Faroeste Caboclo (René Sampaio, 2013)

Por João Paulo Capelotti*

Tanto quanto o diálogo entre as artes permite, é possível transportar para o cinema livros, quadrinhos e até pinturas (algo magistralmente provado em Moça com brinco de pérola). Recentemente, têm se tornado comuns produções amparadas em jogos de videogame (Doom, Max Payne) e de tabuleiro (Battleship), bem como “releituras” de contos de fadas. Até um site, pode-se dizer, tem filme (A rede social).

Menos frequentes são intervenções da música. Apesar de ela ser peça-chave de todo um gênero (o musical) e de algumas canções e trilhas incidentais serem antológicas, não há muitas músicas que inspiraram filmes. Um exemplo, além do recente Abismo prateado, é Hurricane, música de protesto de Bob Dylan contra fatos efetivamente ocorridos nos Estados Unidos na década de 60. A adaptação cinematográfica, dirigida por Norman Jewinson, veio em 1999, com Denzel Washington no papel do boxeador que é preso injustamente sob acusação de assassinato, embora fique claro que, na verdade, sua prisão deveu-se ao simples fato de ser negro.

Em Faroeste Caboclo, concebido a partir da faixa homônima da banda brasiliense Legião Urbana, o protagonista também é negro e vítima de racismo. Ainda que não seja herói, e que suas facetas ameaçadoras sejam bastante bem retratadas, ficam igualmente evidentes as circunstâncias desfavoráveis que permeiam sua trajetória. Trata-se de um personagem complexo, contraditório, e por isso mesmo bastante palpável – características que são potencializadas pelo excelente desempenho de Fabrício Boliveira, que, especialmente nos momentos mais tensos, evoca a atuação icônica de Leandro Firmino da Hora como Zé Pequeno em Cidade de Deus.

A trama segue os passos de João de Santo Cristo, que emigra do sertão nordestino para Brasília no início dos anos 80. Lá se apaixona por Maria Lúcia (Ísis Valverde) ao mesmo tempo em que se envolve com o tráfico de drogas, polarizado entre seu primo distante Pablo (César Troncoso) e o playboy sarcástico Jeremias (Felipe Abib), que vira seu inimigo mortal.

Por se tratar de canção muito executada, de uma das bandas mais famosas do país, poderia haver uma tentação simplificadora em simplesmente emular os versos de Renato Russo para a tela. E aí reside o primeiro acerto de Faroeste Caboclo: a independência que o filme sustenta. Parte dela pode ser creditada ao bom trabalho dos roteiristas Marcos Bernstein (de Central do Brasil e do recente Somos tão jovens), Victor Atherino e José Carvalho. Excluem-se algumas passagens da infância do protagonista (que retrata somente alguns episódios essenciais, como a morte do pai) e tomam-se liberdades criativas que soam orgânicas (como o fato de o duelo final entre João e Jeremias não ser televisionado). As decisões são benéficas porque, além de tirar parte da previsibilidade do espectador que conheça a letra do Legião Urbana, põem em relevo que este é um filme inspirado por uma música, e não um videoclipe.

Claro que há diversos elementos que pontuam a fonte da história – desde as famosas notas de violão numa das cenas iniciais até versos conhecidos que se tornam diálogos (como “Tem bagulho bom aí!”). Mas, como eles não são usados em excesso, cumprem sua função de reconhecimento (ou tributo, ou muleta, dependendo da perspectiva) sem que o espectador se desligue do filme. Auxilia também o fato de várias remissões serem discretas. Algumas são puramente imagéticas, dispensando diálogos expositivos, como o encantamento de João com as luzes de Natal. Outras são até irônicas ao introduzir elementos da música que não serão abordados pelo filme (por exemplo, quando o ônibus do protagonista passa em frente ao Palácio do Planalto, sendo que em nenhum momento ele menciona, como no verso final, querer ir “falar com o presidente, para ajudar toda essa gente que só faz sofrer”). Mas que o espectador não se engane: apesar de não expor essa intenção em algum diálogo piegas, a obra toda pode ser encarada exatamente como um discurso sobre seca, migração, pobreza, falta de perspectivas, corrupção policial, entre tantos outros temas que só fazem sofrer.

Esse tom pesado que se imprime ao filme Faroeste caboclo, por certo, já estava na música que lhe deu origem. Mas se os elementos fabulescos foram drenados pelo roteiro em prol do aumento da verossimilhança, a direção segue o mesmo tom, imprimindo à maioria das cenas um tom bastante pesado – afinal, trata-se de uma história sobre tráfico de drogas e violência. O registro cru de machucados que demoram a se curar e tiros que arrancam jorros de sangue reiteram a dimensão incomodamente próxima e real desses personagens fictícios e seus problemas, que em grande parte não diferem daqueles vivenciados por parcela significativa da população.

A montagem contribui a essa proposta narrativa, como bem demonstra a sequência na Rockonha. Nessa ocasião em particular, a mise en scene também auxilia na dosagem da quantidade de informação passada ao telespectador, criando três reviravoltas a respeito de qual personagem está em vantagem numérica sobre o oponente. Essa habilidade da montagem em criar tensão, todavia, não significa falta de percepção do ritmo mais adequado a cada passagem. A par do início um tanto contemplativo do filme, que traz planos mais estáticos e mais longos a respeito da infância do protagonista no Nordeste, a trama vai progredindo no nível de tensão à medida em que João se afunda no tráfico.

Nessa perspectiva, o próprio contexto pede tomadas internas (em ambientes mais escuros) e à noite. A escolha parece adequada à narrativa, pois o personagem também, de certo modo, está caminhando em direção às trevas. Essa fotografia predominantemente em tons escuros entrega uma visão de mundo bastante desoladora e sem esperanças para os problemas sociais e de segurança pública que servem de pano de fundo à história. Por outro lado, os planos finais, fartamente iluminados, por se passarem num campo de futebol às duas da tarde, não destoam da lógica visual do longa por estabelecerem uma rima temática com os minutos iniciais. As duas pontas são marcadas pelas mortes mais importantes e dramáticas, em ambientes áridos e estéreis que traduzem desolação. Talvez o intento do diretor René Sampaio tenha sido deixar às claras que a consequência de continuarmos num faroeste caboclo é o perecimento de tudo e todos, indistintamente.

*João Paulo Capelloti é graduado em Direito pela UNESP/Franca e doutorando e mestre em Direito pela UFPR.

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