Sergio Leone e a Trilogia do Homem Sem Nome

“Foi o único, se excetuarmos os quatro
grandes mestres do cinema italiano,
Rossellini, Antonioni, Visconti e De Sica,
a fazer alguma coisa diferente”

Opinião de Bernardo Bertolucci
a respeito de Sergio Leone
(FRAYLING, Christopher. 2005: P. 161)

Quando Sergio Leone nos deu Por Um Punhado de Dólares (Per un Pugno do Dollari, 1964), primeiro filme de sua famosa trilogia, 25 faroestes já haviam sido produzidos em Cinecittà – a Hollywood italiana. Porém, Sergio Leone ainda teria que esperar pelo sucesso (na Europa) do faroeste produzido pela parceria entre estúdios alemães e iugoslavos até que os produtores italianos e espanhóis se interessassem em colocar dinheiro no projeto. Trata-se da série de filmes Winnetou o Guerreiro, produzidos entre 1962 e 1968 baseada numa adaptação da obra de Karl May (1842-1912). O “faroeste espaguete”, como ficou conhecido, produziu várias centenas de títulos entre 1963 e 1973. Peter Bondanella e Christopher Frayling sugerem que em parte o sucesso do faroeste espaguete seja fruto do decréscimo na produção anual de faroestes em Hollywood, que havia caído de 54 em 1958 para 11 em 1962-3, voltando a crescer para 37 em 1967 devido ao sucesso internacional dos filmes da Trilogia dos Dólares (BONDANELLA, Peter. 2008: pp. 253-4).

Na Itália, o surto de filmes de faroeste que se seguiu ao sucesso da trilogia foi longo. O apogeu foi em 1966 (setenta e quatro), 1968 (setenta e sete), 1969 (trinta e um), 1970 (trinta e cinco), 1971 (quarenta e sete) e 1972 (quarenta e oito filmes). Na opinião de Frayling, 352 filmes que não eram apenas uma imitação de Por Um Punhado de Dólares. Nesta fase, a indústria cinematográfica italiana era a segunda maior exportadora mundial de filmes, perdendo apenas para Hollywood. Na Itália, os faroestes italianos se chamavam “faroeste à italiana”. No resto do mundo, a preferência por chamá-lo de “faroeste espaguete” vem perdendo terreno para “faroeste euro” (FRAYLING, Christopher. 2005. P. 177).

 

Espaguete não é Sinônimo de Plágio

O deserto como pano de fundo tem o clima quase extraterrestre de algumas pinturas de Salvador Dali (FRAYLING, Christopher. 2006. Pp. 181-2)

 

Muitas vezes Sergio Leone foi acusado de não se interessar pelos aspectos mais subjetivos dos personagens, enfatizando a violência e os efeitos cinematográficos. O Homem sem Nome, personagem principal da Trilogia dos Dólares (também conhecida como Trilogia do Homem sem Nome), geralmente é visto como um existencialista brutal vivendo num vácuo moral. Christopher Frayling afirma que não se pode dizer que Leone vivia dos clichês dos faroestes norte-americanos. Leone articulou o faroeste de Hollywood a conceitos e temas da cultura italiana. Muitas idéias para seus faroestes vieram de Moralidades (morality plays) sicilianas – um gênero de peça disseminado pela Europa a partir da Idade Média, cujo enredo gira em torno de elementos maniqueístas e geralmente tinham a função de prover o público com lições morais. Contudo, Frayling nega que Leone tenha tido o interesse de agregar alguma moral a seus faroestes (Idem: p. 191).

O Homem sem Nome sob a mira de Tuco (Três Homens em Conflito)

O “grande deserto americano” foi substituído pela orquestração de imagens, os closes de rostos contra uma terra pedregosa e árida (Ibidem, p. 181). O que não quer dizer que o deserto não esteja presente, muito pelo contrário. É só assistir o início de Por Um Punhado de Dólares, o início e o final de Por Uns Dólares a Mais (Per Qualche Dollaro in Più, 1965) e o início de Três Homens em Conflito (Il Buono, il Brutto, Il Cattivo, 1966) para ver que o deserto está mais presente do que nunca. O deserto é o pano de fundo daquele mundo brutal, apático e indiferente (Ibidem: p. 188). De fato, os closes de rostos encontram um perfeito contraponto naquelas paisagens desérticas que lembram alguns quadros de Salvador Dali (1904-1989) e Giorgio De Chirico (1888-1978). Este último, uma fonte direta de inspiração para Leone, pelo menos em Três Homens em Conflito (SIMSOLO, Noël. 2006: p. 181).

Por outro lado, Leone manteve o tema, tradicional no faroeste, da ambivalência em relação aos avanços tecnológicos (as ferrovias). Três Homens em Conflito, e posteriormente Era Uma Vez no Oeste (C’era una Volta il West, 1968), questionam uma tendência presente nos faroestes norte-americanos da inevitabilidade do progresso (FRAYLING, Christopher. 2006: p. 191). O tema desempenha importante papel na motivação do coronel Mortimer também em Por Uns Dólares a Mais. No começo do filme, Mortimer viaja no trem que vai para Amarillo. O fato de ele puxar a corda de emergência para conseguir saltar em Tucumcari (uma parada não programada) demonstra sua aversão a esse tipo de tecnologia. Posteriormente ficamos sabendo que Mortimer havia sido um eficiente soldado durante a guerra civil americana, até que os “malditos trens” chegaram e ele foi forçado a ganhar a vida como caçador de recompensas. A vida em família e a torre da igreja com sinos (campanile), elementos considerados a quintessência do faroeste, são usados por Leone para incorporar o conceito cultural italiano de campanilismo: lealdade à família, ao clã, a Igreja e a autoridade local.

Contudo, Frayling nos adverte que há na trilogia uma sistemática profanação de elementos católicos. Existe uma série de associações entre símbolos da igreja, do monastério e do cemitério, com símbolos de cobiça, egoísmo e feudalismo. Tanto os heróis quanto os vilões não são pioneiros de um novo Oeste, mas arrendatários temporários de uma fronteira imóvel. De fato, por toda a trilogia, a ação se desloca entre o Novo México e o Texas como se fronteiras não existissem. A iconografia da igreja seria parte de um ataque de Leone às implicações morais do “mito da fronteira”, tão presente nos faroestes de Hollywood. De acordo com Frayling, Três Homens em Conflito e, posteriormente Era Uma Vez no Oeste, apresentam personagens que celebram a falta de desenvolvimento – como o velhinho que culpa a ferrovia por todos os problemas. Os dois filmes desafiam as hipóteses, quase onipresentes nos faroestes norte-americanos, de que “processos inevitáveis” estão em curso na expansão da fronteira para o oeste e que a colonização da Terra Virgem é de alguma forma “predestinada”.

Frayling conclui afirmando que as profanações de símbolos católicos têm um importante papel nesse desafio de Leone. Ao contrário de muitos faroestes de Hollywood, os filmes da trilogia não carregam nenhuma mensagem moral universal. Seus heróis não se destinam a servir de exemplo para nós hoje. Os tradicionais “processos inevitáveis”, sejam representados pelo “destino manifesto”, “individualismo grosseiro”, “tornar o deserto um jardim”, ou, mais genericamente, “a evolução da fronteira”, são reavaliados e criticados. Esta perspectiva eleva o faroeste da Trilogia dos Dólares para além de uma mera “releitura passiva” e a coloca numa posição coerente frente aos faroestes “desse grande otimista” que foi John Ford.

A ênfase na amoralidade de clãs e famílias presentes na trilogia, assim como noções de cavalaria (mais no sentido do lazer do que da lei moral), de campanilismo, os enredos envolvendo cruzes e, especialmente, a profanação dos ícones católicos, mostram como Leone insere os códigos do faroeste no contexto cultural do sul da Itália. Na opinião de Frayling, essa fusão parece totalmente distante da imagem tradicional “baseada na história” da fronteira do oeste norte-americano a ser colonizado pelos brancos – imagem tradicional baseada numa combinação de ética protestante e darwinismo social (Idem: pp.189-191).

Todos os Pistoleiros São Solitários

“Se inclui tantos close-ups extremos em meus faroestes, em grande medida é porque quero mostrar que os olhos são o elemento mais importante. Tudo pode ser lido nos olhos: coragem, ameaça, medo, incerteza, morte”

Sergio Leone
(Ibidem: p. 203)

Frayling chama atenção para a primeira característica do Homem sem Nome que salta aos olhos, ele não tem uma vida em família. Por outro lado, em Por Um Punhado de Dólares ele ajuda uma “sagrada família” (Julian, Marisol e o filho) a escapar da brutalidade do clã Rojo (uma família grotesca). O clã Rojo, três irmãos delinqüentes, está em guerra contra o clã Baxter, dominado por uma mãe. O Homem sem Nome se vira para ajudar Marisol após tê-la esmurrado por engano. Frayling lembra que Wyatt Earp, personagem de Sem Lei e Sem Alma (Gunfight at O.K. Corral, direção John Sturges, 1957), já havia descrito a situação: “todos os pistoleiros são solitários. Eles vivem e morrem sem um tostão, uma mulher ou um amigo”. No final do filme, o Homem sem Nome está com um pouco mais de “um tostão”.

Depois do duelo final, Mortimer retorna para dentro do nada (Por Uns Dólares a Mais).

Em Por Uns Dólares a Mais, o Homem sem Nome diz para um Mortimer descrente que deseja se estabelecer e possivelmente se aposentar com a recompensa pela captura dos bandidos. No final, ele parte com a carroça cheia de bandidos e mais um bom dinheiro – como veremos na seqüência da Trilogia, ele não se aposentou. Como dirão sobre Harmônica, o protagonista de Era Uma Vez no Oeste: “gente assim tem alguma coisa dentro, algo a ver com a morte”. Em Três Homens em Conflito, Tuco julga que deu aquilo que a família pediu.  Comenta com seu irmão, padre Ramirez, que um deles tinha que tornar-se um bandido. Ramirez acusa Tuco de ter negligenciado a família, ao que ele retruca que o deixaram para trás enquanto Ramirez foi virar padre. Numa seqüência anterior, Tuco já havia astuciosamente tentado usar a “família” como estratégia amoral para conseguir a simpatia de “Lourinho” (como chamava o Homem sem Nome). Tuco disse que era igual ele, os dois são sozinhos no mundo: “Eu tenho você, e você tem a mim. Só por um tempo, quero dizer” (a legenda em português não reproduz exatamente isto) (Ibidem: p. 182).

Simbolismo Católico no Espaguete

Em Toby Dammit (1968), Fellini nos apresentou um ator shakespeariano drogado que foi contratado pelo Vaticano para fazer um faroeste católico (BONDANELLA, Peter. 2002: p. 28)

 

Frayling destaca alguns episódios da trilogia que deixam evidente o elemento religioso nos roteiros de Sergio Leone (FRAYLING, Christopher. 2006: pp. 185-6). Em Por Um Punhado de Dólares, o Homem sem Nome ajuda a família de Marisol. Entretanto, embora ele justifique sua bondade dizendo que “uma vez soube de alguém como você e não havia ninguém para ajudar”, seu gesto é puramente egoísta – espera um sorriso dela. Ele não tem família, ao “ajudar” esta “sagrada família” ele acaba “crucificado” pelos Baxter logo que chega a San Miguel. Para Leone, o Homem sem Nome era uma encarnação do anjo Gabriel – uma associação que os norte-americanos não gostaram muito (SIMSOLO, Noël. 2006: p. 91). Durante a troca de prisioneiros também fica evidente a diferença de tratamento entre os familiares. A matriarca Consuela Baxter recebe seu filho com bofetadas na cara, já Marisol recebe o filho dela com um abraço afetuoso. Mas a ajuda que o Homem sem Nome oferece é inseparável de sua intenção de aprofundar a rivalidade entre Rojos e Baxters.

Os templos também não foram esquecidos por Leone, como na longa seqüência depois que Índio é resgatado da prisão por seu bando/família em Por Uns Dólares a Mais. Escondido numa igreja abandonada, ele mata Tomaso num breve duelo ao som do órgão da trilha sonora – antes Índio mandou matar a esposa e o filhinho dele. Blasfemo até o fim, Índio chega a concluir na frente de Tomaso que, já que este usou o dinheiro da recompensa por entregá-lo a justiça para formar sua família, ela seria em parte dele também. Após sua vingança sob o teto da igreja, Índio fuma maconha e entra numa espécie de letargia ao som do motivo musical do relógio de bolso que nos acompanhará até o final – a droga foi uma idéia de Leone, que considerava o estilo de atuação de Gian Maria Volonté muito melodramático; ao exacerbar a teatralização de Volonté, acreditava Leone, o público pensaria em “tiques dos drogados” (Idem: p. 89). O coronel Douglas Mortimer, caçador de recompensas que se alia ao Homem sem Nome para pegar Índio e seu bando, deixa todo o dinheiro para o parceiro, pois seu interesse em pegar o bandido é um assunto de família.

 O cenário lembrando a Última Ceia na festa dos Rojos, o púlpito em que Índio sobe para explicar a seu bando (que está fazendo uma espécie de última refeição) como irão roubar o cofre no banco de El Paso em Por Um Punhado de Dólares; Tuco rezando para uma estátua de Cristo, a confusão de estátuas religiosas no quarto de seu irmão padre em Três Homens em Conflito… Tudo evidencia a ênfase nas tradições da família católica e neutraliza os valores dos clãs dos bandidos. Sergio Leone articula o tema da família e sua atitude em relação à igreja através dos sinos (o campanilismo). Em Por Um Punhado de Dólares é o tocador de sino que saúda a chegada do Homem sem Nome em San Miguel e o avisa que pode acabar “rico ou morto”. O sino tocará novamente após o confronto final. Os moradores de San Miguel são alertados duas vezes pelo sino (uma quando a casa de Rojo incendeia e outra no final, quando a “paz” é restaurada na cidade das viúvas). Em Yojimbo (1961), filme do cineasta japonês Akira Kurosawa que inspirou Leone, tínhamos uma torre de observação de madeira no lugar da torre da igreja.

Em Por Uns Dólares a Mais, o sino da igreja é usado como alvo para prática de tiro pelos homens do bando/clã/família de Índio. Logo após os tiros, Leone faz um corte e vamos direto para um close de Índio, que abre os olhos e volta de seu sono/delírio com a lembrança do dia em que estuprou a irmã de Mortimer – não fica claro se o tiro que ela deu era para suicidar-se ou era endereçado a Índio. Com castiçais nas laterais, a imagem do cofre revestido de madeira no banco de El Paso lembra um altar (ou púlpito). Em Três Homens em Conflito, a discussão sobre lealdade em família entre Tuco e seu irmão é pontuada pelo toque do sino da missão religiosa que recebe feridos de todas as partes.

Cruzes por todo lado, até na hora do duelo (Por Um Punhado de Dólares).

Assim como nos faroestes de Sergio Leone sempre tem alguém marcado para morrer e alguém que sabemos que nunca vai morrer, as igrejas são parte da paisagem e sempre estarão lá. Como pano de fundo de uma cena de duelo, como fonte do badalar de sinos por trás dos diálogos, ou mesmo como esconderijo e santuário de ladrões, as igrejas ou missões católicas perdidas no deserto norte-americano com suas paredes brancas são onipresentes nos filmes da trilogia. Como já vimos ao comentar sobre os trens, com sua roupa preta e a bíblia aberta tapando-lhe o rosto, chegam a confundir Mortimer com um “reverendo” em Por Uns Dólares a Mais.  No mesmo filme, também já mencionamos o momento em que Índio se dirige a seu bando a partir do púlpito da igreja para explicar como roubar o cofre em El Paso. Da mesma forma, como já falamos da Última Ceia em Por Um Punhado de Dólares. O diálogo entre Tuco e seu irmão, padre Ramirez, em Três Homens em Conflito, acontece num recinto da missão católica repleto de santos.

Antes deste encontro, acompanhamos Tuco rezando diante de um quadro do Cristo crucificado logo após entregar o Homem sem Nome para tratamento na missão. De acordo com Frayling, na cópia italiana de Por Uns Dólares a Mais, Índio batiza seu revolver em água benta antes de matar. O próprio Homem sem Nome é “batizado”, ao comentar sobre ele com Mortimer, um delegado o chama de “monco” – “monge”, em italiano (FRAYLING, Christopher. 2006: p. 187); embora a legenda do dvd lançado no Brasil pela MGM refira-se a “manco”. Numa das vezes em que o Homem sem Nome se prepara para atirar na corda com a qual Tuco está prestes a ser enforcado em Três Homens em Conflito, Mortimer se refere a ele como um anjo de cabelos dourados que olha pelo enforcado. Frayling também chama atenção para o fato de que Leone dá mais importância às imagens da morte do que da lei.

Duelos Circulares na Colina Triste

Em Por Um Punhado de Dólares, o velhinho construtor de caixões parece ser o único que tem trabalho fixo na cidade falida – aliás, ele batiza o Homem sem Nome de Joe. Na cena final, depois do duelo, podemos vê-lo com sua fita métrica cheio de trabalho – embora não haja ninguém para pagar. Depois da surra, o Homem sem Nome só escapa de seus algozes ao se esconder num caixão. O Homem sem Nome havia usado dois soldados mortos como chamariz para jogar as gangues uma contra a outra. Eles são apoiados numa lápide do cemitério local. Em Por Uns Dólares a Mais, quando Índio chega com seu bando a Agua Caliente, sugere que o Homem sem Nome mostre que sabe manejar uma arma e o manda entrar sozinho na cidade. Mas avisa que todos devem ter cuidado, pois o lugar parece um cemitério. Durante o combate assistimos Índio matando um besouro – como o inseto, seu bando está sendo esmagado. Christopher Frayling chama atenção para uma das marcas registradas de Leone, os closes de rosto. Por todo o filme, os rostos mostrados estão repletos de marcas de combates – olhos mutilados, talhos na bochecha, narizes sifilíticos e tiques nervosos.

Como muitos dos personagens têm “algo a ver com a morte”, seus nomes são um índice disto: Mortimer é o frio caçador de recompensas, os irmãos Morton foram mortos pelo Homem sem Nome. Em Era Uma Vez no Oeste, o nome Morton reaparecerá, é o rico empresário dos transportes ferroviários que deixa atrás de si uma trilha de mortes. Em Três Homens em Conflito, uma charrete cheia de mortos aparece do nada no meio do deserto – um deles não está morto, e dirá para o Homem sem Nome em qual sepultura está escondido o ouro. Por duas vezes, antes de ser condenado ao enforcamento, dizem a Tuco que o Senhor terá piedade de sua alma. Seu irmão, o padre Ramirez, também dirá a mesma coisa. Aleijados sem braços, pernas ou olhos surgem aos montes nas seqüências da Guerra Civil norte-americana. O capitão do exército da União morrerá sorrindo e cheio de bandagens. Para ele, “a mais potente arma numa guerra” foi uma garrafa de uísque – na época do lançamento, foi cortada a cena em que um oficial Confederado oferece uísque a Mortimer. O ouro está enterrado numa sepultura, mas é aberto o caixão errado. No duelo final, Mortimer é baleado e cai direto dentro de uma cova aberta – com tiros certeiros, o Homem sem Nome faz com que a arma e o chapéu do morto juntem-se a ele, o “respeito pelo morto” no estilo do faroeste (Idem: p. 188).

Carlo Simi, o cenógrafo de Leone na Trilogia dos Dólares, fez um comentário sobre os famosos “duelos circulares”. Ele tinha curiosidade de saber o motivo daquela forma circular, imaginou que deveria haver alguma relação na mente de Leone entre o círculo e a morte. Com relação ao cemitério circular na Colina Triste (Sad Hill), em Três Homens em Conflito, o cenarista disse que foram feitas cinco mil tumbas e cruzes (FRAYLING, Christopher. 2005: pp. 125-6). O confronto final entre os pistoleiros não se dá mais nos espaços retos das ruas, mas no centro circular de um cemitério. Leone admite uma teatralização do duelo (SIMSOLO, Noël. 2006: p. 90). Na blasfêmia final, após o duelo, o Homem sem Nome aponta a arma para Tuco, ordena que suba numa cruz e ponha a corda em volta do pescoço. Já distante, o Homem sem Nome atira nela e Tuco dá de cara no chão. No final de Por Uns Dólares a Mais, a charrete do Homem sem Nome estava repleta de cadáveres valiosos de bandidos – ele se apossou também do produto do roubo do banco de El Paso.

Leone em Seu Próprio Nome

Na opinião de Sergio Leone, de maneira geral todos estavam errados sobre ele. Tanto aqueles que o acusaram de plagiar o faroeste de Hollywood, quanto os que o defendiam afirmando que o seu era um “cinema crítico”, não perceberam que Leone apenas estava aplicando ao faroeste as convenções de sua cultura. Leone sabia que, como todo mundo, ele era fruto de um patrimônio cultural, e que não poderia ou conseguiria negá-lo. Em sua opinião, mesmo quando um italiano se diz ateu, ele é completamente inibido pelo catolicismo. Era essa a razão porque o catolicismo transparecia em seus filmes.

No que diz respeito a quem poderia ou não se arvorar a fazer um filme de faroeste, Leone comentou, durante as filmagens de Por Um Punhado de Dólares, que às vezes tinha a impressão de ser William Shakespeare, porque o dramaturgo inglês conseguiu escrever grandes romances italianos sem jamais ter estado na Itália. De acordo com Leone, o faroeste é um gênero muito anterior a Hollywood. O cineasta disse que no começo de Por Um Punhado de Dólares, quando o Homem sem Nome chega, que a fala do tocador de sino é uma citação de Hamlet – em essência a mensagem é esta: “Você está armado. Mas aqui só existe a morte” (Idem). Na opinião de Leone, o maior autor de faroestes foi ninguém menos que Homero. Aquiles, Ajax e Agamenon, seriam os protótipos dos personagens vividos por Gary Cooper, Burt Lancaster, James Stewart e John Wayne nos faroestes de Hollywood. Todos os grandes temas do faroeste (as batalhas, os conflitos pessoais, os guerreiros e suas famílias, as viagens para terras distantes) estão presentes em Homero. De um lado o guerreiro grego, do outro o pistoleiro (FRAYLING, Christopher. 2005: pp. 75-6).

Apesar de o próprio faroeste produzido em Hollywood ter se beneficiado do sucesso alcançado pelo faroeste espaguete, cineastas e atores italianos se viram obrigados a utilizar pseudônimos em inglês para não correr o risco de o público (o mercado) norte-americano rejeitar seus filmes. Sergio Leone escolheu chamar-se Bob Robertson, em alusão a Roberto Roberti – pseudônimo que havia sido utilizado por seu pai. Numa entrevista a Christopher Frayling em 1982, Leone descreveu uma situação que seria hilária se não fosse trágica (Idem: p. 75). No dia seguinte da estréia de Por Um Punhado de Dólares em Roma, Sergio Leone leu uma crítica no jornal que lhe agradou. Um inimigo seu sugeria a existência de ligações entre este filme e os de John Ford. Leone telefonou para agradecer, confessando estar profundamente tocado e feliz por ver que o tal inimigo havia passado por cima das diferenças entre os dois. O cineasta ficou surpreso com a resposta, pois o fulano perguntou o que Leone tinha a ver com aquele filme. Foi então que o cineasta concluiu que seu inimigo deveria ser o único crítico de Roma que não sabia que Bob Robertson era um pseudônimo. Desde então, o tal crítico voltou a regularmente demolir seus filmes.


Referências Bibliográficas

BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. New York: Cambridge University Press, 2002.

_________________. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008.

FRAYLING, Christopher. Il Était Une Fois em Italie. Les Westerns de Sergio Leone. Paris : Éditions de La Martinière, 2005. Catálogo de exposição.

___________________. Spaghetti Westerns. Cowboys and Europeans from Karl May to Sergio Leone. London/New York: I. B. Tauris, 2ª ed., 2006.

SIMSOLO, Noël. Sergio Leone. Paris: Cahiers du Cinéma, 2ª ed., 2006.

Roberto Acioli de Oliveira é graduado em Ciências Sociais – 1989, Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestrado e Doutorado em Comunicação e Cultura – 1994 e 2002, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É colaborador da Revista dEsEnrEdoS e mantém três blogs sobre cinema e corpo: Corpo e Sociedade, Cinema Europeu e Cinema Italiano.

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Este post tem 2 comentários

  1. Author Image
    Aprigiohistoria

    Excelente, formidável, sensacional…Roberto.Venho batendo nisso há muito tempo.Os filmes de Sergio Leone estão impregnados de simbolismo religioso, no caso o católico. Ele o faz através de ícones da igreja como as cruzes, imagens de santos e a própria Igreja. e os reforça ou enfatiza imageticamente quando acentua o colorido naquelas cenas citadas por você- o barroquismo(ou intensificação) do colorido nas cenas de tensão é outra de suas características. Também como foi muito bem colocado o autor bebeu acima de tudo na cultura de seu próprio país que é vasta e poderosa. O italiano vive e respira ela, passando inevitavelmente para as suas obras as impressões reprocessadas dessa cultura e não poderia ser diferente. De fato os faroestes leonianos pouco tem a ver com os feitos em Hollywood, claro preserva a semelhança na arquitetura das cidades (os décors das casas, dos saloons, etc), mas revestida por um verniz barrôco.

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    deldino

    Leone, the more I see you (your movies) the more I love you.
    Dino Dellamonica.

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