualquer um dos livros fizera. Mais do que isso, fala de adolescência e das dores dessa transição entre a infância e a idade adulta com desconcertante sensibilidade e precisão, sintoma este que afeta todo o filme e, justamente destaca As Relíquias da Morte: Parte 1, assim como O Prisioneiro de Azkaban, dos demais títulos de uma franquia que já apresentava surpreendente estabilidade. Numa série que aborda tão bem o crescer, pode-se enfim falar em maturidade.
*Álvaro André Zeini Cruz é graduado em Cinema e Vídeo pela FAP/CINETVPR e pós-grandundo pela FAAP e UNICAMP. É colaborador do site Descubra Curitiba, do jornal Curitiba in English, além de manter o blog Meia Entrada.