Orgulho e Preconceito (Joe Wright, 2005)

* Por Natália Vestri

Quando o romance Orgulho e Preconceito foi escrito, sua autora, Jane Austen, tinha apenas 21 anos. A obra, que inicialmente chamava Primeiras Impressões, só seria publicada 16 anos depois, em 1813, já com o título de hoje, atraindo leitores não somente por contar a história de Elizabeth Bennet e de sua relação com o Sr. Darcy, mas, sobretudo, por fazer um registro e uma crítica à sociedade inglesa do final do século XVIII. Tamanha riqueza seria adaptada inúmeras vezes, para o teatro, a TV e o cinema.

A relação entre o homem e a mulher, maior tema do livro, era bem definida durante a transição do século XVIII para o XIX: a declaração das intenções de um cavalheiro para com uma donzela era feita, muitas vezes, antes do próprio ato de cortejar. Isso porque não se podia correr o risco de ferir a honra de uma mulher, um bem precioso e valorizado. Para tanto, explicitar as intenções era fundamental. Mas o tempo passou e o mundo expandiu-se em um movimento que vai muito além da banalizada globalização: as possibilidades, os acessos, os conhecimentos e as oportunidades multiplicaram-se e aquela donzela que não tinha muitas outras opções além da de se casar com um determinado cavalheiro viu-se diante de um mundo novo, que lhe apresentava não só outras opções de homens para casar-se como também outras opções ao próprio casamento.

Dessa forma, essas práticas de cortejo não só perderam-se como também passaram a ser associadas com uma forma de aprisionamento na qual se encontrava a mulher, estereotipando o flerte do século XVIII e XIX como atitudes conservadoras e desencantadas. Mas a nossa heroína, Elizabeth Bennet era uma mulher a frente de seu tempo, bem como a jovem escritora Jane Austen, que revelava em seus romances um balé de olhares, expectativas, frustrações e esperanças não muito diferentes do que encontramos hoje, no século XXI. Essas sutilezas e representações estão transpostas e impressas no filme Orgulho e Preconceito (2005), de Joe Wright.

Apresentando uma história que se situa no mesmo contexto histórico do livro, o longa-metragem opta por percorrer os mesmos passos intencionais da obra literária, na qual as delicadezas do não dito sobrepõem-se às do verbalmente explícito. Essa escolha, no entanto, não impede que o filme fale com seu espectador, muito pelo contrário. As manifestações de opinião, de intenção e de sensação estão presentes nos recursos visuais e sonoros, descrevendo aquele universo e aqueles que o habitam de uma forma que ultrapassa o esclarecimento objetivo, trazendo demonstrações claras bem como sugestões nebulosas de sentimentos ainda desconhecidos.

Para essa construção, a câmera tem um papel de ação: frente à impossibilidade de participar ativamente da construção de seu próprio destino, as irmãs Bennet espiam as conversas entre os pais, que expõem sem medo as inseguranças e os incômodos na tarefa de colocá-las em um caminho digno e confortável, a câmera bisbilhota por entre frestas, deixando o espectador no mesmo patamar do personagem, permitindo que o primeiro veja e sinta o que o segundo está vendo e sentindo, aprisionando o espectador nessa condição passiva do personagem. O que percebemos, no entanto, é que Elizabeth escapa a essa perspectiva: não que ela tenha um leque de opções a respeito de seu futuro, mas, diferente das irmãs, ela não se coloca à mercê dos planos da mãe em dar-lhe um casamento proveitoso. Ela sabe o que quer e, sabendo da dificuldade de ter isso realizado, conforma-se em ter um destino pouco quisto na época: o de ficar solteira. Dessa forma, ela pouco escuta atrás da porta como as irmãs, evitando adotar a postura de quem aguarda pela decisão de terceiros. As intenções de Elizabeth repousam na idéia de contribuir o máximo possível na construção de um futuro agradável para as irmãs, expondo claramente seu caráter protetor perante a família e, principalmente, perante Jane, a primogênita, mostrando, dessa forma, o perfil de uma personagem que age, ainda que discretamente.

E é dessa maneira, a partir da ação discreta, que se desenharão as veias mais profundas dos sentimentos entre Jane e o Sr. Bingley e, sobretudo, entre Elizabeth e o misterioso Sr. Darcy, trabalhando, de fato, para a construção de uma relação que se faz clara como processo, estabelecendo, dessa forma, raízes e bases muito mais firmes do que as que se firmam no casamento da irmã mais nova, Lydia, ou no casamento de Charlotte, melhor amiga de Elizabeth. Esse cuidado em expressar tal trajetória está presente visualmente nas repetidas utilizações de alvorada e de crepúsculo, apresentando um trabalho fotográfico que busca as sensações do espectador: os sentimentos expressos no filme são tão sutis e graduais quanto as mudanças de luz, de temperatura e de valorização da paisagem no nascer e pôr-do-sol. Os planos-sequência complementam essa composição de sensações, mostrando, em um deles, que percorre toda a casa de Netherfield, na qual estão hospedados Bingley e Darcy, a simultaneidade dos sentimentos e situações dos numerosos personagens, repousando ao final em uma Elizabeth que busca fugir daquela roda de eventos que, de tão agitados e descontrolados, parecem tropeçar uns nos outros.

O espectador, sendo assim, se põe no lugar do personagem, em um primeiro momento, não por identificação, mas por inevitabilidade. Essa construção de similaridades, no entanto, não deixa de existir: da mesma forma que a relação entre Darcy e Elizabeth, a identificação entre o espectador e os personagens é uma construção gradual, intensificada, sobretudo, pela troca de olhares, por sorrisos disfarçados e pelas pequenas provocações, frutos de tensões emocionais, promovendo o espectador a uma posição de cúmplice do personagem, que exerce junto com ele o papel de voyeur, constantemente representado pelas espreitas e sussurros.

Mas o ponto mais interessante que essa equivalência de posição entre espectador e personagem traz para essa análise é como as interpretações dos diálogos, dos gestos e dos olhares, para aqueles que assistem ao filme, são tão difíceis de serem compreendidos quanto são para aqueles que o habitam. As camadas presentes nas relações são desveladas cada vez que se assiste novamente ao filme, mostrando que certas demonstrações de afeto – que na primeira exibição nem pareciam tão afetuosas assim – desvendam pouco a pouco uma força de sentimento absurda, que ultrapassa o racional e que revela um personagem totalmente à mercê daquela angústia por vezes amorosa. Tendo isso em mente, o título, assim como no romance, é muito bem representado por Wright, que oscila entre o orgulho e o preconceito dos protagonistas, que transitam por uma linha praticamente invisível, em um balé que os repele ao mesmo tempo em que os atrai. Mas não se assuste caso, ainda pela décima vez em que assistir ao filme, mesmo depois de ter lido o romance, certas manifestações não lhe parecerem claras o suficiente em seu significado. Elas ainda não lhe são esclarecidas, e talvez jamais serão, porque nem mesmo os personagens conseguem assimilá-las. Elas são nada mais do que os delicados sinais de uma paixão, aqueles que se revelam quando menos esperamos, dos quais não temos controle nenhum, que espantam a nós mesmos por suas aparições rápidas e eventualmente tortas, mas que dizem muito ou tudo, ainda que na ausência de um sentido consciente.

*Natália Vestri é graduada em Audiovisual no Centro Universitário Senac.

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