Síndromes e um Século (Apichatpong Weerasethakul , 2006)

Minha reação quando leio o que se escreveu a respeito do cinema de Apichatpong Weerasethakul poderia ser de total desconforto, caso não conhecesse o cinema deste tailandês nascido em 1970 e formado em arquitetura, que se consagrou inicialmente com vídeo-instalações. Fala-se de Apichatpong com a linguagem da paixão e do desconcerto causado pelo choque estético; fala-se sobre um filme de Apichatpong como se tratasse de uma experiência extática. A prática da dissecação, que supostamente deve ser a da crítica, parece não dar acesso a certos âmbitos desse cinema.

 Quantos de nós acreditamos que neste balaio de gatos já tão esquadrinhado chamado realidade há espaço para o inaudito? Quantos de nós estamos preparados para celebrar a vida? Se dermos a essas perguntas respostas vigorosamente negativas, então talvez o cinema de Apichatpong não seja para nós. Trata-se, afinal, como exaustivamente reitera a crítica, de um cinema que pede uma entrega total do espectador, um deixar-se levar pelo seu ritmo absorvente, sua atmosfera celebratória da vida. Um cinema, portanto, próximo ao universo aconceitual da música: “O que me interessa é que o som e a imagem componham um todo em que mesmo a fala de meus personagens, a voz deles e os diálogos escritos, estejam ali como componente musicais do ambiente sonoro e imagético” (Apichatpong em entrevista à revista Cinética, 2006).

 Síndromes e um Século (2006) não é, pois, um filme em que se busquem nexos causais entre as ações filmadas, ou uma psicologia profunda em seus personagens, ou supostos símbolos disseminados no enredo: trata-se antes, como muito bem descreveu metaforicamente Eduardo Valente em seu ensaio “A música do mundo”, de algo como o recitar de um mantra que vai paulatinamente nos conduzindo a um estado interior de serenidade. Em tudo, absolutamente tudo, Síndromes é um filme leve, não por escamotear a dor ou se instalar na superficialidade, mas por intuir uma espécie de simpatia cósmica entre tudo e todos. Onde o Ocidente vê a dissociação entre ciência e fé, entre medicina e magia, Apichatpong, que foi criado dentro da tradição budista, vislumbra uma unidade profunda.  Assim, há um médico que busca saber em que ou quem o irmão reencarnou, e uma médica que busca curar o paciente trabalhando os seus chakras, e um monge que deseja ser DJ, e um dentista (um homem de ciência, portanto) que também é músico, além de outros exemplos que eu poderia arrolar. Uma cena começa com um monge sendo consultado por um médico, mas, em certo momento, o médico é que passa a ser paciente do monge. A estátua de um nobre cientista se alterna à de uma divindade ou guru, ambas filmadas com a mesma reverência.  Os atores falam num tom abaixo do convencional, como que para dentro, sem dramatismo, sem sobressalto. Os diálogos são confissões que, mesmo quando tratam de realidades dolorosas, como traumas de infâncias e perdas de entes queridos, não têm nada de tragicidade. A história flui e reflui (às vezes idêntica, mas em outro ângulo, às vezes de forma parecida) umas vezes; noutras, um núcleo dramático é abandonado sem qualquer explicação. A câmera, quase sempre executando travellings, transmite uma atmosfera de fluidez; simpática a tudo, transita de humanos para plantas, de plantas para estátuas e de estátuas para outros objetos se detendo em cada um com a mesma atitude reverente.

 Assim como em outros filmes do diretor, Síndrome e um século divide-se em duas partes, ambas ambientadas em hospitais, a primeira numa zona rural e a segunda numa zona urbana. Mas, como em Apichatpong um sentido (ou sentimento) de unidade fundamental das coisas prevalece sobre a dualidade, quase não notamos a mudança.  Apichatpong não vê como inconciliáveis o campo e cidade e, assim, não cai no clichê de considerar o campo o espaço da paz e da autenticidade e a cidade o espaço caótico de seres inautênticos. Ambos, o rural e o urbano, são filmados com a mesma sobriedade e serenidade.  A mesma ambientação leve, onde o verde da natureza e o branco e o translúcido do vidro reinam soberanos, domina o quadro em ambas as partes (com o verde, claro, mais presente na primeira parte); as mesmas histórias são recontadas, alterando, em quase todas elas, só o a perspectiva: o plano vira contra-plano e vice-versa. Gente com um olhar mais atento que o meu já descreveu com zelo as diferenças e similitudes das duas partes, como Fernando Secco na revista Moviola (2007). Ao invés de descrever a perícia de Apichatpong na manipulação do espaço (lembremos que ele é arquiteto de formação), me pergunto por que este jogo de espelho – ou, restringindo a pergunta a somente este Síndromes e um século: qual a função do jogo de espelhos nas duas partes? Confesso com humildade que minha resposta será provisória e incompleta, por dois motivos: 1) ainda não conseguir absorver o impacto desta obra ímpar; 2) dos cinco filmes do diretor, só assisti a dois (e, em caso como esses, a visão da obra por inteiro pode esclarecer muitos pontos). Creio que esta estrutura em espelho de Síndromes remete à simpatia cósmica de que falei linhas acima: tudo é unidade e coincidência, aqui e alhures são um mesmo lugar; nem minha vida nem a tua apresentam algo impartilhável com o outro. (Estamos a quilômetros de distância do eu interiorizado e absoluto do sujeito moderno ocidental, o sujeito solar de Descartes, para o qual todas as demais coisas são reduzidas a objetos). Isso se torna mais evidente num lance da primeira parte do filme: um rapaz declara-se a uma doutora, afirmando que ela é incapaz de entender seu estado; a doutora então lhe conta de uma paixão que teve e, neste momento, um flashback nos mostra o processo de paixão da doutora. O estranho é que dentro do flashblack a mesma cena se repete, entre ela e outra pessoa. Nem o amor, nem nada, parece constituir uma vivência única, sentida de forma absolutamente exclusiva.

 

Essa “coincidência” demonstra que, se não há nas histórias de Apichatpong aquele susto derivado da trama bem urdida, calcada na noção de causa-e-conseqüência, há sustos de outra natureza. Sustos metafísicos, digamos assim, apesar da pomposidade do termo. Grande parte do cinema atual, o de matiz mais abertamente comercial, de tanto reiterar formas de susto banais e brutais, como cabeças rolando a golpes de motosserras e coisas parecidas, nos tornou insensíveis ao poder revelador (à capacidade de susto) da imagem. Quando mais se radicalizam as explosões, o hiper-realismo do 3D e a podreira sangrenta no estilo de Jogos Mortais, mais o público, como bem o sabia Baudrillard, perde o senso de realidade e a sensibilidade. Ora, neste sentido, a que vem o susto metafísico de Apichatpong? Para mim, trata-se de um poderoso agente de reconstrução da sensibilidade do público. Os filmes de Apichatpong fluem tão levemente, tão sem ruídos que a mínima mutação de tom é prontamente recebida com espanto. Darei dois exemplos tirados de Síndromes e um século.

 Numa sala um tanto bagunçada, cheia de próteses de pernas, três médicos dialogam sobre doenças; uma médica, porque vai se apresentar em programa de televisão, retira de uma prótese uma garrafa bebida alcoólica (!), sob o pretexto de ganhar coragem para mostrar a cara na tevê; pessoas entram e ela pratica a cura pelo equilíbrio dos chakras em um paciente. Nesta hora, a câmera recua e uma das personagens (também médica) olha-a com pasmo, enquanto as outras continuam a debater normalmente. A imagem daquela mulher olhando para câmera desnaturaliza o espetáculo não da forma desmistificadora a que estamos acostumados em um Bressane ou um Godard – em que a ruptura do espetáculo liga-se a um questionamento do “cinema burguês” e seu representação realista –, mas de uma forma assustadora, perturbadora mesmo, a ponto de nos lembrar um David Lynch, em seu surrealismo.

Noutra cena, a câmera desliza pelos corredores do hospital, num travelling lento, até se deparar com uma sala em construção, cheia de máquinas e ferramentas, onde se encontra uma espécie de aspirador em forma de tromba de elefante (lembremos o valor simbólico-espiritual deste animal na Tailândia). A câmera lentamente vai focando o orifício dessa espécie de aspirador, que suga uma fumaça que brota de algum lugar daquele ambiente. A música que acompanha toda esta tomada é misteriosa, quase perturbadora. A atmosfera que se cria, então, não exatamente contrasta com a leveza que é a tônica do filme, mas empresta-lhe certa aura misteriosa, quase soturna. Não é nada fácil verbalizar o clima ali construído, daí o titubeio desses “quase”. Há ali uma força centrípeta que, leve e soturna a um só tempo, parece querer engolir todo aquele ambiente e arrojá-lo noutro canto. E, de fato, num corte seco Apichatpong nos joga no primeiro espaço fora do hospital: estamos no espaço urbano de Bangkok, mas, como que regenerado de todas as suas síndromes, neste espaço o verde se harmoniza com o concreto e os humanos celebram a vida entre si. Tudo, ao fim, termina numa dança coletiva ao ar livre. Utopia de uma nova humanidade? Difícil responder com precisão. O cinema de Apichatpong, assim como o de Tarkovski, é franco em sua posição contra a redução materialista e racionalista da idéia de homem, mas evita transformar a poesia em mera pátina a cobrir um programa doutrinário; não se trata, pois, daquele simbolismo tecnicamente requintado, mas facilmente penetrável, passível de barateamento ao ser verbalizado em surradas mensagem edificantes.

Apichatpong insinua que o potencial transformador, eu diria mesmo transgressor, de um filme reside antes em sua força propositiva, capaz de afirmar uma positividade que ainda não vivemos, do que na mímesis da violência e do cinismo que confirma, mesmo que em pauta crítica, a negatividade em que vivemos. Dizer que Apichatpong é propositivo não é dizer que ele faz arte utilitária, algo como um panfleto budista. Propositivo aqui é uma atitude construtiva de ensaiar uma nova (nova talvez pra mim, um ocidental racionalista) forma de constituir-se como ser no mundo, atitude que acompanha toda grande arte, que se recusa apenas a documentar os descaminhos da sociedade. Neste sentido, por mais que eu respeite um Walter Salles (Central do Brasil), um González Iñárritu (Amores Brutos), um Gaspar Noé (Irreversível) ou Bahman Ghobadi (Tempo de embebedar cavalos), eles estão um passo aquém de Apichatpong na medida em que conhecem bem os males do mundo (não só: sabem também representá-lo com justeza), mas são incapazes de apontar uma mínima fenda onde se possa vislumbrar algo além deste cárcere opressor em que vivemos. 

Wanderson Lima é poeta e ensaísta. Professor de literatura da Universidade Estadual do Piauí – UESPI e doutorando em Literatura Comparada pela UFRN. É co-editor da revista dEsenrEdoS (http://www.desenredos.com.br/) e mantém o blog O Fazedor (http://blogdowandersonlima.blogspot.com/)

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Este post tem 2 comentários

  1. Author Image
    Gabriel

    Acabei de ver esse filme no Cine Conhecimento, na futura. E caraca, muito estranho. Aquela cena do aspirador de fumaça me deixou muito tenso. E a porta rangendo nos créditos finais, pqp mas adorei a ideia

  2. Author Image
    Ze

    O homem em relação misturada com as coisas (eu não era homem, serei outra coisa, as galinhas se apoderaram de mim, eu manco na paisagem das coisas), o homem senhor das coisas e só (eu era homem, sou homem, serei homem, as galinhas são um sonho, eu manco sozinho na nova paisagem …). Um eclipse (o cano do consultório) e o epílogo (não são duas partes, são três): o que é, o que será a Tailândia (e todos os homens) feita desses mundos que se encontram e produzem uma nova paisagem (saberemos colher nossas riquezas)?

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