Olhando Kieslowski e Hitchcock: Questões do olhar e da representação no cinema

Gustavo Aguiar*

O prazer proporcionado pelo cinema advém de questões relativas ao olhar. O espectador de cinema, que se posiciona como um voyeur, espreitando da sala escura as vidas privadas das personagens, é, obviamente, o ponto central da discussão deste prazer visual. Tomando como base o texto “Prazer visual e cinema narrativo”, de Laura Mulvey, e o capítulo “A janela do voyeur” do livro O sujeito na tela, de Arlindo Machado, proponho discutir as questões levantadas e explicadas por ambos, tentando compreendê-las dentro do contexto do episódio VI – o qual ainda seria reeditado e transformado no longa-metragem Não Amarás (1988) – da série televisiva de médias-metragens Decálogo (1988), de Krzysztof Kieslowski, e do filme Um Corpo que Cai (1958), de Alfred Hitchcock. A análise, todavia, recaíra de forma mais intensa no episódio VI do Decálogo, tendo Um Corpo que Cai como aparelho comparativo para a discussão das questões propostas (A outra versão do episódio VI, o longa-metragem Não Amarás, não será tão abordada, salvo alguns pontos, pois a questão do olhar não é trabalhada de forma tão analítica.).

A forma como o espectador se relaciona com as imagens na tela se pauta por dois elementos que se complementam: a escopofilia e o narcisismo.  A escopofilia compreende o prazer em olhar para um objeto, sem que ele saiba que está sendo visto; é o prazer de se estar sentado na poltrona de cinema, observando a vida dos outros, sem que eles percebam que estão sendo espreitados. Mas não é um ponto assim tão simples. A escopofilia está também relacionada ao olhar controlador de um protagonista masculino, que assume um papel ativo dentro da narrativa, direcionando os rumos dela e tendo ainda uma figura feminina como contraponto, a qual será o lado passivo – o outro objetificado para o qual o sujeito ativo estará olhando. Segundo Laura Mulvey, todo este processo do olhar está ligado a uma sociedade patriarcal, que incutiu no cinema códigos de representação que regem a forma como as figuras masculina e feminina são abordadas; esse modelo de representação, para a teórica, é dominante no cinema comercial hollywoodiano. Entretanto, o prazer visual do cinema não está ligado somente à escopofilia; deve haver um contraponto a ela, função assumida pelo narcisismo. O narcisismo está envolto em inúmeras questões psicanalíticas complexas, mas, de forma simplificada, representa o fato de que o espectador necessita ser olhado, percebido, para que o seu prazer visual seja completo; porém, este “sentir-se olhado” não é necessariamente o desejo que o espectador tem de que o olhar de alguma personagem seja direcionado a ele – mesmo porque isto quebraria as regras da obliqüidade e do distanciamento exigido entre público e tela –, mas quer dizer que o espectador quer se identificar com alguém. Este processo de identificação (advindo da psicanálise lacaniana) se dá entre o espectador e o protagonista masculino, sendo que o primeiro se reconhece ao ver a imagem do segundo.

Episódio VI do Decálogo

Explicados os importantes termos elencados por Laura Mulvey, agora passarei à análise do episódio VI do Decálogo, tentando inserir a discussão da teórica ao filme, ligando alguns aspectos que estão de acordo com os seus estudos e outros que, de alguma forma, podem servir para desconstruí-los. O episódio em questão trata de um garoto, Tomek, que, apaixonado por uma mulher mais velha, Magda, começa a espioná-la, exaltando-a como a sua imagem do ideal – ambos vivem no mesmo complexo de apartamentos, o que possibilita ao garoto vigiá-la.

A primeira imagem que aparece aos olhos do espectador é um close de Magda, quando ela vai ao correio onde Tomek trabalha, para pegar o pagamento referente a uma notificação que lhe foi enviada – posteriormente, ficamos sabendo que foi o garoto quem enviou a falsa notificação, a fim de ver a mulher pessoalmente em seu local de trabalho. Esta cena é seguida de uma montagem paralela com Magda sendo observada – não vemos quem a observa, mas podemos depreender este fato, já que apenas conseguimos ver a janela do apartamento da mulher e o que lá dentro ocorre de forma distanciada – e Tomek roubando uma luneta; no entanto, aqui Kieslowski quebra a regra do paralelismo no tipo de montagem citado, pois seria impossível que o garoto já a estivesse observando e, simultaneamente, roubando a luneta.

Na próxima cena, Tomek já é mostrado observando a mulher com sua luneta. Ele faz aproximações com a lente do instrumento, movimenta-o, e os movimentos de câmera – panorâmicas e zooms in e out – seguem representando a forma como o garoto está observando Magda. Dessa forma, o espectador passa a se identificar com o garoto, pois vê através de seus olhos – ou do aparelho que simula sua visão – e também ouve apenas o que ele consegue ouvir – isto é, a câmera sempre permanece no ângulo de visão que Tomek tem em seu quarto, sempre vemos o quarto de Magda à distância; o garoto, então, ao observá-la falando ao telefone, consegue apenas vê-la, mas não a ouve; se ouvíssemos o som advindo do apartamento dela, esses elementos sonoros se configurariam como extradiegéticos, mas não é este o conceito de Kieslowski. Através desta primeira cena de observação já se pode sintetizar o prazer visual do cinema: metaforizando Tomek como o espectador que está sentado na sala de cinema, espreitando a vida de um alguém que não sabe estar sendo observado, evidencia-se o prazer escopofólico do voyeur (Tomek/espectador). Já o fato de o garoto observar a mulher mostra que ele representa o protagonista ativo, que dá os rumos à narrativa, podendo o espectador se guiar pelo olhar de Tomek, assim como se reconhecer na imagem dele – o processo de identificação no qual o narcisismo está compreendido. Esta análise precípua é apenas uma tentativa de exemplificar o prazer visual do cinema por meio das relações dos personagens, já que Kieslowski complica a leitura destes códigos durante a narrativa, sendo impossível mantê-los unívocos até o final.

Tomek observa Magda de seu apartamento. O prazer escopofílico está presente no ato de observá-la, sem que ela tenha conhecimento de que esteja sendo observada.

Magda é, para Tomek, uma visão idealizada. Ele, como protagonista, observa-a como um objeto erótico. Mas, em certo momento, ele resolve começar a influir na vida dela, ligando para o seu telefone – aqui a mulher ainda não sabe que está sendo espionada, então o silêncio de Tomek ao telefone não denuncia o fato de ele a observar; ela, então, ainda não pode ser considerada como um objeto exibicionista. Passando novamente ao campo das analogias, se considerarmos Tomek como o espectador e o apartamento de Magda – e sua vida também – como a tela de cinema, podemos dizer que ele está começando a pedir à personagem na tela que note a sua presença, ele quer ser olhado de volta. Quando Magda volta ao correio, reclamando da segunda falsa notificação que recebeu em seu apartamento, o garoto resolve revelar a sua posição de voyeur. E é a partir deste momento que ela, ao saber que está sendo observada, passa a ser um objeto erótico dotado de exibicionismo. O prazer escopofílico do protagonista termina aqui, pois seu posicionamento de espreitador é descoberto. A mulher passa, agora, a tomar gradativamente as rédeas da narrativa, primeiramente brincando com Tomek e manipulando-o, para depois fazer com que a câmera a siga, tornando-se uma espécie de segunda protagonista – neste momento, Kieslowski inicia o processo de desconstrução da impossibilidade, conforme afirma Laura Mulvey, de a mulher poder guiar a narrativa através do seu olhar.

Continuando a explicar os aspectos narrativos do filme, após saber que está sendo espionada, Magda pede a Tomek, através de gestos, que ligue para ela; durante a chamada telefônica, ela pergunta se ele a está espionando e se percebeu que ela mudou a cama de posição; o garoto afirma que sim e ela diz a ele que aproveite. Logo depois, vemos um amante chegar ao apartamento dela e eles começam a fazer sexo; ela deixa todas as luzes acesas, para que o garoto possa ver o que acontece. No entanto, o sexo é interrompido, quando ela conta ao amante que estão sendo observados. Ele olha na direção de Tomek, sai apressado do apartamento e vai ao pátio do complexo de edifícios. Exclama, gritando, que o garoto desça até lá embaixo, e os dois acabam se encontrando. O homem esmurra Tomek, que fica com o nariz todo ensangüentado.

No dia seguinte, o garoto vai entregar leite – em um ponto anterior da narrativa, Tomek está em uma mercearia e vê Magda reclamando do atraso na entrega de seu leite; a fim de aproximar-se dela, acaba se empregando como entregador de leite – no apartamento da mulher e ela acaba perguntando a ele o motivo de ele a espionar. O garoto diz que a ama. Ela, então, pergunta se ele não a quer beijar ou fazer amor com ela. Tomek afirma que não quer nada, mas esta asserção acaba sendo bastante explicativa. Esse nada significa que ele não a quer possuir, mas sim, continuar a observá-la como seu objeto erótico. Magda é o seu fetiche, a materialização do que consiste, para ele, ser o ideal. No entanto, ele não consegue progredir do fetiche para a obtenção do verdadeiro objeto; isto é, a imagem do fetiche já está tão cristalizada para Tomek, que ele teme chegar perto dela. Após toda a conversa, o garoto acaba criando coragem e resolve chamar a mulher para ir com ele a um café. Ela aceita e, posteriormente, vemos Tomek correndo entusiasticamente pelo pátio do conglomerado de prédios de um ponto de vista distanciado do dele – é como se Magda o estivesse observando de seu apartamento –, sendo a primeira vez em que a câmera não o segue de forma tão próxima.

Após irem ao café e Magda expor toda a sua desilusão frente ao amor, ambos acabam indo ao apartamento dela e, pela primeira vez, a câmera adentra no apartamento da mulher, aquele lugar antes tido como o distanciado local habitado pela imagem da mulher perfeita. No entanto, neste momento há uma confusão, senão reformulação, dos olhares presentes na cena. A princípio, vemos Tomek e Magda dentro do apartamento dela; neste momento, como já dito, a câmera adentra o lar da mulher pela primeira vez, mas o que é bastante regular, haja vista que a câmera estava seguindo o garoto o tempo inteiro. O aspecto complicador reside no fato de que a senhora com que o garoto mora passa a observar com a luneta, do quarto de Tomek, o que acontece entre ambos no apartamento da mulher. Dessa forma, ao mesmo tempo em que a câmera permanece junto do garoto na casa de Magda – fato recorrente até aqui –, ela também o abandona e assume o ponto de vista da senhora. Tomek, o protagonista, passa de espreitador a observado. O instrumento que antes promovia a sua identificação com o espectador – por meio da luneta o garoto se tornava o ponto de identificação do espectador, já que este segundo olhava através dos olhos daquele –, já não é mais controlado por ele. Todavia, ainda não podemos afirmar que a escolha de Kieslowski em mostrar o ponto de vista da senhora quebre definitivamente o processo de identificação firmado entre o espectador e Tomek; o período de observação da senhora é demasiado pequeno, para conseguir interromper uma estrutura engendrada durante o decorrer de todo o filme até aqui – e, além disso, não há tempo para que seja originada uma relação do espectador com a senhora, não há tempo para que o processo de identificação se cristalize. Esta cena marca o ponto de transmutação da narrativa. Todas as relações de olhares e de identificação espectador/personagem serão modificadas a partir desse momento de transição. Mas esta é uma questão que será aprofundada mais abaixo.

Ainda na cena do apartamento de Magda, ela se insinua para o rapaz, fazendo com que ele a toque. Tomek paulatinamente vai passando suas mãos pelas coxas da mulher, porém, sua ansiedade perante a possibilidade de possuir seu objeto erótico o impede de prosseguir, e ele acaba tendo uma ejaculação precoce. Ele não pode/consegue possuí-la. Aqui podemos inserir mais um importante ponto da teoria de Laura Mulvey envolvendo a mulher: a castração.

O olhar, então, agradável na forma, pode ser ameaçador no conteúdo, e é a mulher, enquanto representação/imagem, que cristaliza este paradoxo.**

A castração está ligada ao fato de o homem perceber a ameaça e o perigo que a mulher pode lhe causar, devido à ausência real de pênis desta segunda. Simplificando, o homem se depara com a mulher e percebe o diferente, um gênero distinto do seu; ele, então, realiza que é verdadeira a possibilidade de um ser sem pênis, tornando-se apreensivo perante essa ausência e temendo que ele mesmo possa ser castrado. Laura Mulvey afirma que há duas formas de o inconsciente masculino conseguir fugir à castração: 1) tentando desmistificar todo o mistério no qual a imagem da mulher está envolta, mas contrabalançando essa tentativa através da “desvalorização, punição ou redenção do objeto culpado” ***; ou 2) criando um objeto fetiche ou transformando a mulher objeto ela própria em um fetiche, a fim de substituir a imagem ameaçadora da mulher, tranqüilizando-a, sendo que este processo resultaria em uma negação da castração.

Mas o inconsciente de Tomek consegue fugir à castração? A princípio, ele transforma a mulher que acarreta nele a ameaça da castração em um fetiche; a imagem que ele tem dela não é realista, mas totalmente idealizada. A Magda que vemos através do olhar do garoto metaforiza a perfeição; atrelando-a a uma imagem tranqüilizadora, ele mascara a faceta nociva dela. Esta é a primeira tentativa inconsciente de Tomek frente ao perigo da castração. Mas podemos pensar que sua ida ao apartamento de Magda simbolize o passo segundo de sua tentativa de fuga: conhecendo o local onde o objeto de seu olhar fixo habita, o garoto tem um contato com a individualidade da mulher, com suas especificidades; ele passa a conhecê-la, a tentar desvendar o lugar onde ela vive, e aí ele empreende o processo de desmistificação da figura feminina – o que não significa que ele terá sucesso completo. O momento em que Magda se aproxima de Tomek e faz com que o garoto a toque nas coxas, representa o terceiro passo inconsciente dele a fim de desmistificá-la. Acariciando-a, ele fomentará ainda mais a tentativa de desnudar todos os seus segredos, sendo que este momento simboliza uma busca mais profunda do desconstruir da figura ameaçadora de Magda. Mas o garoto falha, e a castração o vence. A ejaculação precoce que ele tem é a prova metaforizada de sua derrota – no entanto, não é uma derrota total, já que, posteriormente, o garoto desvalorizará Magda, alcançando parcialmente a vitória.

Magda, após a ejaculação de Tomek, afirma de forma cética que aquilo é o amor. O garoto, frustrado, foge do apartamento da mulher e corre de volta para sua casa. Agora a reviravolta na questão dos olhares enfim se cristaliza. A câmera mostra o garoto no pátio do complexo de prédios novamente de um ponto de vista de alguém que observa de uma janela, ao alto; no entanto, neste momento, a presença de Magda é evidenciada, e percebemos que é ela quem o observa. Ela percebe que cometeu um erro ao tratá-lo daquela forma tão ríspida e, portanto, tenta entrar em contato com ele através de sinais e de escritos em papéis – os quais ela mostra pela janela. Tomek fecha a cortina de seu quarto e não mais a observa. A mulher, que já estava acostumada a ser observada, sente falta do olhar fixo do garoto direcionado a ela. Frente a esta ausência, ela pega um par de binóculos e lança o seu olhar – agora o olhar está sendo redefinido, passando a ser pautado pelo ponto de vista de Magda – ao apartamento do garoto, evidenciando o ápice de seu exibicionismo – isto é, o fato de ela querer saber, de qualquer forma, se um olhar está sendo a ela direcionado, revela explicitamente o seu exibicionismo.

Quando Tomek chega ao seu apartamento, após fugir do de Magda, a câmera ainda o acompanha por algum tempo – há uma montagem paralela entre as ações do garoto em seu apartamento e da mulher tentando se comunicar com ele. Tomek, após a desilusão com Magda, após tentar possuir o seu objeto erótico e falhar, decide se suicidar. A cena da tentativa de suicídio é a última em que a câmera segue Tomek; deste momento em diante, o olhar da câmera passa a ser controlado pela mulher. Aqui ocorre um rompimento com a teorização de Laura Mulvey. Para a teórica, a estrutura do cinema dominante definia a posição da mulher na narrativa sempre como o objeto passivo da situação, como o objeto a ser olhado, e que isso acontecia, já que ela era a única que conseguia suportar o peso da objetificação sexual. Todavia, Kieslowski empreende uma importante mudança, pois Magda assume a função de espreitadora no lugar do garoto – uma espécie de personagem que se transforma em protagonista feminina –, passando a persegui-lo, a querer saber se ele já voltou do hospital – já que ele foi internado após a tentativa de suicídio. Tomek vira a sua obsessão e, desta forma, as posições se invertem. Magda é agora a dona do olhar, ela passa a ser o ativo da narrativa, conduzindo-a; o espectador também passa a se identificar com o drama da mulher, começando a estabelecer para com ela um processo de identificação e realmente aceitando-a como protagonista. Além disso, devido à recente obsessão da mulher, o garoto se torna objeto sexual dela; a objetificação sexual da figura masculina torna-se possível, devido à fragilidade e à vulnerabilidade do garoto – os heróis masculinos do cinema hollywoodiano eram corajosos e destemidos, então não suportavam a objetificação –, além de proporcionar também uma mudança no olhar. O que era impossível em um filme clássico fica, agora, palpável; o lugar e a significação da mulher na narrativa são questionados e, enfim, transmutados.

Ao final do filme, Tomek volta ao trabalho – ainda com ataduras nos dois pulsos – e Magda finalmente o encontra – a última cena compreende o reencontro de ambos. Ela vai até a cabine do correio onde ele está e ele apenas diz: “Eu já não espio mais você”. Esse espiar poderia ser trocado pelo verbo amar, já que o espionar dele era tão intenso que se aproximava de uma forma de amor – ele realmente amava Magda, mesmo que ela fosse para ele a imagem idealizada da perfeição, apenas algo inalcançável, intangível. Concomitantemente, também podemos considerar que esta frase simbolize a destruição do fetiche de Tomek e a sua parcial vitória frente à ameaça da castração; parcial, já que ele consegue desvalorizar a imagem de seu fetiche, mas, para isso, teve que passar pela experiência da tentativa de suicídio.

Não Amarás

Quanto ao longa-metragem Não Amarás, que foi reeditado a partir do episódio VI do Decálogo, as mudanças na narrativa não são tão substanciais dentro de uma abordagem analítica do discurso. Entretanto, há três pontos cuja enumeração é importante: 1) a relação entre Tomek com a senhora com quem mora e também com Magda; 2) o adiantamento de uma informação ao espectador; e 3) o final mais metafísico desta versão.

No episódio do Decálogo, as relações entre os personagens são bem mais frias, cruas. Tomek parece apaixonado por Magda, mas parece que não há aprofundamento suficiente para que o espectador realmente perceba o que ele sente; da mesma forma se dão as relações entre o garoto e a senhora, que são bastante distanciadas, sendo que o espectador não consegue saber que grau de intimidade eles têm – salvo na cena em que ela conversa com ele, dizendo que ele poderia levar alguma garota para casa, caso estivesse namorando. No longa, as relações são bem mais trabalhadas, devido à inserção de cenas adicionais entre o garoto e a senhora e de uma trilha sonora extradiegética, que pontua certos pontos da narrativa, intensificando a relação de Tomek e de Magda – ambos os elementos tornam o filme mais tenro e sensível. Há duas cenas que evidenciam bastante a ligação entre o rapaz e a senhora: aquela em que ela o chama para que eles assistam juntos o concurso de Miss Polônia, assim como a cena em que ela cuida dele após o soco que ele leva no rosto. Da mesma forma, os momentos em que ele a observa são muito mais delicados, parecem permeados por um carinho especial que ele tem por ela – o que é reiterado pela utilização da trilha sonora. A abordagem aqui é totalmente diferente, modificando o resultado alcançado pelo filme. Mas acredito que o desejo de Kieslowski era realmente fazer versões diferentes de um mesmo filme, possibilitando finais distintos, um mais cético e outro mais sensível e metafísico.

O segundo ponto que considero importante destacar não tem tanta importância dentro da análise a que me proponho fazer do filme, mas é um elemento interessante de posicionamento do espectador à frente da personagem, isto é, quando o espectador sabe mais que a personagem por alguns momentos. Este fato aproxima Kieslowski de Janela Indiscreta (1954), de Hitchcock, não apenas pela temática mais evidente do voyeurismo, como também da cena mais específica que pontuarei logo em seguida. Em Não Amarás há algumas mudanças na narrativa; a partir do momento em que Magda começa a perseguir Tomek, a senhora que mora com ele começa a enganá-la, passando-lhe informações erradas sobre o garoto e chegando ao ponto de mentir para ela, ao dizer que ele ainda não recebeu alta do hospital.  Agora a narrativa está completamente permeada pelo olhar da mulher, então o espectador já está identificado com o drama dela. A câmera permanece sempre revelando a sua angústia, nunca se distanciando dela. Mas há uma ocasião em que Magda está dormindo e a câmera mostra, a partir da visão que se tem do apartamento dela, Tomek chegando com a senhora do hospital. Como ela está dormindo, quem vê a cena é o espectador, ou seja, ele possui uma informação adicional, que ela não possui. Isto ocorre, também, em Janela Indiscreta, quando o vizinho de Jeff sai de seu apartamento carregando algo que não sabemos de que se trata, já que a câmera permanece revelando apenas o ângulo de visão de Jeff; no entanto, assim como Magda, Jeff também está dormindo, então aquela informação é entregue somente ao espectador, a fim de posicioná-lo a um passo à frente das personagens.

Quanto ao final de Não Amarás, mesmo Kieslowski não sendo tão rígido quanto à questão do olhar como o é no episódio do Decálogo, aqui ele coloca questionamentos bastante interessantes. O reencontro de Magda e Tomek se dá de forma diferente: ao invés de ela o encontrar no seu local de trabalho, ela o encontra no quarto dele, enquanto o garoto dorme – a senhora também está presente no quarto. Ela tenta tocar nas ataduras de seus punhos, mas a senhora a impede. Logo depois, a mulher vai em direção à luneta e começa a observar por intermédio dela. E é deste momento que surge todo o interessante questionamento sobre o final. Ela não vê os acontecimentos presentes e reais, que estariam ocorrendo no mesmo momento em que ela começou a observar através do aparelho. Ela vê, na verdade, ela mesma, em um acontecimento já passado e que pudemos presenciar ao decorrer do filme: trata-se do momento em que ela chega em casa e derruba leite sobre a mesa; ela senta na cadeira e desaba, chorando. No acontecimento real, ela estava sozinha em seu apartamento, mas, no que ela vê, Tomek a consola. Através do olhar de Magda percebemos que há uma esperança antes inexistente naquela visão; ela abandona o seu ceticismo em relação ao amor e se lança em uma aceitação deste sentimento antes por ela negado.

Cena final de Não Amarás: Magda, agora a portadora do olhar do espectador, observa Tomek, a quem objetificou sexualmente. O final metafísico – ou apenas simbólico – se mostra através dos frames: Magda, de alguma forma, consegue observar a si mesma e “imagina” uma situação na qual o garoto a consola, diferentemente do real acontecimento.

No entanto, o fato de ela ver acontecimentos passados é um elemento bastante metafísico, típico da filmografia de Kieslowski, sendo que podemos interpretar aquelas imagens como sendo uma idealização ou uma espécie de devaneio onírico de Magda. O que Kieslowski quis dizer com este final? Realmente não sei dizer com precisão. As implicações filosóficas embutidas a essa cena provavelmente transcendem os meus conhecimentos. Prefiro apreendê-la como uma poesia visual, como tantas outras cunhadas por Kieslowski.

Um Corpo que Cai

As observações em relação ao filme de Hitchcock servirão como um aparelho comparativo para analisar a teoria de Laura Mulvey, contrapondo a forma como as questões postas pela teórica são abordadas em Um Corpo que Cai e no episódio VI do Decálogo. O filme do inglês é sobre um detetive, Scottie, que é contratado por um velho amigo, a fim de que ele vigie e siga os passos da esposa – Madeleine – deste segundo, a qual supostamente sofre de distúrbios que a fazem ser atormentada por uma mulher morta há muito tempo. No entanto, o objetivo da análise deste filme não é esmiuçá-lo – como ocorreu com o média-metragem de Kieslowski –, mas capturar alguns pontos importantes que possam servir para a compreensão dos assuntos em pauta.

Assim como em Kieslowski – em que a câmera sempre segue Tomek, mas não considerando aqui, ainda, a reviravolta da mudança de olhar –, em Hitchcock a câmera fica à espreita de Scottie, o detetive que sofre de acrofobia – medo de altura. No entanto, há algumas poucas exceções em que a câmera se desvencilha do protagonista, mas estas separações têm importantes motivações, não sendo meramente aleatórias. O primeiro momento de distanciamento ocorre quando o detetive vai a um restaurante para poder conhecer, mesmo que de longe, Madeleine; a câmera começa mostrando Scottie, mas se afasta dele em um movimento que explicitamente não segue a sua linha de olhar. A este movimento de câmera é possível conferir uma característica de ambientação. No entanto, esta motivação da câmera parece ter outro sentido intrínseco. Quando ela deixa o detetive, a movimentação da câmera é bastante suave, sendo que ela vai percorrendo o ambiente, até que algo capta a sua atenção: este algo é Madeleine. A partir do momento em que a câmera a encontra, ela vagarosamente se aproxima da mulher, como um observador à espreita. Dessa forma, a câmera se desvencilha do detetive, mas ainda assim compartilha com ele a fascinação por Madeleine – a câmera parece buscar aquela imagem da perfeição.

A câmera se desliga do ponto de vista de Scottie e vai ambientando o espaço, até se encantar com Madeleine, ao centro do quarto, com uma espécie de echarpe/capa verde.

Aqui já podemos constatar várias questões elencadas por Laura Mulvey. O prazer escopofílico de Scottie, que permanece como um voyeur, sempre observando a mulher, sem que ela saiba que esteja sendo observada; o narcisismo que acomete o espectador, já que este acaba por se identificar com o detetive, pois ele representa uma figura da lei, distinta; e o processo de fetichização que se inicia – a imagem de Madeleine começa a se configurar como uma imagem idealizada; quando a vemos com aquela espécie de echarpe/capa verde (contrastando com o vermelho gritante das paredes do restaurante) caminhando em direção à câmera e depois nos deparamos com seu perfil, temos a mesma certeza de Scottie de que ela simboliza a beleza máxima.

Na cena do museu, em que o detetive espia Madeleine sentada, observando o quadro da mulher por quem ela acredita ser atormentada, ele presta atenção na forma como o cabelo da figura no quadro e o buquê que ela segura se assemelham com a maneira como o cabelo da mulher perseguida está arranjado e com o buquê que ela carrega. A câmera, então, realiza movimentos – zooms in e out – que materializam o deslocamento do olhar de Scottie para os diferentes pontos de atenção. A identificação protagonista/espectador, antes somente no âmbito do reconhecimento de uma figura de autoridade que deve ser respeitada e seguida, agora se expande e explicita o olhar ativo do protagonista masculino que guiará toda a narrativa.

Aqui percebemos o enganoso prazer escopofílico de Scottie. Ele espreita Madeleine, achando que ela não sabe que está sendo espionada. Mas ele não tem o controle total do olhar, já que ela sabe que o detetive a observa, direcionando o olhar dele apenas para o que ela deseja que ele perceba

Após perseguir Madeleine à espreita, sem se identificar, Scottie acaba tendo que mudar sua estratégia, ao salvá-la de uma tentativa de suicídio, que supostamente havia sido acarretada pelo espírito que a atormenta. Ela se joga no mar e o detetive a salva; carrega-a no colo até o carro e a ajeita com bastante cuidado, o que denota claramente um certo tipo de interesse – aqui o interesse sexual de Scottie se desmascara. Após este acontecimento, ele leva a mulher desacordada para a casa dele, onde a vemos desnuda debaixo de um cobertor. Esta imagem é símbolo da mulher perigosa, da mulher nociva que representa a ameaça da castração. Nessa ocasião, o detetive, inconscientemente, já procura uma fuga à castração, fazendo uma série de perguntas à mulher, numa primeira tentativa de desvendar os mistérios que a envolvem – uma das formas de se escapar à ameaça da mulher. Madeleine aqui já aparece totalmente objetificada, como imagem erótica, e, além disso, também como foco da obsessão sexual de Scottie.

Traçados os mais importantes termos elencados por Laura Mulvey, agora podemos estabelecer uma pequena comparação entre os respectivos protagonistas de Kieslowski e de Hitchcock. Tanto Tomek quanto Scottie são incessantemente seguidos pela câmera, salvo alguns mínimos momentos; ambos são protagonistas masculinos das narrativas, assumindo o papel ativo de possuidores do olhar do espectador; os dois espreitam mulheres que eles não conhecem e que acabam se tornando foco de seus olhares fixos e centralizadores; edificam um processo de identificação entre protagonista/espectador; e se posicionam como voyeurs, experimentando o prazer escopofílico.

Todavia, assim como no episódio VI do Decálogo, Hitchcock também engendra uma reviravolta em sua narrativa. Durante todo o processo de loucura de Madeleine, Scottie a acompanha, chegando ao ponto de presenciar o seu suicídio. Ele estava apaixonado por ela – melhor dizendo, obcecado – e não consegue superar a sua perda. Após receber alta do hospital em que havia sido internado, a fim de se recuperar do trauma, o detetive passa a tentar encontrar a imagem de Madeleine ou resquícios que se ligassem a ela – como roupas parecidas que outras mulheres utilizavam – em todo e qualquer lugar. Até que um dia ele se depara com uma mulher demasiadamente parecida com Madeleine; ela se veste de forma diferente, é mais simples, mas as feições de ambas são muito parecidas. Ela se chama Judy, e Scottie passa a segui-la, até quando consegue falar com ela à porta do quarto de hotel, onde ela mora. Após explicar o motivo de persegui-la e discorrer superficialmente sobre sua perda, o detetive a convida para jantar, sendo que ela aceita.

Scottie, então, sai do quarto sem se despedir. Mas a câmera, aqui, permanece no quarto, ficando à espreita de Judy, ao invés de continuar seguindo o detetive. Primeiro, vemos ser revelada a expressão de dúvida da mulher, para, posteriormente, acompanharmos um flashback em que ela se lembrará de importantes acontecimentos ainda não contados da trama – Judy era amante do homem que pediu a Scottie para vigiar sua mulher; o homem, querendo se livrar de sua mulher, elaborou um plano para substituir a verdadeira Madeleine por Judy; isto é, Judy interpretava Madeleine, mas, o suicídio que vemos anteriormente na narrativa foi forjado, para encobrir o real assassinato da esposa. Esta escolha de deixar de seguir o detetive é uma forma de ceder um momento para que a instância narrativa explique determinados fatos da história. Mas, neste momento, ocorre uma reviravolta: percebemos – e aqui o uso dessa forma verbal evidencia o ponto de Hitchcock, já que quem se depara com toda a trama envolvendo a morte de Madeleine somos apenas nós, os espectadores; o detetive permanece desconhecendo os reais fatos – que quem estava controlando o olhar de Scottie, desde o início, era Judy. A noção de escopofilia do protagonista é totalmente quebrada. Ele espreitava, pensando que sua posição de voyeur era secreta, mas Judy/Madeleine sabia de sua presença o tempo inteiro. O espectador, reconhecendo-se na imagem do detetive através do olhar ativo desse protagonista, também acreditava que tinha a concessão para observar juntamente a ele aquela misteriosa mulher, porém era tudo uma conspiração, a fim de levar o detetive a testemunhar o suposto suicídio de Madeleine.

Depois de sair com Judy algumas vezes, Scottie começa a deixar transparecer o seu comportamento obsessivo frente à possibilidade de restituir a imagem de seu fetiche original. Ele a leva para comprar novas roupas, para arrumar os cabelos. Mas é ele quem escolhe as roupas, é ele quem decide com exatidão como tem de ser o corte de cabelo dela: tudo para deixá-la pontualmente à imagem de Madeleine. Após a transformação, há uma cena muito importante no quarto de hotel de Judy. O detetive está esperando no quarto, enquanto Judy está arrumando os cabelos, para ficar totalmente parecida com Madeleine. Há uma iluminação verde trabalhada dentro do quarto, a qual é explicada – ao menos dentro da estruturação diegética – pelo letreiro com verde de um prédio à frente. Então, quando a mulher termina de se arrumar e sai do quarto, vemo-na envolta por uma aura verde: ela é uma manifestação fantasmagórica materializada por aqueles raios verdes incidindo sobre ela, Judy/Madeleine. Scottie se levanta, eles se encontram e se beijam, sendo que a câmera vai executando um movimento circular envolta dos dois, tentando investigar aquele acontecimento.

Não lhe interessava despi-la, nem possuí-la; o que ele queria era transformar Judy na imagem ideal que sua obsessão fixou, para ficar olhando-a indefinidamente.****

Dessa forma, através das palavras de Arlindo Machado, é possível compreender a fetichização empreendida por Scottie: ele deseja reconstruir a imagem para ele perfeita de Madeleine, a fim de ter o seu objeto erótico indefinidamente, assim como para aceitar a condição traumática que a experiência da perda lhe acarretou. Aqui é possível estabelecer um rápido paralelo com o filme Solaris (1972), de Andrei Tarkovski, que trata também da perda. Em um contexto totalmente diferente – porém alegórico –, a história do cineasta russo é sobre um planeta em que estranhos acontecimentos ocorrem; as pessoas que vão pra lá têm de enfrentar a materialização de seus pensamentos, o que ocorre através de inexplicáveis forças.  O protagonista enviado para o tal planeta é viúvo, mas a imagem de sua mulher é materializada de alguma forma. Esta é a similaridade com Um Corpo que Cai: assim como Scottie, o protagonista de Solaris também passou pela experiência traumática da perda. Toda a situação que ocorre neste enigmático planeta é apenas uma forma alegórica de demonstrar o desejo do protagonista de reconstruir a imagem de sua mulher falecida, de criar um fetiche para substituir a perda de seu objeto do olhar.

Ao final do filme, Scottie acaba descobrindo que as duas mulheres realmente são a mesma pessoa. Ele percebe a culpabilidade de Judy e todo o seu envolvimento com o assassinato da verdadeira Madeleine, e a leva ao local onde presenciou o suposto suicídio de Madeleine. O detetive consegue enfrentar e superar o seu medo de altura; Judy assume a sua culpa e acaba se jogando da torre.

Episódio VI do Decálogo e Um Corpo que Cai

As comparações a serem feitas entre ambos os filmes são várias, mas a forma de tratar temas parecidos é bastante diferente entre Kieslowski e Hitchcock. Começarei pela escopofilia. Tomek, durante o decorrer da primeira metade do filme possui o controle total e inquestionável do olhar e realmente não é olhado de volta pelo seu objeto do olhar. No centro da narrativa, há o início de uma transição da posse do olhar, quando a senhora olha através da luneta do garoto; o câmbio da instância do olhar se cristaliza, quando Magda objetifica sexualmente Tomek e passa a persegui-lo, invertendo sua posição de personagem para protagonista feminina e se tornando o ponto ativo das ações. Há todo esse conceito que visa a desconstruir a concepção de Laura Mulvey de que apenas a mulher suporta o peso da objetificação, assim como é ela quem tem que ser sempre o ponto passivo da narrativa. Magda não é de maneira alguma submissa e, mesmo quando ainda não centraliza o olhar para ela, já manipula Tomek através de seu exibicionismo.

A questão do olhar em Hitchcock se dá de outra maneira, mas ele também questiona a escopofilia. Scottie pensa, durante toda a narrativa, que tem o controle do olhar. Ele observa Madeleine à espreita, sempre escondido e acreditando que não está sendo observado de volta. No entanto, o que ele olha é direcionado pelo que Madeleine/Judy quer que ele veja. Contrariamente a Kieslowski, em que Magda apenas assume o controle do olhar na parte final da narrativa, o olhar de Scottie é todo moldado, desde o início, por Judy – a qual é uma personagem exibicionista todo o tempo; Magda apenas se torna exibicionista, quando o garoto avisa que a espiona. Tomek realmente tem o controle do olhar na narrativa, mas Scottie não tem. Kieslowski questiona a escopofilia empreendendo uma mudança bastante analítica – já que a transmutação de olhares passa até mesmo por um período de transição, antes de se cristalizar – da instância do olhar e evidenciando o quão intercambiável pode ser tal questão, ao passo que Hitchcock questiona o conceito propriamente dito de escopofilia, já que o voyeurismo daquele que espiona pode ser totalmente enganoso.

As implicações acarretadas pela ameaça da castração também possuem visões distintas e os personagens encontram formas diversas de combatê-la. A estrutura narrativa do episódio VI do Decálogo evidencia como a mulher se apresenta primeiro como um elemento nocivo e, posteriormente, vencida – parcialmente – após o embate do protagonista masculino frente ao perigo da castração. A primeira imagem que vemos no filme é um close de Magda; ela aparece como uma mulher venerada, o objeto erótico de Tomek. A última cena do filme também capta o rosto da mulher em close, só que de maneira diferente; agora, após todo o processo de transmutação do olhar, Magda é dona do olhar do espectador, mas também teve sua imagem de perfeição e idolatria destruída. O rosto da mulher nesse close, destituído de todo o brilho que possuía no close inicial, simboliza a vitória de Tomek frente à castração – ele consegue fugir à ameaça por meio da desmistificação de seu fetiche, de seu objeto sexual. No entanto, não podemos afirmar que a vitória do garoto é completa. É parcial, contrariamente, haja vista que em sua primeira tentativa de desmistificar a mulher, ele acaba ejaculando precocemente só pelo fato de encostar suas mãos nas coxas dela; a ejaculação precoce metaforiza a sua derrota na primeira batalha contra a castração. Ele vence a segunda batalha, mas também após um embate árduo; após se desiludir com Magda, ele resolve atentar contra a sua própria vida; o suicídio falha, mas ele consegue exterminar a imagem idealizada que tinha da mulher, vencendo, portanto, a ameaça da castração.

Quanto ao Scottie de Um Corpo que Cai, também podemos dizer que sua vitória não é de todo completa, hajam vista as complicações surgidas em sua vida pelo embate entre ele e o fetiche por ele formado a partir de seu olhar fixo e centralizador. O fato de ele se envolver com a mulher que ele perseguia fomenta nele um comportamento obsessivo. Ele tenta desmistificar a imagem de Madeleine através de inúmeras perguntas, tenta esmiuçar a personalidade daquela misteriosa mulher, mas falha – e ainda presencia o suposto suicídio da mulher. Todavia, quando o detetive descobre toda a conspiração envolta na morte de Madeleine, ele se dispõe a destruir inexoravelmente a imagem de seu fetiche – no momento, era Judy quem simbolizada o seu fetiche, vestida e arrumada da maneira como Madeleine costumava estar. Scottie enfrenta e vence o seu medo de altura, levando Judy ao alto da torre, onde o assassinato ocorreu. Enquanto eles conversam, a mulher se assusta com a imagem na penumbra de uma freira e acaba se jogando da torre. A ameaça da castração foi vencida, neste caso, através da punição – com a morte – da mulher objeto.

As maneiras como a teoria de Laura Mulvey se inserem nestes dois filmes exemplificam como é possível questionar códigos intrínsecos ao cinema dominante, no qual predominam, segundo a teórica, formas de representação da mulher pautadas por valores de uma sociedade com base patriarcal. Alfred Hitchcock, com Um Corpo que Cai, de 1958, já subvertia e questionava alguns dos códigos do cinema hollywoodiano, mesmo sendo um diretor comercial de Hollywood. Krzysztof Kieslowski, situado em um contexto totalmente diferente, em uma Polônia ainda comunista, mas em vias de abertura política e econômica, realizou um grande filme sobre a representação da mulher no cinema e a questão do olhar. As teorias têm como intuito analisar certos códigos do cinema – e também da sociedade e da política – e os questionar, formulando e definindo parâmetros analíticos. Todavia, sempre haverá algum iconoclasta desejando quebrar representações, simplesmente discutindo-as ou até mesmo criando novas formas de representação.

* Gustavo Aguiar é graduando em Imagem e Som pela UFSCar e participa colaborativamente como editor da seção Panorama, da Revista Universitária do Audiovisual (RUA).

** MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”, in XAVIER, Ismail (org.), A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 443.

*** MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”, in XAVIER, Ismail (org.), A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 447.

**** MACHADO, Arlindo. “A janela do voyeur” in O sujeito na tela. São Paulo: Paulus, 2007, p. 47.

Referências Bibliográficas

MACHADO, Arlindo. “A janela do voyeur” in O sujeito na tela. São Paulo: Paulus, 2007, pp. 41-55.

MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”, in XAVIER, Ismail (org.), A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983, pp. 435-453.

Referências Filmográficas

Dekalog / Decálogo – episódio VI (Krzysztof Kieslowski, Polônia, 1988, 55min, cor, som).

Krótki film o milosci / Não Amarás (Krzysztof Kieslowski, Polônia, 1988, 82min, cor, som).

Rear Window / Janela Indiscreta (Alfred Hitchcock, EUA, 1954, 114min, cor, som).

Solyaris / Solaris (Andrei Tarkovski, União Soviética, 1972, 166min, cor, som).

Vertigo / Um Corpo que Cai (Alfred Hitchcock, EUA, 1958, 129min, cor, som).

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Este post tem 2 comentários

  1. Author Image
    Carine

    Texto muito bom. Adoro esse filme e tantos de Krzysztof Kieslowski.

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