Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo (Luís Alberto Rocha Melo, 2013)

UM VÍDEO DE CINEMA NUMA SALA DIGITAL

Por Guilherme Sarmiento*

Certamente, o Facebook pode obcecar as pessoas muito sensíveis. Atrás de cada perfil, por mais falso que seja, existe um ego lutando para se afirmar e se, ontem, os espectadores contentavam-se em ter sua pulsão escópica satisfeita por imagens em movimento, tornando-se solitários voyeurs, hoje isto já não é suficientemente atrativo para o nosso desejo por um minuto de atenção. O espectador contemporâneo não quer ser somente a vítima passiva de seu afetamento, mas o produtor de qualquer afetação que lhe faça notável. Não basta olhar; mas ser visto. Foi com este ânimo que vi passar pela minha tela a chamada do site da Alumbramento, cujo mérito inicial foi o de deslocar sensivelmente o meu ego, motivando toda a minha vontade para exprimir minha aprovação pela iniciativa ao “curtir” a estreia do longa Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo, de Luís Alberto Rocha Melo. Quando automaticamente compartilhei o convite na minha página estava selando um pacto com esta espectatorialidade interativa e, a partir dali, resolvi perscrutar meus atos e minhas emoções de internauta, como um protestante diante de seus pecados, conforme correspondia às expectativas do convite virtual.

A sessão estava programada para iniciar na segunda, dia 27 de maio. Diariamente, a Alumbramento mandava chamadas pelo Facebook, aguçando minha curiosidade para aquela nova forma de distribuição e fruição fílmica. Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo ficaria 10 dias em cartaz. Mas o que implicava “entrar em cartaz” na internet? Que tipo de ressonâncias esta expressão, tão ligada a materialidade e a arquitetura do aparato cinematográfico, produziria ao se desmaterializar em contato com estes labirintos hipermidiáticos? Queria entender como as novas mídias se retroalimentavam de determinadas construções para se legitimar, apropriando-se de velhas palavras para esvaziá-las de seu sentido original e, com isso, empregando-as de forma mais abrangente, expandindo o que se entendia por cinema sem que se perdesse o núcleo irradiador de sua grandeza: linguagem audiovisual.

Isto me veio à mente, pois Luís Alberto Rocha Melo era meu amigo e, como eu, viveu toda a transição do sistema analógico para o digital, entre as décadas de 1990 e os anos 2000. Pode parecer estranho, mas há dez anos quem realizava um vídeo tinha um enorme escrúpulo em definir seu processo como “gravação” e não como filmagem, delimitando não somente uma diferenciação de formato, ou estética, mas de status

profissional. Passei boa parte de minha formação como cineasta fazendo esta distinção e, em uma escola de cinema, todo estudante aguardava ansiosamente pelo dia em que deixaria aqueles pobres e amadores exercícios em SVHs para ingressar na textura incomparável da película em 16 mm. Queria saber como Nenhuma fórmula para a contemporânea visão de mundo e seu autor responderiam ao desafio de se adaptar aos novos tempos e, também, eu, como espectador, me comportaria diante de uma experiência até então inédita para mim: assistir a uma estreia cinematográfica na internet.

Meu primeiro estranhamento veio logo ao descobrir que uma sessão na internet não existe propriamente como sessão. Podia-se assistir ao filme a qualquer momento em que se acessasse o site da produtora. Lá estava a janela do Vimeo com a cena onde Karkóvski, interpretado pelo carismático Roman Stulbach, beijava os pés de Carola Becker, encarada com leveza felina por Anna Karinne Ballalai, convidando a que apertássemos o ícone digital play e iniciássemos a exibição de Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo assim que entrávamos na página. Esta possibilidade de acondicionar cada vez mais a programação à “zona de conforto” do espectador, delegando a ele total domínio sobre o tempo de fruição da obra, produzia uma sensação de liberdade e exclusividade indescritíveis. Luís Alberto Rocha Melo, como a sua protagonista, parecia brindar o espectador com um trabalho múltiplo, monumental. Todos assistiam obviamente a mesma obra, mas esta se encaixava perfeitamente bem às necessidades de cada um, reproduzindo-se não a partir de uma matriz original, mas emanando constantemente de um protótipo suspenso num eterno presente.

Este é um ideal inalcançável para a televisão, já que se exige do veículo uma mobilidade cujo extremo será impossível alcançar por um eletrodoméstico afixado, geralmente, diante de uma poltrona. A espectatorialidade hipermidiática parece-se muito com a televisiva, porém, a satisfação de se sentir “parte” da obra, produto da maior autonomia do espectador, coalha o ambiente de ruídos que habitam estes mundos particulares e interferem diretamente na sua fruição com muito mais intensidade. Dar liberdade é oferecer ao homem motivos para se perder. Eu, por exemplo, logo que me vi totalmente seduzido pelo filme de Luís Alberto Rocha Melo tive de interromper a sessão para atender as solicitações de meu filho. Ele desenhara um dragão de fogo e o mostrava para mim enquanto Carola Becker, numa das sequências mais hilárias do filme, terminava seu relacionamento com Mickey pelo telefone e pedia para o antigo amante sair de seu

apartamento. Este tipo de interferência provinha das coisas e dos seres dispostos no mesmo nível espacial no qual meu corpo se situava. Mas existiam outros níveis de interatividade que constantemente solicitavam um desdobramento cada vez mais intensivo de minha atenção.

Assistir a um filme na internet é como ir acendendo pequenas velas em volta de um altar, sem deixar que nenhuma se apague até o fim do culto. As janelas ficam minimizadas nas bordas da tela, acesas, ainda que o fervor de nossa atenção concentre-se no centro da imagem. Somos constantemente assediados pela margem da comunicação, abrindo constantes parênteses antes que a emissão da mensagem se conclua. Neste modelo de enunciação, o enunciador mais deflagra a busca incessante por informações do que detém a totalidade do saber. Durante a exibição de Nenhuma fórmula para a contemporânea visão de mundo acessei minha caixa postal, respondi on line perguntas de alunos pelo facebook e ainda pesquisei alguns verbetes para entender melhor as escolhas artísticas de Luís Alberto Rocha Melo. Quando a personagem de Karkóvski, o encenador polonês, surgiu na trama, fui até o Google para retirar dúvidas sobre o parentesco do ator Roman Stulbach com Dan Stulbach. Ali, pude conferir, sem interromper a narrativa, uma pequena biografia do ator, um dos grandes nomes do curta metragem no Brasil.

Mas, diante deste incansável assédio transversal à obra, como dar unidade a experiência de assistir Nenhuma fórmula para a contemporânea visão de mundo? O filme de Luís Alberto Rocha Melo, alimentando-se da cultura hipermidiática sem digerir completamente suas nervuras, ressalta justamente aquilo que seu título expressa: dentro desta nova interface, as fórmulas ainda são inúteis. E esta expressão se justifica com toda a sua contundência por ser uma obra, em sua essência, iconoclasta, entendendo a iconoclastia a partir da desconstrução irônica de seu significado original, pois parte do princípio de que todas as imagens já foram feitas e só nos resta revisitar os arquivos de nossa memória, reescrevendo o que já foi escrito, mostrando o que já foi mostrado e anunciando, através da elaboração artística, que aquilo que se vê na tela é um fantasma de um fantasma. Qualquer imagem não vive mais por si mesma. Não tem como destruir algo que não está mais ali. Existe no filme esta consciência tocante de que o futuro do cinema encontra-se perdido no passado, e esta nostalgia planta-se dentro da rede para compor um painel, capaz de abarcar tudo, sem nada perder.

Após a passagem dos créditos finais fiquei mudo: assistir à uma estreia na internet impossibilita você de parabenizar o diretor pessoalmente pelo feito. Para que minhas impressões não se perdessem por completo, resolvi escrever uma mensagem no site da Alumbramento atestando que assisti ao filme Nenhuma fórmula para a contemporânea visão de mundo. Gostaria que Luís Alberto Rocha Melo, assim como as pessoas de meu círculo de amizade, soubesse de minha admiração pela iniciativa: “entre São Paulo e Rio de Janeiro: entre Sganzerla e Woody Allen”, coloquei como comentário, após refletir alguns instantes uma frase expressiva de meu apreço pela obra. Foi com felicidade que, alguns dias depois, vi que minha mensagem um tanto sumária estava com uma única, porém preciosa, “curtida”: era o diretor, atestando que, também, havia me visto. E assim se completou o ciclo de minha participação neste lançamento fílmico virtual.

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