A HOMOSSEXUALIDADE NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO: O PONTO DE VISTA DO MERCADO

HOMOSEXUALITY IN BRAZILIAN CONTEMPORARY CINEMA: THE POINT OF VIEW OF THE MARKET

André Ricardo Araujo Virgens[1]

 

Resumo: Este trabalho tem como objetivo discutir a produção de filmes nacionais que abordam o universo da homossexualidade do ponto de vista de suas estratégias de produção e distribuição, com foco especial no chamado período da “retomada”. Para tal, realizaremos estudo de caso a partir dos filmes: Elvis e Madona (2011); Rainhas (2008); e Cazuza (2004).

 

Palavras-chave: Cinema brasileiro, homossexualidade, produção, distribuição.

 

Abstract: This paper aims to discuss the production of brazilian films about the universe of homosexuality from the point of view of their strategies of production and distribution, with special focus on the period between 1995 and 2011. To this end, we will perform a case study about the movies: Elvis and Madona (2011), Queen of Brazil (2008), and Cazuza (2004).

Keywords: Brazilian cinema, homosexuality, production, distribuction.

 

 

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo fazer um apanhado das produções brasileiras de longa metragem que tenham o universo homoafetivo e/ou personagens homossexuais como temática principal, e que tenham sido lançados entre 1995-2011, período que integra a chamada “retomada do cinema brasileiro”.

Dentro deste universo, buscamos discutir essas obras não do ponto de vista das representações, perspectiva mais comum nos estudos que relacionam a homossexualidade e o cinema, mas do ponto de vista das estratégias de produção, distribuição e circulação adotadas por essas obras. Assim, analisamos as mesmas a partir dos seguintes critérios: estratégias de distribuição; número de cópias lançadas no mercado; desempenho no circuito comercial; e circulação e exibição em outras janelas (festivais, internet, TV’s fechadas e abertas, dentre outros).

Essa opção de abordagem se dá por uma impressão, à priori, trazida na fala de realizadores e produtores de filmes dessa natureza, que essas produções enfrentam maiores dificuldades de entrar no circuito tradicional de salas de cinema, ficando muitas vezes restritas a Mostras e eventos LGBT. Outro agravante é que o período da retomada é marcado por um quase silêncio sobre esse universo, especialmente quando se trata de longas metragens. Nesse período de 16 anos, encontramos apenas 16 longas lançados, entre ficções e documentários, numa média de somente 01 por ano.

Deste total, optamos por estudar três deles, de forma que fiquem evidenciadas diferentes estratégias e posicionamentos diante do mercado cinematográfico, sendo: “Elvis e Madona” (2011, de Marcelo Laffitte); “Rainhas” (2008, de Fernanda Tornaghi e Ricardo Bruno); e “Cazuza” (2004, de Sandra Werneck e Walter Carvalho). Apresentaremos a seguir os resultados dessa síntese comparativa. Antes disso, entretanto, faremos um breve panorama sobre a representação da homossexualidade no cinema, e especialmente, no chamado “cinema brasileiro da retomada”.

 

 

 2. A HOMOSSEXUALIDADE NO CINEMA – UM BREVE PANORAMA

A homossexualidade ainda é um dos temas tabu da sociedade, o que acaba se refletindo em diferentes campos sociais, inclusive na arte. Quando pensamos em como o universo homoafetivo foi representado pelo cinema, chegamos a uma história marcada por invisibilidades, estereótipos e limitações de abordagem, cenário que vem sendo modificado, seja no contexto europeu, americano, oriental ou brasileiro, desde os anos 80.

O primeiro filme a se ter notícia que abordou a problemática da homossexualidade de forma mais aprofundada foi Anders als die Anderen, de 1919, filme alemão com título traduzido no Brasil como “Diferente dos Outros”. Ele conta a história de Conrad Veidt, violinista que se apaixona por um jovem aluno e, posteriormente, acaba se matando, numa Alemanha que considerava “pederastia” crime.

Já em Hollywood, mais reconhecido centro de produção cinematográfica do mundo, o primeiro filme reconhecido como “gay” foi Lot in Sodom, de 1933, baseado na história bíblica de Sodoma e Gomorra. Antes disso, entre os anos 20 e o inicio dos anos 30, diversos filmes incorporaram personagens homossexuais, que apareciam mais a partir de insinuações do que com a utilização de uma abordagem direta.

Entretanto, ainda a partir dos anos 30, passou a vigorar nos Estados Unidos o Código Hayes, de forte influencia religiosa e que impunha aos filmes Hollywoodianos uma série de sanções e censuras temáticas.  O código vigorou até os anos 50 e, nesse período, foram praticamente inexistentes produções que insinuassem a homossexualidade, sob pena de multas e sanções na distribuição. Para ilustrar como esse código representou uma “moralização” do cinema norte-americano, que atingiu não apenas os filmes de temática homossexual, NAZÁRIO (2003) cita o exemplo do personagem Tarzan:

Em 1932, Tarzan (Johnny Weissmüller) usava uma tanga de couro (…), e o maiô da Jane (Maureen O’Sullivan) permitia a observação daquele ponto crucial onde nascem os seios. Em 1939, (…), as ligas de moral obrigaram Tarzan a esconder seu umbigo “obsceno” e Jane a cobrir-se com uma malha inteiriça. Finalmente, em 1947, (…), esses pulavam de galho em galho com peles de leopardo até os joelhos.

Mesmo após o fim da vigência do código, o tema ainda continuou um tabu. Conforme aponta NAZARIO (2003), a homossexualidade causava um “mal-estar”, tanto que, “entre 1961 e 1976, em 32 filmes que abordaram o tema, 13 personagens homossexuais matavam-se, 18 eram mortos por seus amantes e um era castrado”. Essa representação convivia, lado a lado, com a comicidade e com a ridicularização, através do “gay clown”, em termo adotado por MORENO (2001).

Essa situação viria a mudar, paradoxalmente, a partir dos anos 90, com filmes que abordavam o tema da “peste gay” – a AIDS – tendo como melhor exemplo “Filadélfia”, de 1991, vencedor de dois Oscars. Esses filmes inauguraram a inserção de representações afirmativas e que não seriam mais raras de serem vistas.

No Brasil, essa ausência de representações seguiu histórico semelhante. O primeiro filme que se tem notícia a ter personagens homossexuais foi uma comédia chamada “Aníbal quer Casar”, de 1923, conforme aponta MORENO (2001).

De acordo com GOIS (2002), numa analise da pesquisa realizada por Antonio Moreno sobre a representação dos homossexuais no cinema brasileiro, existiriam três fases principais de construção de representações: a primeira, entre os anos 20 e 60, marcada pela invisibilidade quase completa; a segunda, a partir dos anos 60, marcada por um maior número de películas que passou a abordar o assunto, mas ainda não de forma central; e a terceira, a partir dos anos 70, quando houve um boom em torno da temática. Entretanto, sinaliza o autor, é nesse mesmo período que surge o “homossexual padrão”, através de um gestual, de uma forma de falar e de agir, geralmente caricatural e estereotipada.

Assim, mesmo podendo questionar o modo como a homossexualidade era tratada, especialmente do ponto de vista do cômico e da estranheza, em números absolutos, esse foi um período importante para uma mudança em relação ao silêncio e à construção da invisibilidade homossexual na arte cinematográfica nacional.

Esse período preparou terreno para os anos 70 e 80, quando tal tipo de produção atingiu seu auge. Entre 1970 e 1979, foram produzidos e lançados no país aproximadamente sessenta títulos. E, já nos anos 80, foram cerca de 44, segundo mesmo levantamento realizado por MORENO (2001).

É evidente que não podemos fazer uma análise dessa natureza sem observar o contexto histórico-social de cada período. É justamente a partir do final dos anos 60 que a luta pelos direitos civis protagonizados por diferentes movimentos-gays ganha corpo e força, e o aumento de produções no campo cinematográfico acaba refletindo esse contexto.

Entretanto, num momento de forte discussão política do tema, vale ressaltar que a maior parte das produções com personagens/temáticas homossexuais ainda era permeada pelos estereótipos, pelo riso e pelos finais trágicos. O gênero da pornochanchada também foi importante para o incremento desse número, mas isso se deu especialmente pela inclusão e erotização de personagens, visando o interesse do público masculino.

Um importante ícone LGBT desse período é a performer trans Claudia Wonder, que também protagonizou alguns filmes da pornochanchada. O principal deles talvez seja “O Sexo dos Anormais”, dirigido por Alfredo Sternheim. O sucesso foi tanto que acabou dando origem a uma sequência, também protagonizada por Wonder. A exceção a esse tipo de produção surge a partir de filmes como “O Beijo da Mulher Aranha” (1985), de Hector Babenco; “Aqueles Dois” (1985), de Sergio Amon; e “Romance” (1986), de Sergio Bianchi.

Após um hiato no início dos anos 90, quando a produção cinematográfica brasileira se aproximou de zero, a partir de 1995, uma nova leva de produções buscaram retomar o vigor do cenário audiovisual brasileiro e lançaram para o público novas e velhas visões sobre o universo homossexual.

 

 

3. O CINEMA DA RETOMADA E O UNIVERSO HOMOAFETIVO

 O chamado “cinema da retomada” se relaciona com o período em que, após um hiato na produção de filmes de longa-metragem entre o final dos anos 80 e início dos anos 90, se voltou a produzir em larga escala. O marco desse período é o lançamento de “Carlota Joaquina – Princesa do Brasil”, da diretora Carla Camurati. Lançado em 1995, a película conseguiu superar a marca de 1 milhão de espectadores num contexto pouco favorável ao cinema nacional.

Para além da retomada da produção, conforme apontam alguns autores como CARDOSO e CATELLI (2009), esse período “não possui uma unidade estética e muito menos uma proposta política que pudesse ser comparada a do Cinema Novo”. Ou seja, é um momento caracterizado por uma heterogeneidade de temas, estéticas e realizadores/as, mesmo que algumas problemáticas sociais, como a violência urbana, o tráfico de drogas e as cinebiografias tenham lugar de destaque.

É um período marcado, também, pela forte dependência das produtoras nacionais em relação às leis de incentivo fiscal, sendo este, praticamente, o único meio de financiamento das produções cinematográficas locais. E, como este mecanismo acaba priorizando filmes mais “vendáveis”, alguns autores apontam que isso pode ter influenciado o baixo número de produtos audiovisuais que abordam o universo homoafetivo de forma mais aprofundada.

O primeiro filme da “retomada” a trazer um personagem gay é “Jenipapo” (1995), de Monique Gardenberg. A obra é polêmica, pois um dos personagens centrais, um padre, possui um namorado. Entretanto, a história do filme não perpassa por essa relação, mas sim em torno da reforma agrária no contexto do recôncavo baiano.

Com destaque, o tema aparece, de fato, em 2001, com o filme “Amores Possíveis”, de Sandra Werneck. Abordando três possíveis destinos para uma relação amorosa protagonizada pela atriz Carolina Ferraz e pelo ator Murilo Benício, um dos núcleos centrais da trama é construído em torno da identificação do personagem de Benício enquanto homossexual.

Em seguida, surgem produções pontuais, mas é apenas nos três últimos anos analisados, entre 2009 e 2011, que a maior parte dos filmes de temática homossexual foi produzida no país, revelando o destaque que o tema vem ganhando na sociedade, e mesmo à revelia de alguns setores conservadores. Dos 16 filmes catalogados que foram produzidos entre 1995-2011, a metade foi produzida/lançada nos três últimos anos.

Vale reforçar que utilizamos como critério para catalogação desses filmes o fato de terem a homossexualidade como tema central e/ou um personagem protagonista homossexual. Filmes com personagens secundários foram catalogados, mas colocados numa lista à parte que pode ser conferida nos anexos deste trabalho. Caso esses filmes com personagens secundários fossem contabilizados, o número de produções subiria para 31. Entretanto, preferimos adotar o critério anterior para priorizar, de fato, uma avaliação das produções que optam por narrativas que trazem, de forma direta, aspectos do universo homossexual.

Entretanto, o fato de o número de produções ter aumentado nos últimos anos não implica, necessariamente, em um retorno de público e renda para as mesmas.  Por exemplo, dos 16 filmes citados acima, apenas três ultrapassaram a barreira dos 100 mil espectadores no circuito comercial – “Amores Possíveis”; “Cazuza – O Filme”; e “Madame Satã”. Isso denota, talvez, um preconceito arraigado do mercado distribuidor e exibidor (ou mesmo do público) em torno desses filmes. Mas não só. Como veremos a seguir, a partir de estudos de caso, a falta de profissionalização/experiência de realizadores/produtores que trabalham com esse campo temático também aparece como elemento que potencializa a não inserção desses filmes num circuito mais amplo.

 

 

4. ANÁLISE DE CASOS

Para poder ilustrar diferentes contextos de produção e distribuição envolvendo obras que retratam o universo homossexual, lançamos mão de uma análise a partir de três filmes: “Rainhas” (2008, de Fernanda Tornaghi e Ricardo Bruno); “Elvis e Madona” (2011, de Marcelo Laffitte); e “Cazuza” (2004, de Sandra Werneck e Walter Carvalho). O primeiro foi escolhido por ser uma produção que circulou apenas em festivais e que não entrou no circuito de salas de cinema; a segunda, por ser uma produção independente, que chegou a circular em circuito comercial, mas com retorno apenas regular de público; e por fim, o filme “Cazuza” por ser a maior bilheteria entre os filmes mapeados na pesquisa. Ou seja, a partir desses três filmes, poderemos ter um leque diverso de estratégias e resultados diferenciados.

O filme “Rainhas” é um caso emblemático pois se trata de um filme que sequer foi lançado em circuito comercial. A obra, documentário que aborda a realização do concurso Miss Brasil Gay, circulou, segundo seu produtor, Daniel van Hoogstraten, em entrevista realizada pelo próprio pesquisador, por 14 festivais nacionais e internacionais, sendo seis especificamente voltados para difusão de produções LGBT e oito festivais que não delimitavam, a partir dessa temática, suas curadorias.

Conforme aponta Daniel, foi apenas quando o filme ganhou o grande prêmio do Brazilian Film Festival em Nova Iorque, no ano de 2010, que eles conseguiram uma proposta de aquisição para o mesmo. Entretanto, houve um outro problema de ordem de produção. Durante o filme, são ouvidas músicas, incluindo artistas internacionais, que demandariam a liberação de direitos autorais para sua distribuição e exibição numa escala maior, negociação que só foi finalizada depois que o filme já havia circulado por festivais e que atrasou seu processo de comercialização.

Segundo Daniel, “durante a produção, a estratégia que pensamos foi a participação em festivais de cinema, para tornar o filme conhecido e, posteriormente, vendermos o mesmo para um canal de televisão”. Estratégia que foi exitosa, mesmo que parcialmente, já que os direitos de exibição foram comprados pelo Canal Brasil. Ele também é comercializado online pelo canal, através da plataforma Net Now. O processo de distribuição em DVD ainda não ocorreu, mas seria algo pretendido pela equipe de realização.

Quando questionado se o fato de abordar uma temática relacionada ao campo homossexual teria prejudicado o processo de produção e distribuição, Daniel foi enfático: “Sem dúvida o tema do filme prejudicou a questão da captação de recursos, mas não apenas isso. O “Rainhas” foi nosso primeiro longa-metragem, então nossa falta de experiência também contribuiu para o não sucesso da captação de recursos”.

A segunda produção analisada, “Elvis e Madona”, foi lançada em 23 de setembro de 2011 e retrata a história do relacionamento entre Elvis, fotógrafa que trabalha como entregadora de pizza, e Madona, travesti que trabalha como cabeleireira e sonha em produzir um show próprio.

De produção independente, o filme foi realizado pelas produtoras Laffilmes e Focus Films e distribuído pela Pipa Filmes. Conta com um elenco principal formado por atores conhecidos por seus trabalhos na televisão brasileira, como Igor Cotrim, Simone Spoladore, Maitê Proença e José Wilker. Entretanto, isso não foi suficiente para atrair um grande público.

Seu lançamento no circuito comercial foi realizada de forma relativamente modesta para os padrões blockbusters, com 14 cópias, que circularam por 38 salas, atingindo um público de 10.310 pessoas e uma renda de R$ 83.410,00, segundo dados do Filme B (2012).

Ele também acabou circulando por festivais e ganhando prêmios como o de Melhor Filme no Júri Popular do 12º Festival do Cinema Brasileiro de Paris; de Melhor Roteiro no 11º Festival Internacional do Rio de Janeiro; seis prêmios, incluindo melhor filme, roteiro e direção no 19º Festival de Cinema e Vídeo de Natal; e 04 prêmios entregues pela Associação de Correspondentes da Imprensa Estrangeira, já em 2012, incluindo melhor ator, melhor atriz, melhor diretor, e melhor filme segundo o júri popular. No total, ele circulou por cerca de 40 festivais, ganhando 19 prêmios.

Aqui vale reforçar uma questão importante, que ainda é uma grande lacuna para a contabilização do público dos filmes exibidos em território brasileiro: no número oficial de renda/público da Agência Nacional de Cinema (ANCINE) não são contabilizados dados de exibições em festivais e em circuitos exibidores alternativos, como cineclubes. Ou seja, caso esses dados fossem contabilizados, certamente, o público oficial do filme seria maior.

Inicialmente, seu lançamento estava previsto para o dia 28 de janeiro de 2011, mas foi realizado, apenas, nove meses depois. Esse fator pode ter atrapalhado os resultados do filme, pois a repercussão obtida no Festival do Rio, em 2010, e por outros prêmios recebidos acabaram “amornando” pelo tempo de espera. Em relação a isso, o diretor Marcelo Laffitte comentou, em entrevista:

Nosso problema é com a distribuição. Nos últimos anos, a produção cinematográfica no Brasil avançou a olhos vistos. (…) Porém, infelizmente, a distribuição não acompanhou esse ritmo e o nosso mercado se ressente. Existem alguns distribuidores especializados em blockbusters nacionais, assim como também existem os que são especializados em filmes de arte, e ambos têm um limite anual na quantidade de filmes que podem trabalhar. Mas o filme médio brasileiro, onde eu encaixo Elvis & Madona, não tem canais de distribuição competentes e com experiência. (DOIS TERÇOS, 2011).

Assim, Laffitte aponta para um grande gargalo enfrentado por todos os filmes produzidos no Brasil que não se enquadram no formato blockbuster: o de competir em condições mínimas por espaços de distribuição e exibição no circuito nacional.

Esses problemas acabaram se refletindo, também, no processo distribuição do filme em outras janelas. Por exemplo, a distribuição em formato DVD foi feita pela própria produtora Laffilmes, que distribuiu, até o momento, 1.000 cópias para locadoras e compradores avulsos. E o filme ainda foi exibido no Canal Brasil, que comprou os direitos de exibição quando ele ainda estava em processo de finalização.

Por fim, temos o filme “Cazuza”, escolhido por, justamente, ser a produção com maior bilheteria do cinema brasileiro recente protagonizado por um personagem homossexual e que se enquadra, certamente, na categoria blockbuster.

Em relação a esse filme, de imediato, é importante atentarmos para duas questões: a primeira é que se trata de um filme biográfico de um dos principais artistas do rock brasileiro dos anos 80 ainda bastante citado, gravado e homenageado. Ou seja, se trata de uma figura pública amplamente reconhecida pela cultura pop-midiática até os dias de hoje. Somado a isso, conta com a chancela Globo Filmes, uma garantia de ampla divulgação em alguns dos veículos de comunicação de maior audiência do país.

Fruto disso é que chegou ao expressivo resultado de 3.082.522 espectadores e uma bilheteria arrecadada de R$ 21.230.606,00, dados que representam o nono maior público no ano de 2004, incluindo filmes nacionais e internacionais, e maior público e renda do mesmo ano quando contabilizados, apenas, os filmes brasileiros. Ele ficou à frente de produções como “Olga”; “Sexo, Amor e Traição”; “Xuxa Abracadabra”; e “Didi Quer ser Criança”.

O filme ainda representa o décimo primeiro maior público e a nona maior renda do cinema brasileiro entre os filmes lançados no período entre 1995 e 2011. Foram produzidas 152 cópias que circularam por 292 salas de todo o país, sob responsabilidade de distribuição da multinacional Columbia.

Do ponto de vista da produção, o filme foi realizado numa parceria entre Globo Filmes, Columbia Tristar e Lereby – produtora pertencente a Daniel Filho, diretor de novelas e séries da Rede Globo. Ainda assim, ele contou com captação de recursos através da Lei do Audiovisual e da Lei Estadual de Incentivo à Cultura do Rio de Janeiro, e seus respectivos mecanismos de renúncia fiscal, através de empresas como Petrobrás, BNDES, Goodyear, Telemar e Correios. Ou seja, paradoxalmente, um filme de forte apelo comercial, mas praticamente financiado com recursos públicos.

Outro diferencial do filme é que possuiu forte inserção de merchandising, dispositivo de introdução de propagandas no contexto da história e fonte indireta de financiamento da produção. Conforme aponta BONA, CIPRIANI, OLEIVEIRA E SILVA (2007), existe merchandising de, pelo menos, 10 empresas entre produtoras de instrumentos musicais, produtoras de bebidas, marcas de cigarro e empresas alimentícias.

Em relação ao conteúdo e à representação de Cazuza no filme, certamente, poderíamos questionar até que ponto sua condição de homossexual (e de adepto de uma posição mais livre de amor) tem importância para a história, ou se isso não teria sido camuflado para tentar atingir, teoricamente, um público mais amplo. Entretanto, para além dessas especulações, foi um filme que conseguiu obter forte inserção nos cinemas do país e posterior lançamento em DVD e exibição em canal aberto (Rede Globo) e fechado (Canal Brasil).

 

 

5. CONCLUSÕES

Conforme podemos inferir a partir dos dados apresentados, é possível afirmar que a complexidade do universo homossexual ainda é pouco discutida, elaborada e transformada em narrativa pelo cinema brasileiro mesmo que, nos últimos anos, o número de produções em torno dessa temática tenha aumentado.

Vale salientar, também, que estamos discutindo apenas a produção de longas-metragens e que a base das exibições em festivais nacionais vem sendo de curtas-metragens, que também mereceriam igual mapeamento e análise tanto do ponto de vista das estratégias de produção quanto da distribuição. Se, por um lado, produções desse formato são mais baratas, a sua distribuição acaba sendo mais difícil e restrita, situação que vem sendo modificada com a expansão da internet e seus mecanismos de distribuição de vídeos online.

A internet, por sinal, vem se mostrando como uma grande porta para distribuição de filmes dessa natureza. Como ótimo exemplo, podemos citar o curta-metragem “Eu não Quero Voltar Sozinho”, de Daniel Ribeiro, que ultrapassou, em 2012, a marca de 1 milhão de visualizações na plataforma YouTube.

O circuito de festivais também surge como uma estratégia cada vez mais forte de distribuição. Conforme aponta BESSA (2007), existem no mundo mais de 100 festivais voltados, exclusivamente, para filmes com temática homossexual. E, tendo em vista que esses dados são de 2007, atualmente este número pode ter aumentado. Assim, o público LGBT tem potencial para estruturar um mercado próprio de trocas simbólicas, culturais e econômicas em torno dessas produções. Potencial que pode servir como complemento a outras estratégias de circulação, que envolvem desde as tracionais salas de cinema, ao espaço a ser explorado da internet, passando pelos DVD’s, Blu Rays, canais de televisão e outros.

Os canais públicos, certamente, ainda são pouco aproveitados para a circulação dessas produções, algo que poderia ser estimulado e cobrado, tendo em vista o caráter dessas redes. As TV’s por assinatura também aparecem como potenciais exibidoras, ainda mais tendo em vista a aprovação da “Lei da TV Paga”, que obriga as mesmas a exibirem quantidades mínimas de conteúdo nacional. Nesse sentido, o Canal Brasil já aparece em destaque como janela de exibição, tendo em vista que os três filmes analisados foram veiculados por ele.

Entretanto, mesmo com a existência de preconceitos e restrições temáticas nos elos da produção e da distribuição, poderíamos dizer que esse não é o único problema enfrentado pelos filmes brasileiros que abordam a homossexualidade. Enquanto produções independentes, elas acabam sofrendo os males da concentração do circuito distribuidor e exibidor em torno de poucas empresas e que surgem como gargalo para uma maior entrada do cinema nacional no circuito tradicional de salas de cinema. Essas empresas acabam dando preferência aos títulos que entrarão no circuito a partir de critérios unicamente comerciais. E, logicamente, que temas “tabu” têm menos preferência, a não ser que tenham a chancela da Globo Filmes, por exemplo.

Se, por um lado, temos gargalos que perpassam por questões políticas, sociais e econômicas de diferentes ordens, por outro, temos brechas que devem ser abertas para o escoamento dessas múltiplas representações ainda escondidas em diversos armários.

 

 

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONA, Rafael José; CIPRIANI, Viviana; OLIVEIRA E SILVA, Roberta Del-Vechio. Merchandising no Cinema Brasileiro: Uma análise de caso dos filmes Cazuza, Olga e Dois Filhos de Francisco. In: Anais do VIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Sul. Passo Fundo: UPF, 2007. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sul2007/resumos/r0058-1.pdf>. Acessado em 15 mai 2012.

CARDOSO, Shirley Pereira; CATELLI, Rosana Elisa. O Cinema Brasileiro Contemporâneo: Retomada e Diversidade. In: Revista Universitária do Audiovisual – RUA. São Carlos: UFSCAR, edição 10, mar 2009. Disponível em: <http://www.ufscar.br/rua/site/?p=1670>, acessado em 10 abr 2012

DOIS TERÇOS. Marcelo Laffitte fala sobre o filme Elvis & Madonna. 21 set 2011. Disponível em: <http://www.doistercos.com.br/marcelo-laffitte-fala-sobre-o-filme-elvis-madonna/>, acessado em 01 jun 2012.

FILME B. Database Brasil 2004. São Paulo: Filme B, 2005. Disponível em: <www.filmeb.com.br>, acessado em 09 abr 2012.

_____. Ranking Filmes Nacionais 2011. São Paulo: Filme B, 2012. Disponível em: <www.filmeb.com.br>, acessado em 09 abr 2012.

GOIS, João Bôsco Hora. Homossexualidades projetadas. Revista Estudos Feministas.  Florianópolis,  v. 10,  n. 2, July  2002 .   Disponível em:   <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2002000200020&lng=en&nrm=iso>. Acessado em 10 mai 2012.

LEKITSCH, Stevan. Cine Arco-Íris: 100 Anos de Cinema LGBT nas Telas Brasileiras. São Paulo: Editora GLS, 2009.

MELEIRO, Alessandra (Org.). Cinema e Políticas de Estado: Da Embrafilme à Ancine. São Paulo: Escrituras, 2009.

MORENO, Antonio. A Personagem Homossexual no Cinema Brasileiro. Rio de Janeiro: Funarte/ Eduff, 2001.

NAZARIO, Luiz. O Outro Cinema. In: Aletria – Revista de Estudos de Literatura do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, vol 16, jul-dez 2007. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/POSLIT/ 08_publicacoes_pgs/Aletria%2016/07-Luiz-Nazario.pdf>, acessado em 09 abr 2012.

_____. Cinema Gay. In: Revista Cult. São Paulo: Editora Abril, edição 66,  mar 2003. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/cinema-gay/>, acessado em 10 abr 2012.

ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

ROSSI, Elvio Antonio. Cinema no Armário: Desconstruindo as Representações das Homossexualidades Masculinas no Cinema Brasileiro. Porto Alegre: UFRGS, 2009. TCC de conclusão de curso.

RUY, Karine dos Santos. Estratégias e Apostas da Industria Cinematográfica Brasileira Contemporânea. In: Revista da Famecos. Porto Alegre: PUC-RS, edição 22, dez 2009.

SILVA, Hadija Chalupe da. O filme nas telas: a distribuição do cinema nacional. São Paulo: Terceiro Nome, 2010.

 

 

ANEXOS

Lista completa de filmes:

Filme

Ano de lançamento

Diretor/a

1. O jardim das Folhas Sagradas

2011

Pola Ribeiro
 2. Elvis e Madonna

2011

Marcelo Laffitte
 3. Estamos juntos

2011

Toni Venturi
 4. Rosa Morena

2010

Carlos Oliveira
 5. Como Esquecer

2010

Malu de Martino
 6. Do começo ao fim

2009

Aluisio Abranches
 7. Meu Amigo Cláudia

2009

Dácio Pinheiro
 8. Dzi Croquettes

2009

Tatiana Issa e Raphael Alvarez
 9. Rainhas

2008

Fernanda Tornaghi e Ricardo Bruno
 10. Onde andará Dulce Veiga?

2007

Guilherme de Almeida Prado
 11 As filhas da chiquita

2006

Priscilla Brasil
 12 Bombadeiras

2006

Luis Carlos de Alencar
 13 Cazuza

2004

Sandra Werneck e Walter Carvalho
 14 Vereda Tropical*
 

2004

Javier Torre
 15 Madame Satã

2001

Karim Aïnouz
 16 Amores Possíveis

2001

Sandra Werneck

 *Co-produção Argentina/ Brasil

 

 

Outros filmes com personagens homossexuais:

Filme

Ano de lançamento

Diretor/a

 17 As Melhores Coisas do Mundo – pai de Paco

2010

Laís Bodanzky
 18 A festa da menina morta

2008

Matheus Nachtergale
 19 O signo da cidade

2007

Carlos Alberto Ricceli
 20 Bendito fruto

2004

Sérgio Goldenberg
 21 Amarelo Manga – personagem Dunga de Matheus Nachtergale

2003

Cláudio Assis
 22 Carandiru – rodrigo santoro

2003

Hector Babenco
 23 Dois perdidos numa noite suja

2002

Jose Joffily
 24 A Partilha

2001

Daniel Filho
 25 Cronicamente inviável – dono do restaurante

2000

Sérgio Bianchi
 26 Até que a vida nos Separe

1999

José Zaragoza
 27 O dia da Caça

1999

Alberto Graça
 28 Como ser Solteiro

1998

Rosane Svartman
 29 For All – O Trampolim da Vitória

1997

Luiz Carlos Lacerda
 30 Navalha na Carne

1997

Neville d’Almeida
 31 Janipapo

1995

Monique Gardenbeg

[1] Produtor Cultural, é mestrando do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia e graduando do curso de cinema e audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. E-mail: andre.arauj@gmail.com

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