Um filme para Nick (Nicholas Ray e Wim Wenders, 1979)

Por Leonardo Barbosa Rossato*

Corta!

André Bazin foi um dos grandes críticos de cinema após a Segunda Guerra. Um dos fundadores da famosa revista Cahiers du Cinema, sempre propôs um cinema no qual se aliasse ética e estética e que a câmera captasse a realidade a sua volta sem intervenções de montagem, de interpretações para além da Imagem. Por isso, foi um dos teóricos do neo-realismo italiano realizado por cineastas como Rossellini, que filmava um mundo que sobrevivia ao caos e lutava humanamente, através da arte, para entender e ver este mundo. Imantado por esta ideologia artística – e taí o porquê desse parágrafo –, Bazin escreveu que nunca um cineasta poderia filmar um ato sexual, porque seria como filmar a morte: indecente, no sentido moral, não moralista, porque ele acreditava que não era essa a função da imagem. A morte seria a não-imagem, o não-cinema.

No final dos anos 70, essa discussão já havia caído. O cinema não era o único meio audiovisual a ser pensado; havia a televisão, o vídeo. Respeitar o cinema era desrespeitá-lo. Discussões sobre a (im)possibilidade de um cinema de autor eram mais do que pertinentes, aliás, há muito mais tempo antes da morte de Bergman e Antonioni, como nostalgicamente estagnaram as afirmações dos cadernos culturais. O cinema morreu há décadas, mas como qualquer arte soube se reinventar. Toda essa dissertação para entrar neste objeto estranho, enigmático, fantasmático que é este filme, Um Filme para Nick. Nick é Nicholas Ray, um dos maiores diretores americanos, diretor de Juventude Transviada, Johnny Guitar, No Silêncio da Noite e tantos outros clássicos. Em 79, ele estava sofrendo com um câncer, mas mesmo debilitado procurava dirigir seu último filme. O alemão Wim Wenders, diretor provindo da geração que renovou o cinema alemão, junto com Fassbinder, Herzog, era seu amigo e foi visitá-lo com a intenção de fazer um filme com/para Nick.

A partir daí o que temos é uma mistura de documentário, ficção, diário de bordo, filme-testamento, tudo isso em 35mm e vídeo. Nenhum tipo de imagem capta a realidade ou pretende-se a; elas se complementam, se comentam. Wenders sabe que Nick vai morrer. Nick também. A cada seqüência do filme, Nick vai ficando mais fraco, mas sua vontade de realizar esse filme é tão grande quanto seu desejo de viver. Ele sempre foi um diretor ousado, desafiador de convenções em um cinema de estúdio, de compromisso. Wenders, nesse momento, cai em um dilema moral. Dilema necessário a qualquer produtor de imagens. Acha que a produção do filme, a equipe no apartamento de Ray estava atrapalhando sua saúde, debilitando-o. Nick encena momentos de dor, de angústia perante a morte. Encena?

Para ele, participar de um filme era viver. Em um momento marcante, ele argumenta que todos apreciamos passar pela vivência da morte, para nos sentirmos vivos. Mas o problema é quando realmente nos defrontamos com o momento em que não mais respiraremos. Wenders não filma a morte de Nick, mas essa vivência, essa dor encenada e real.

No último plano de Nicholas Ray no cinema, ele, olhando para a câmera, por um longo tempo, há dias de sua morte, conversando com Wenders, que está fora de quadro. A câmera estática nos revela no corpo de Nick tanto sua decadência física quanto sua coragem de mostrá-la. Nicholas Ray resmunga, baba, xinga, fica em silêncio e conversa com Wenders. Após algum tempo, profere a única palavra possível, a que deu sentido à sua vida, a que só ele poderia dizer. Na artevida cinematográfica de Ray, ele pede: Corta!, e o filme e ele morrem.

*Leonardo Barbosa Rossato é graduado e mestrando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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