Touro Indomável: o Canto do Cisne de Scorsese

Em retrospecto, a funcionalidade de alguns filmes de Scorsese passa pela instituição familiar — com laços sanguíneos ou não, tramas voltadas para o núcleo familiar, geralmente envolto de homens responsáveis pela constituição e equilíbrio de suas esposas, filhas e amigos, é presente em obras como O Irlândes e Os Bons Companheiros, que apresentam a controvérsia entre uma forte imagem social e uma decadente relação com seus pares mais próximos. Em Touro Indomável, tal fator é a pedra angular da narrativa: a divergência interna de Jake LaMotta, um boxeador que nos ringues é imbatível, mas fora deles acumula relações amorosas e familiares fracassadas.

Logo no início da obra, Jake LaMotta, em flashforward, disserta acerca de sua gloriosa carreira de altos e baixos e termina com uma emblemática sequência de frases referenciando obras de Shakespeare, concluindo com a triunfal frase: “Então me dê um palco, onde esse touro pode transbordar sua ira. E apesar de poder lutar, eu prefiro recitar. Isso é entretenimento”. No início, essa sequência inicial pode se tratar de apenas uma introdução à decadência posturada de LaMotta, mas, em contexto, soa muito mais potente. Se Scorsese iniciou sua esplendorosa carreira com louros e prêmios por Mean Streets e Taxi Driver, logo recebeu o primeiro baque: New York, New York, à época de seu lançamento, recebeu críticas e bilheterias mistas, levando ao primeiro “knockdown” de Scorsese. Indo mais afundo, o diretor passava por uma grave crise de vício em drogas pouco antes da produção de Touro Indomável — em entrevista ao Hollywood Reporter em 2016, cita, inclusive, que chegou a pesar 49 quilos e parou no hospital pela sua decadista situação. Após dez dias e dez noites internado, sentiu-se como o homem cego do Novo Testamento: antes cego, agora capaz de ver novamente. Quase como um milagre, tal metáfora utilizada se compõe visualmente no filme estrelado por DeNiro e lançado em 1980.

Posteriormente na narrativa, Vickie, fator fundamental para o fim de seu relacionamento com a primeira esposa de LaMotta, surge como a inicial aparição de Kim Novak em Vertigo: envolta em um close e com todos os olhares voltados a ela, suprimindo imediatamente a imagética de Lenore, que era representada exclusivamente no limite da profundidade de campo dos quadros, reclusa, irritada e de costas — fadada ao fracasso através da linguagem cinematográfica. Nisso, é quase possível ouvir a voz do mestre Scorsese ao fundo: isso é entretenimento. Mas não somente: isso é Cinema.

Poucos minutos de projeção depois, em um LaMotta claramente interessado por Vickie e incentivado por seu irmão Joey a conversar com ela, as glamourizações se separam da linguagem cinematográfica. Visualmente, a divergência é intrínseca entre o futuro casal: em um aceno imagético, grades de um parque separam os dois. A imponência some, e sorrisos bobos acompanhados de um papo fútil sobre carros consome a cena, em um ar constrangedor e propositalmente fora de tom. A priori, a relação dos dois soa como um sonho, seja pela delicadeza que ambos possuem um com o outro, seja pela onírica sequência colorida em tons pastéis, dotada de cenas de casamento de Joey e a felicidade quase inverossímil de tão contundente de Jake com a agora Vickie LaMotta. Filhos surgem, churrascos de família acontecem, e logo a atmosfera devaneante desaparece e a realidade retorna: o marcante preto e branco regressa, assim como as dificuldades da carreira do boxeador. As discussões, então ausentes por alguns minutos de rodagem, providenciam campos e contracampos entre os irmãos auxiliados apenas pela presença da trilha sonora da televisão, a qual exibe animações para os filhos dos casais.

Após esses eventos, é curioso observar como as lutas se retraem por longos minutos para dar espaço às divergências na vida pessoal do lutador, e retornam para derrocar seu ego: perdendo de propósito para ganhar dinheiro, sua próxima luta se define visualmente por meio de um plano-sequência, expressando a autoconfiança pelo não cessamento dos planos e afirmando, visualmente, que não irá desistir de seus planos de atingir o auge da carreira. Curiosamente, em outro filme de Scorsese supracitado, Os Bons Companheiros, um plano-sequência protagonizado por Ray Liotta e Lorraine Bracco possui o mesmo artífice: em seu contexto, define a desobediência dos personagens de Liotta e Bracco às regras padrão, atingindo o que desejam através do poder. Todavia, se em Os Bons Companheiros a pedra angular é o poder mafioso, em Touro Indomável é o poder egoico e familiar de LaMotta.

Quase como uma vertigem, o filme segue seus entrelaces familiares que convergem na inevitável decadência da carreira devido à idade do boxeador: entre entrevistas em mansões e luxuosos carros em Miami, se reinventa para trabalhar em seu próprio bar, se utilizando de piadas sobre sua história. Ciclicamente, flerta com jovens menores de idade, assim como fez com Vickie ao conhecê-la ainda com 15 anos.

A sequência final, dotada de uma forte melancolia, exibe, por fim, sua decadência completa: já fora de forma e se apresentando em bares fracassados com pouquíssimos clientes, funciona como uma fresta aberta para a consequência de seus atos. Afastado de família e amigos, restou apenas seu mito. A epopeia de Jake LaMotta se resume em curto discurso, voltado ao espelho. Sem plateia ou uma alma para testemunhar, restou apenas a construção almejada por si mesmo: o caminho de poder egoísta foi concluído em seu canto do cisne. E não há ninguém para ouvir tal canção.