THE IDOL (2023) E O ESVAZIAMENTO ESTILIZADO

Por: Lucas Mariotti 

O horário nobre de domingo à noite da consagrada emissora de televisão americana HBO vinha com um fluxo de produções de qualidade impressionante desde o segundo semestre de 2022. De agosto até outubro do ano passado tivemos um êxito com o spin off de uma das séries mais importantes da televisão contemporânea, com House of the Dragon. De outubro até dezembro houve o retorno de um dos seriados antológicos mais premiados da atualidade, com The White Lotus. Já em 2023, de janeiro até março presenciamos uma das adaptações de videogame mais aguardadas da história, com The Last of Us. E de março até maio fomos agraciados com a última temporada de um dos últimos fenômenos da emissora, com Succession

Tudo parecia correr bem com os produtos da marca HBO, já que todas as séries citadas tiveram ótimos desempenhos de audiência e na recepção da crítica. Entretanto, esse ápice parecia correr um perigo iminente com o lançamento de uma grande aposta da emissora para 2023: The Idol, seriado que aborda e critica o mundo complexo e vil das celebridades da indústria fonográfica através de Jocelyn (Lily-Rose Depp), uma estrela do pop que está passando por um processo de ressurgimento e mudança na sua imagem como cantora, até que durante esse momento ela conhece Tedros (Abel “The Weeknd” Tesfaye), um empresário e dono de uma boate, que se envolve em um intenso e tóxico relacionamento com a cantora e passa a influenciá-la no direcionamento da sua carreira. 

Antes da sua grande pré-estreia na 76ª edição do Festival de Cannes, o seriado foi objeto de uma matéria escrita pela repórter de entretenimento Cheyenne Roundtree para a revista Rolling Stones, publicada no dia primeiro de março de 2023. De acordo com a jornalista, treze fontes anônimas de membros da produção da série explanaram sobre como os bastidores da obra foram problemáticos e como a concepção criativa da obra saiu complementarmente do eixo devido às polêmicas. O entusiasmo diante da estreia do novo produto da HBO começou a ser ameaçado desde então.

Figura 1 – The Idol (2023) – Foto de Divulgação – Fonte: Google

Originalmente, o seriado estava contando com Amy Seimetz, atriz e filmaker norte-americana, como showrunner. Porém, com rumores de 80% do material da temporada já filmado, a diretora abandonou o seu cargo após conflitos criativos com o cantor e compositor (e agora ator) The Weeknd, que é produtor executivo da série. Segundo a matéria da Rolling Stones citada anteriormente, o artista teria alegado que a narrativa estava propondo uma “perspectiva muito feminina”. 

A partir desse choque de interesses, o próprio Abel Tesfaye, conhecido como The Weeknd, teria convidado o diretor e roteirista Sam Levinson, criador de um grande sucesso da HBO (Euphoria), para desenvolver o projeto sob um novo direcionamento que agradasse ambos os artistas, mas o resultado disso é desastroso. Outros relatos da matéria comentam sobre problemáticas dessa nova escolha de direção, já que os entrevistados criticam o conteúdo sexual exploratório e gratuito da obra e o posicionamento satírico falho e contraditório da narrativa. 

No dia 22 de maio de 2023, The Idol marca presença na edição de um grande evento da indústria cinematográfica. O Festival de Cannes exibiu os dois primeiros episódios da primeira temporada do seriado e a recepção foi muito conturbada. Os mais variados sites e revistas de críticas de cinema mais relevantes da mídia estadunidense, como Variety, The Hollywood Reporter, Rolling Stones dentre outros, realçaram muitos defeitos tanto dos aspectos técnicos da produção, quanto das abordagens temáticas e da questão ética e moral diante da abordagem narrativa provocativa.

Dizer que The Idol é ruim se tornou de certa forma redundante, já que esse contexto problemático de produção atrapalhou completamente a concepção e realização do seriado. Um fator sempre reforçado pelas críticas é o roteiro, pois os diálogos péssimos e um arranjo narrativo e dramático frágil é muito perceptível, dado que os elementos da trama são muito inconsistentes, incoerentes e entediantes. Fora esses problemas estruturais no desenvolvimento dos personagens e suas histórias, a perspectiva masculina dos idealizadores sobre a trama gera momentos deploráveis de misoginia, hiper sexualização gratuita, reforço de estereótipos dentre outras problemáticas que merecem um aprofundamento adequado à parte. 

O foco aqui, na verdade, busca analisar um elemento composicional da série que recebeu mais elogios: o visual. A cinematografia e a composição imagética e atmosférica do seriado são fatores constantemente muito elogiados nos trabalhos de Sam Levinson, uma vez que o diretor é capaz de usufruir de seus orçamentos para criar aparências cinematográficas realmente bonitas e até mesmo inventivas. Entretanto, um problema constante de análises da linguagem audiovisual de certas produções é desassociar a forma do conteúdo daquela obra, algo que é equivocado, pois ambos os elementos compõem um código linguístico próprio, um complementando o outro e criando uma unidade e identidade ímpar para os produtos audiovisuais. 

Dessa forma, a intenção aqui é destacar que, assim como o teor narrativo e temático, o aspecto composicional de imagem e som em The Idol é extremamente pobre e superficial, reforçando como toda essa produção é um exemplo de estilização vazia da composição linguística audiovisual, existindo nesse contexto apenas para servir uma vaidade dos realizadores, que estão mais preocupados em criar uma fantasia sexual perturbadora e uma provocação rasa do que construir e elaborar uma narrativa complexa e coesa, que busca se aprofundar e criticar aquilo que a série justamente se tornou: um projeto de egocentrismo. 

Esse tipo de pretensiosidade transtornada reforça ideias apresentadas no artigo da crítica cinematográfica e feminista Laura Mulvey, intitulado “Prazer Visual e Cinema Narrativo”. Nesse texto, a autora usufrui de conceitos psicanalistas para evidenciar como o prazer na experiência audiovisual desfruta de um olhar escopofílico-voyeurista, no qual a figura feminina, no âmbito da representação, está submissa a uma posição passiva, sendo usada de matéria bruta para um personagem masculino progredir a narrativa estruturada para atormentar a mulher protagonista, como ocorre entre Tedros e Jocelyn.

Tendo essas concepções estabelecidas, é nítido como os idealizadores e realizadores do seriado estão preocupados em causar um impacto erótico e visual, posicionando a personagem feminina principal em um papel exibicionista tradicional, com uma construção de uma figura constantemente e simultaneamente exibida e observada, reforçando o voyeurismo escopofílico da representação da mulher nas obras audiovisuais. Porém, ao invés de usufruir dessa construção narrativa predominante para trazer algo novo ou gerar um comentário crítico sobre os arquétipos, o diretor e os roteiristas acabam apenas reforçando o peso problemático do olhar masculino, em que se projeta uma fantasia na figura feminina, produzindo uma estilização dessa representação completamente desprovida de uma construção dramática potente, tornando-se uma produção apelativa e frívola no seu conteúdo e na sua forma. 

Figura 2 – The Idol (2023) – Foto de Divulgação – Fonte: Google

Existe um termo muito utilizado para estudar o cinema e a linguagem audiovisual que é denominado mise-en-scène, que significa basicamente encenação em francês. Essa expressão centraliza um olhar para os códigos cinematográficos sob uma perspectiva plástica, de composição da cena registrada pelo aparato fílmico, tornando o cinema (e suas linguagens variantes) um dispositivo de representação, que usufrui da junção dos seus itens composicionais para promover uma estruturação de imagem e som, como o uso da iluminação, dos movimentos de câmera e enquadramentos, do cenário, dos figurinos, da marcação e atuação dos atores, da sonoplastia, da trilha sonora, da montagem etc.

No livro “A mise en scène no cinema: do clássico ao cinema de fluxo”, do pesquisador e crítico Luiz Carlos Oliveira Jr., o autor realiza toda uma trajetória histórica para analisar e refletir sobre as mais variadas possibilidades de encenação que o audiovisual é capaz de exercer. A partir desse retrospecto histórico, percebe-se que não existe um jeito certo ou errado de encenar, porque cada trabalho de composição cinematográfica deve ser coerente com a proposta criativa da diegese, ou seja, deve estar de acordo com a concepção narrativa e audiovisual que se pretende elaborar para que, através da encenação, alcance os efeitos que almeja para tanto impactar o espectador, quanto dominar a progressão dramática e linguística da obra. 

Durante a história das teorias do cinema, duas tendências estético-narrativas manifestaram princípios distintos que interferem diretamente na encenação audiovisual. O primeiro caso trata-se das Teorias Miméticas, com seu principal representante, o crítico de cinema André Bazin, em que se prioriza na linguagem audiovisual uma mimese, ou seja, uma imitação da realidade. Dessa forma, essa ideia de abordagem mais realista na composição linguística do cinema pretende emular as ambiguidades e particularidades do mundo real através dos códigos de imagem e som. 

Já uma segunda tendência seriam as Teorias Diegéticas, com o cineasta e teórico Sergei Eisenstein como exemplar, nas quais há uma preferência maior de usar do poder discursivo da linguagem audiovisual, ou seja, a capacidade ideológica que as variadas combinações de imagens e sons têm de criar significados, gerando uma abordagem visual e sonora sem compromisso com o realismo. 

Para melhor exemplificar essas ideias, as quais foram retiradas do livro “A estética do filme” escrito por Jacques Aumont, vamos analisar uma outra produção do diretor e roteirista Sam Levinson: a primeira temporada da série Euphoria. O seriado acompanha um grupo de adolescentes ligados a tópicos delicados como transtornos mentais, vício em drogas, problemas familiares dentre outras questões durante o período escolar, momento em que estão em processo de amadurecimento. A estética dessa temporada composta por tonalidades de roxo e glitters, além de muitos movimentos de câmera e enquadramentos alinhados a uma montagem inventiva que casa com a trilha sonora hipnotizante, foi um enorme sucesso no seu lançamento por conta de sua eficiência. 

Todas as decisões audiovisuais inseridas no seriado criam um universo diegético único com regras e convenções próprias que auxiliam na constituição atmosférica da série, a qual condiz com as narrativas dos seus personagens. Sendo assim, percebe-se que há uma coerência com a proposta audiovisual e dramática da obra, tendo em vista que o showrunner Sam Levinson se apropria dos seus elementos de composição plástica da imagem e do som para constituir uma realidade própria para aquelas histórias: um tipo de realismo quebrado, em que esses adolescentes tão problemáticos vivem em um tipo de fantasia estranha e estilizada para lidar com as próprias disfuncionalidades. 

Figura 3 – Euphoria (2019) – Foto de Divulgação – Fonte: Google 

Dessa forma, entende-se que o exemplo de Euphoria demonstra uma amostra bem sucedida de coerência na proposta de mise-en-scène, em razão da mistura de teorias miméticas e diegéticas de linguagens audiovisuais para servir o enredo, e não para funcionar à deriva da narrativa. Sabendo da capacidade de Sam Levinson de dominar os códigos linguísticos do storytelling por imagem e som em outros projetos, é muito frustrante perceber como em The Idol a potencialidade estético-narrativa foi tão fragmentada e alterada, perdendo-se das intenções pretendidas de um estilo ousado. 

É inegável que o seriado em questão possui seu teor de fotogenia, ou seja, detém imagens bem registradas e representadas pela cinematografia. O valor de produção da série ajuda na sua composição plástica ao evidenciar o luxuoso e corporativo mundo das celebridades e o clima característico de Los Angeles. Todavia, a intenção pretensiosa de chocar o espectador com seu conteúdo psicossexual através de uma encenação estilizada resulta paradoxalmente em um vazio formalista entediante.

Todos os problemas nos bastidores do seriado são muito perceptíveis ao longo do consumo da série, pois o roteiro remendado e a direção improvisada não conseguem estabelecer qualquer tipo de complexidade em relação ao arco dramático de seus personagens. Dessa forma, a escolha estética audiovisual, além de não contribuir narrativamente para a representação, não é capaz de imprimir ritmo e continuidade na trama, tornando-se apenas um festival de imagens bonitas sem um apelo. 

Percebe-se, então, como a forma e o conteúdo de um produto audiovisual não podem ser analisadas separadamente, já que ambos os componentes estão a serviço da construção de uma linguagem, seja para representar uma realidade ou estabelecer um discurso. The Idol falha miseravelmente na tentativa de desenvolver um comentário crítico sobre o seu conteúdo, resultando em um trabalho estético e atmosférico igualmente vazio ao usufruir de uma estilização plástica pretensiosa, prejudicando quaisquer momentos curtos com um potencial de qualidade genuína ao longo da temporada. 

Figura 4 – The Idol (2023) – Foto de Divulgação – Fonte: Google

REFERÊNCIAS: 

OLIVEIRA JÚNIOR, Luiz Carlos. “A mise-en-scène no cinema: do clássico ao cinema de fluxo”. Campinas: Papirus, 2013. 

AUMONT, Jacques. “Ideologias da montagem”. In: AUMONT, J. et al, A estética do filme, Campinas, Papirus, 1995, págs. 70-87. 

STAM Robert. “A essência do cinema”. In: STAM R. et al, Introdução à teoria do cinema, Campinas, Papirus, 2003, págs. 49-53. 

MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo” in XAVIER (ed), A experiência do cinema, Rio de Janeiro, Graal, 1983, pp. 435-453. 

ROUNDTREE, Cheyenne. ‘The Idol’: How HBO’s Next ‘Euphoria’ Became Twisted ‘Torture Porn’. Rolling Stones, 2023. Disponível em: https://www.rollingstone.com/tv-movies/tv-movie features/the-idol-hbo-next-euphoria-torture-porn-the-weeknd-sam-levinson-lily-rose-depp blackpink-jennie-1234688754/. Acesso em: 27 jul. 2023. 

THE IDOL. Direção e Produção: Sam Levinson. Estados Unidos: HBO e A24, 2023. Streaming.

EUPHORIA. Direção e Produção: Sam Levinson. Estados Unidos: HBO e A24, 2019. Streaming.

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