Histórias Extraordinárias – A descoberta da Argentina

*por Daniel Augusto do N. Batista

E morreu Américo Vespúcio. Um dia, roubavam-lhe o nome para emprestar à cartografia; no outro, a própria vida. Mas o audaz larápio não fora um cartógrafo, à época bem empregado no exaustivo e influente ofício de retratar o mundo sem conhecê-lo. Fora, com efeito, a América, extenso pedaço de terra, que subtraiu a identidade e exauriu os recursos vitais do grande navegador. Pois se dizia que ele adoecera de algum mal de além-mar – era só o que podia ser, concordavam os frequentadores dos mercados do sul da Espanha, embora não se tenha notícia de qualquer picada ou estranha mácula em sua derme nos últimos dias. De todo modo, arguiam os mais incendiários, nem era necessário: bastou-lhe contemplar inadvertidamente as vergonhas descobertas das pagãs, como dá conta em suas cartas, para que se lhe abatesse uma praga fugaz e mortal. Esqueciam-se estes de que a família Vespúcio já tivera incursões no mundo pagão e que, se Américo quisesse mesmo contemplar belezas íntimas, ele não precisaria percorrer enormes distâncias em mares desconhecidos e periculosos, pois provavelmente já teria afogado seus desejos observando a concha e os seios descobertos da pagã Vênus de Botticelli, que não era só uma simples deusa do amor, mas também sua prima Simonetta, modelo pictórica de renome.

Afora falatórios inquisitivos e curiosidades biográficas, notórios gametas da fofoca moderna que poderiam destruir a reputação de Américo, tudo que lhe resta, basta dizer que ele morreu sem visível ação de moscas, pecados ou chamas – assim como se atravessasse um portal, de uma hora para outra. Do mesmo modo que surgem mais dois personagens na história, sendo o primeiro deles rigorosamente substituto do falecido: Juan Díaz de Solís, até então um navegador coadjuvante nas expedições além-mar, foi nomeado piloto-mor de Castilha no ano de 1512 em substituição ao padrinho da América. Como não bastasse tamanho galardão à sua ambição, Solís não tardou a iniciar planos de uma nova e grandiosa expedição, que estava orientada a superar todas as viagens das quais se tinha notícia: chegar às Índias do Extremo Oriente. Certo, há que se admitir que este sempre fora o objetivo de grandes expedições, porém, note-se que agora eles sabiam que era preciso contornar um continente para que o objetivo fosse alcançado.

Então seguiu Solís com seu projeto. Por período superior a um ano, manteve-se na pequena cidade de Lepe, onde se ocultou aos olhos dos portugueses, à época donos do monopólio sobre negociações com o Oriente, e pôde cuidar de suas três discretas caravelas e de reunir uma marinhagem composta por setenta homens. Dentre eles, estava o segundo personagem, este ainda mais marcantemente abrupto: não se sabe de onde veio nem como se chamou em seu batismo, por isso em algum cais da Europa lhe emprestaram a alcunha de Francisco del Puerto, que não passava da junção de um nome comum com uma alusão ao lugar que ele sempre frequentara. Nunca, é verdade, próximo à hipótese de tão heroica viagem, já que suas experiências, ao que ele dizia, não passavam de uns biscates de grumete em pequenas embarcações no Mediterrâneo e eventualmente em direção a Flandres. Solís nem se preocupou em averiguar a veracidade da informação com algum conhecido, tão atarantado estava com seus planejamentos. Bastaram-lhe as declarações do jovem Del Puerto de que sonhava com terras desertas, terras ultramarinas de vegetação frondosa e montanhas prenhes de nédias riquezas. Que riquezas?, foi a única pergunta que Solís lhe fez com os olhos levantados. Devo ver por mim, o jovem respondeu com um sotaque estranho ao castelhano, pois toda vez que as miro em sonho, o brilho ofusca meus olhos e desperto.

*****

Há dois personagens que excursionaram a terras desconhecidas e se tornaram memoráveis à história da literatura argentina no século XX. Embora posteriormente viessem a embarcar em aventura conjunta, na ocasião não excursionaram juntos no espaço, mas é possível dizer que já o fizeram com alguma conexão temporal, no mesmo ano de 1940.

No despertar do verão, Jorge Luis Borges recorreu a uma revista literária para publicar o conto Las Ruinas Circulares, que retrata a súbita chegada, por via aquática, de um homem a um território desconhecido no qual acha misteriosas ruínas circulares. Mas não se preocupa em achar uma explicação para elas; tendo ele próprio caráter misterioso, prefere se concentrar em tentar sonhar de maneira tão vivaz que possa transpor o objeto do sonho à realidade. De outro lado, separado por breve tempo, Adolfo Bioy Casares publica a novela La Invención de Morel, que, por sua vez, consiste no diário de um condenado que se refugia numa obscura ilha no Pacífico, onde começa a ver pessoas que não interagem com ele e, de uma hora para outra, simplesmente evanescem. No outro dia, aparecem e vivem por algumas horas, independente do fugitivo, até evanescerem outra vez, de chofre. Trata-se, como se descobrirá após laboriosa construção de suspense, de uma série de projeções que reproduzem a realidade passada de modo quase holográfico.

Como se vê, Borges e Bioy já se fascinavam com a projeção em suas experiências literárias, ainda que com a abstração típica destas atividades. Quanto à concretude, lograram reger a projeção propriamente dita apenas no fim dos anos 60, quando escreveram conjuntamente o argumento e colaboraram no roteiro do longa-metragem Invasión, dirigido por Hugo Santiago. Tenha-se em mente, no entanto, que, por mais que o filme incorporasse a grande tensão política nacional da época e tivesse uma réstia do mistério usual da obra dos autores, não era possível experimentar, no ato de assistir, a vertigem típica da leitura de seus textos. Assim sendo, o cinema argentino, malgrado grandes obras que se seguiram, não teve um correspondente direto desses ícones da literatura. Isto é, pelo menos não até 2008, quando Mariano Llinás levou às salas seu surpreendente Historias Extraordinarias, um monumento em película que se concentra, com a verve dos grandes narradores detetivescos, em três obscuros personagens – X, Z e H – cujo aprofundamento na província, território que não conhecem de todo e se lhes afigura como um enigma, termina por ser, mais que uma simples viagem, uma aventura – como disse o próprio Llinás, ao estilo de Jules Verne e dos grandes clássicos da incursão ao desconhecido¹.

*****

Grandes são os clássicos, mas ainda maiores as viagens. Era o que pensava Juan Díaz de Solís em sua caravela, e não havia de ser diferente. Já se haviam passado meses desde o desembarque da Espanha e o navegador, por ter levado consigo nada mais que uma cópia da Odisseia, agora só fazia folheá-la para ler outra vez trechos a esmo, pois só assim era capaz de iludir a expectativa. Do experimentado em suas expedições anteriores, sabia que o novo continente já era próximo – a cada dia que alvorecia, era mais provável o anúncio de um dos seus de que a frota já se localizava na costa americana.

Em verdade, temia. À noite, era custoso dormir pensando que, quando o sol lhes emprestasse a luz, já estariam à vista de embarcações portuguesas. Havia de terminar assim a grandiosa missão que se impusera? É certo que não, mas não havia o que fazer para não pensar na desgraça senão reler a Odisseia. Abria o livro de qualquer jeito, e o fechava tão logo acabava de ler e pensar por um instante no que lera. Poucas reflexões puderam demovê-lo das preocupações práticas. Sem embargo, houve uma, por acaso lida duas vezes, que se prendeu em sua mente: navegando por águas turvas, à maneira das que ora molhavam as caravelas, Ulisses é avisado que, para se proteger do canto da Sereia, deveria tapar com cera os ouvidos de sua tripulação e se amarrar ao mastro de Argos, sua embarcação. A princípio, Solís pensou que sua frota bem poderia ter um nome, com certeza só lhe fariam bem as honras batismais, porque, no fim, não estava sua missão também destinada a espalhar a Palavra? Mas, antes que pudesse escolher um epíteto, deteve-se no que havia de sinistro naquele contexto. Um herói da envergadura de Ulisses, um herói clássico, devia se amarrar para resistir à tentação? Por certo, à Antiguidade fazia falta o cristianismo, a Igreja. Hoje, pensava Solís, um navegador não podia cismar com tal ato de autoflagelação se não fosse pela Graça. Não concorda, virou-se para um seu tripulante, que talvez nem haja sereias? Pois que elas nem são citadas na Bíblia. Eu não creio em sereias, respondeu o jovem grumete que se revelou Francisco del Puerto, mas que elas existem, elas existem. Eu não creio em sereias, mas que elas… Suado, Solís acordou. Tocavam-lhe com força os ombros. Era Francisco de Torres que, animado, dava conta ao piloto-mor de que a América estava próxima e inclusive já se havia ultrapassado a parte conhecida pelos portugueses. Quando Solís se precipitou à proa, já se via uma paisagem que lhe pareceu intocada até pela imaginação dos clássicos – o grande mar se volvia paulatinamente num largo rio que se embrenhava sem fim no continente. Ele sabia que aquele não era o caminho das Índias e era claro que não seguiria o belo caminho, mas, também na proa, estava Del Puerto em estranho diálogo com um gentio. Segundo o grumete com pendores a intérprete, o inaudito indígena dissera ser aquele o caminho das nédias montanhas. Montanhas de prata, complementou, o que fez Solís hesitar brevemente. Sem embargo, em que pesasse já ser sua missão um ato de clandestinidade, não haveria de ser completamente má uma busca por riquezas. Então a frota seguiu o caminho do interior do continente. Nas águas do que, a partir daí, chamou-se Rio da Prata.

*****

As expedições ao interior de Historias Extraordinarias começam com passos na terra molhada. Não de chuva, mas do orvalho da noite. É manhã recém-nascida numa estrada não pavimentada de um lugar da província que não se pode conhecer. Pode-se saber apenas que X veio de Buenos Aires e está ali para realizar um trabalho de natureza burocrática. No entanto, o lugar que devia alcançar parece não existir. X anda a esmo, pensa que se enganou, mas não há ninguém a seu redor para que peça informações. Em dado momento, ouve um trator que para sobre um campo de feno. Está longe o suficiente para ver o que se passa e não ser notado pelo tratorista, que desce do seu veículo e esconde algo sob um monte de feno antes de se distanciar para esperar. Em poucos segundos, X, observando, logo descobre que a espera era por dois homens que aparecem numa caminhonete vermelha. Quando saem, inicia-se o que parece uma negociação. Até o ponto em que a tensão se instala, um dos homens começa a andar pisando duro e volta à caminhonete, da qual retira uma espingarda. Posiciona-se e atira no tratorista, que cai por obra de uma só bala. Os homens se agitam, algo fora diferente do que se previa. Abandonam a arma e fogem apressados. X se aproxima e, antes mesmo de verificar cuidadosamente o corpo do tratorista, dirige-se ao objeto oculto sob o feno. Ao lado, está a espingarda abandonada. Pega-a e se volta para o que há no esconderijo. É uma mala. Mas, quando está pronto para abri-la, nota que o tratorista se levanta e, com esforço para se manter em pé, aponta-lhe uma arma. Instintivamente, aperta o gatilho da espingarda e o mata. Paralisa-se por um breve instante. Recuperado, logo corre, sem abandonar a mala. Quando está a certa distância, a caminhonete vermelha volta, como se os homens entendessem que se esqueceram de algo. Descem esbaforidos. Não tardam, porém, a notar que alguém esteve lá depois deles. Assustados, fogem. Ao fim deste episódio inicial, como põe a onipresente narração, X testemunhou uma tentativa de assassinato, matou um homem, pegou uma mala que não lhe pertencia e é buscado por dois matadores. E não sabe sequer os motivos.

Paralelamente, Z também está em viagem para a província, mas sua estadia, em tese, tem data para acabar: vai para a pequena cidade, cujo nome não se sabe, por somente dois meses para substituir o chefe de uma repartição chamada Federação, cuja função nunca fica clara. Tome cuidado, dizem-lhe os que atentam ao fato de que o homem substituído permaneceu vinte anos no cargo. Z hesita, mas aceita a missão por se tratar de algo passageiro que provavelmente lhe levaria de volta a Buenos Aires com um cargo melhor em sua empresa. Quando conhece seus colegas de trabalho, já no prédio da Federação, tem a notícia de que vez ou outra terá que viajar por outras cidades da província para recolher pagamentos e arcar com outros afazeres empresariais, como fazia o antigo chefe. Anima-o a possibilidade de não ficar os dois meses sentado – não obstante, é o que acaba fazendo com maior frequência. Nos primeiros dias, pergunta sobre o homem que substitui, pelo que passa a saber que ele se chamava Cuevas, morreu repentinamente numa de suas viagens e nenhum parente reivindicou quaisquer direitos fúnebres ou de herança. Mais importante, descobre que o velho morava no quartinho logo acima do escritório da empresa, onde agora ele próprio habita. Nas horas de ócio, perscruta o quarto como forma de conhecer o antigo morador. As coisas estão intactas: mapas, livros policiais em idiomas estrangeiros, cartas do exterior. Devia viajar muito, pensa Z. De verdadeiramente pessoal, há apenas um quadro no qual Cuevas colou fotos suas de variadas e longínquas épocas, das quais não se pode tirar qualquer dado sobre sua vida. Que tipo de homem ele era?, passa pela cabeça de Z. Ele não pode saber. Não sem começar a refazer o itinerário de Cuevas pela província.

Noutra cidade, da qual não se pode precisar a distância, um pequeno grupo de engenheiros, veterinários e cientistas se reúne para o encontro de final de ano da Associação Sol de Maio, entidade que não se explica, mas parece uma espécie de fraternidade científica na qual a discussão de projetos técnicos, às vezes mirabolantes, e a mera especulação tecnológica se tornam atividade de lazer. Um dos integrantes é novo na cidade, de modo que essa reunião não passa de sua terceira ou quarta. O que não o impede de, em meio à conversa e bebedeira dos outros, trazer à baila a proposta de implementar medidas de canalização no Rio Salado, parte do estuário do Rio da Prata, para que se faça possível o transporte de mercadorias por embarcações de médio porte, como no Danúbio. De pronto, um homem reage negativamente à proposta do novato – trata-se do mais respeitado da associação, por ter sido premiado numa feira científica na Austrália. Ele argumenta com desenvoltura, sem deixar de se concentrar em caçoar do que fora proposto. Apresenta impedimentos práticos e parece convincente. Mas qualquer tipo de líder encontra alguma resistência em seu domínio – no caso, estava localizada num homem taciturno de precedentes desconhecidos, chamado Factorovich, que, por mais que resista, acaba por tomar a frente do novato na defesa da proposta, quando o homem que se fazia bonachão na articulação de empecilhos propõe uma aposta. Energicamente, aquele que não tinha qualquer obrigação de honra assume a proposta inicial e diz poder provar em um mês que ela é factível. Fá-lo com tanta força que chega à agressão, no que é contido por todos os outros. No dia seguinte, acorda sem se lembrar de nada num lugar que não reconhece. Não demora para um amigo lhe trazer uma fita cassete e lhe dizer que pode ficar tranquilo porque será fácil ganhar a aposta. Na fita, há o vídeo institucional de um projeto idêntico ao proposto pelo novato, realizado anos antes no mesmo rio por uma empresa que viria a falir. Parecia uma prova cabal ao amigo, mas a Factorovich, ainda um pouco tonto, não era suficiente. Era necessário haver prova concreta. Dias depois, H, cuidando de sua pequena embarcação a motor à margem de um rio, é abordado por alguém que nunca vira na vida. Um tipo com roupa social que lhe propõe um pagamento para que ache monolitos ao longo daquelas águas. H estranha e pede mais detalhes, mas o homem não é capaz de lhe dar. Só sabe que eles devem estar lá, em algum lugar. Depois de hesitar, H aceita e, dentro de pouco tempo, já está em sua longa jornada. Sozinho no Salado, com nada mais do que o ar dos pampas em seu entorno. Navega por muitos quilômetros, falhando em achar qualquer monolito. Até a hora em que descobre destroços que se revelam partes do que procura. Curiosamente, percebe que eles estão limpos, tendo sido destruídos há pouco tempo. Apesar do silêncio, alguém está muito próximo a ele. Quiçá o acompanhando ao longo da estranha jornada.

*****

Ao adentrar no estuário à sua frente com a proa apontada para o continente, Solís não imaginava que já estivesse sob a observação do gentio, senão por aquele com que Francisco del Puerto tentava conversar. Sem embargo, à medida que as caravelas se aproximavam da terra, viam-se os olhares pasmos de índios em todas as orlas em que se olhava. Ainda mais perto, notava-se que alguns deles traziam nas costas um conjunto de setas – nada, porém, que pusesse ameaça ao grande aventureiro, que, atento à lentidão da embarcação em direção a uma área segura para o desembarque, calmamente avaliava modos de se relacionar com o gentio e fazer com que este lhe levasse até as fontes da prata. Mal notara que a paisagem frondosa e a infinidade de rios que se abriam configuravam uma terra tão mítica que poderia ter sido cenário de Homero. Igualmente, não via tal lugar como o espaço da tentação, o Éden proibido, mas uma fronteira da catequização, duro trabalho a ser realizado ao longo do tempo, mas que, é provável, seria incentivado e recompensado cedo, com o brilho que o Senhor pusera no mundo. Num átimo, como que pela providência superior, lembrou-se de uma carta da qual ouvira falar anos antes, ainda em sua vida de navegador. Não havia de ser à toa que o pioneiro escritor dava conta de que o gentio se dispusera a trocar ouro e prata pela preciosidade das contas de rosário. Desceu às habitações com pressa depois de ordenar à tripulação que reunisse rosários e toda a quinquilharia cristã. Foi a palavra que ele usou e fez Francisco de Torres sorrateiramente descer à habitação e perguntar ao grande navegador, duvidoso de sua sanidade: que pensas fazer, Juan? O que tens? Não soou estranho, pois Torres era, em verdade, cunhado de Solís, tendo sido levado em viagem como um conselheiro íntimo. Cabia-lhes o tom confidente: catequizemos, catequizemos, Fran. Se aqui viemos com o mister de comerciar, nada há de mais honroso do que o comércio da conversão, que tão bem há de ser o mais proveitoso, respondeu Solís enquanto procurava com determinação seus objetos de crença.

Juan, esqueceste seu rosário em Andalucía, bem me lembro. Solís levantou o tronco com vagar, como se se lembrasse de que não fizera oração alguma durante a viagem. Malgrado o lapso, os rosários reunidos da tripulação davam em bom número, enchiam três ou quatro pares de mãos. Assim, o piloto-mor decidiu que poucos o acompanhariam nos primeiros passos naquela terra. O suficiente para não banalizar a conquista. Assim, escolheu dois de seus oficiais e sete homens – dentre os quais, Francisco del Puerto, que augurara o brilho da América e, de tão clarividente, fora ainda capaz de dialogar em idioma selvagem com o gentio, também desembarcado.

Abandonaram as caravelas em dois pequenos botes, ao passo que os tripulantes remanescentes se limitaram a assistir, distantes, à escrita da História. Conforme se fazia à orla, Solís baloiçava os rosários que tinha em mãos. Del Puerto ainda tentava arremedar uma conversação com o gentio, que já não fazia sequer menção de resposta. Como a noite escurece o dia mais ensolarado, a doce situação incorporou um toque de agouro. Os índios da orla se encaminhavam aos montes para o ponto destinado à chegada dos botes, perto da boca de dois grandes rios. Penetrados os cascos hispânicos nas areias agrestes, o gentio que acompanhava Del Puerto se fez a seus pares, num profundo silêncio. Vagarosamente, desceram os integrantes da missão diplomática de Solís, cada qual com ao menos um rosário em mãos. De longe, Francisco de Torres e os outros tripulantes assistiam boquiabertos à conquista do novo solo.

Talvez porque não sentissem o estranhamento que era grande em terra. Por ora, já se preocupavam em batizar o que acabavam de conquistar e, dadas as sugestões de riqueza mineral, muito já se falava sobre como ali havia de ser a terra da prata e do dinheiro – do argento, enfim. Surpreendidos e atônitos ficaram, porém, com o que se seguiu: após contemplação do sorriso conciliador de Solís, os gentios o agarraram e então fizeram o mesmo com todos seus subordinados. Alguns, como Del Puerto, gritaram enquanto outros não puderam, pois foram abatidos pela miríade de setas que os cortaram.

Quando as vestimentas do piloto-mor foram rasgadas e seus remendos repartidos entre os índios, Francisco de Torres, em profunda lamentação por sua irmã, tomou a direção da frota espanhola e ordenou que abandonassem o lugar. Um seu tripulante até ameaçou iniciar um motim para que os companheiros em terra fossem salvos, mas, ao primeiro pedaço de carne arrancado de Solís e levado à boca de um gentio, não mais foi capaz de articular fala alguma. A exemplo de todos, que só se limitaram a manobrar no estuário e tomar a direção da Europa. No movimento que realizaram, ainda viram setas vindo em sua direção, mas sem força para apresentar qualquer ameaça, dada a distância.

À medida que as caravelas se faziam ao oceano, os gritos perdiam intensidade até o ponto em que cessaram. Não sabiam se pela distância ou se porque todos haviam sucumbido ao mesmo destino de morte. Não ousavam sequer discutir. Ouvindo o leve roçar dos cascos no mar rígido e sereno, encaravam da popa a terra silente ao longe. Era bela. Tão bela quanto mais se fazia distante e desfigurada à retina, como uma baça neblina.

*****

Pelas andanças dos personagens no mapa da Argentina ou mesmo em seus devaneios, aquilo que é insólito nos mistérios também se apresenta imageticamente nos lugares platenses em que eles se põem. Tanto pelas limitações orçamentárias como pela opção de alcançar um efeito naturalista, Llinás alcançou não o realismo cru do que se mostra logo na superfície, mas o impressionismo de imagens escuras, pouco definidas, estilizadas com ruído e um tanto baças que denunciam esconder maiores significações e sentimentos – da obra e dos pampas. Portanto, não seria exagero aproximar o filme de Martín Malharro, pintor argentino nascido no século XIX que, em seu período impressionista, pintou peculiarmente paisagens platenses desabitadas e em calmarias tão perturbadoras que vertiam mistério, como na icônica tela Las Parvas (La pampa de hoy), de 1911. Não deve ser à toa que o cartaz escolhido pelos distribuidores não se envergonha de incorporar características de Malharro – cuja impessoalidade, não se pode esquecer, também se faz presente, uma vez que, embora as paisagens não se apresentem desabitadas, chama atenção o fato de os três protagonistas não terem voz durante o filme. Sempre são eclipsados pela narração que, numa curiosa mistura entre a tão conhecida onisciência em terceira pessoa e o moderno fluxo de consciência, apresenta todos os aspectos da história e até os antecipa, quando convém. Tamanha é sua complexidade que, em certo ponto, nota-se que há mais de um narrador – na verdade, são três, com configurações sutilmente distintas.

Seria, então, todo o filme a projeção da consciência de personagens que nem aparecem, limitados à voz over? Não há resposta definitiva. De modo análogo, não há qualquer resposta definitiva na valsa caótica entre as tramas apresentadas. Como alguém que anda por lugares desconhecidos, Llinás rege o enredo percorrendo grandes avenidas de visibilidade impecável com a mesma naturalidade com que topa com uma discreta rua sem saída. E, após uma olhadela nas escuras habitações que ali se encontram, volta-se novamente para seu caminho. Um caminho que não tem um trajeto fixo, um ponto de chegada definido, mas que se apoia apenas na travessia da província, no ato de por os pés e os olhos no desconhecido território platense. Fá-lo, aliás, de modo diverso dos seus contemporâneos inclinados ao retrato do deslocamento na Argentina – enquanto Carlos Sorín é acostumado a pintar as cores e as estradas da Patagônia com os ares do afeto e da serenidade da narrativa linear (como em El Camino de San Diego, de 2006) e Fernando Solanas se preocupa em associar a revelação estética do país ao fortalecimento de ideologias políticas (como em El Viaje, de 1992), Histórias Extraordinarias, ao contrário, é uma nova fundação no Nuevo Cine Argentino, uma elegia do caos e do labirinto, um épico pós-moderno tão cheio de facetas, situações e personagens dentro de si que, se tiver alguma harmonia, certamente é a dos fractais.

Porque assim se parece quando o que há de aparente tumulto na narrativa é ordenado pela montagem de inspiração literária, organizada em capítulos, ou pela brilhante trilha musical de Gabriel Chwojnik, um traço condutor que sempre põe a obra no limiar entre o sentimentalismo melodramático, tão próximo da novela popularesca de aventura, e a melancolia sombria de um Satie. Isto é, quando não prefere o silêncio, que valoriza as ambiências, os sons eventuais e, é claro, o enigma. Ou quando não lança mão de músicas populares famosas, como a terna El gato en la oscuridad no sotaque estrangeiro de Roberto Carlos.

*****

Del Puerto falava com dificuldade com o gentio, mas lograva se comunicar. Foi o que disse ao explorador venezuelano Sebastián Gaboto quando este foi ao encontro do incrível único cristão que vivia entre os indígenas. Já haviam se passado mais de dez anos do episódio com a tripulação espanhola no Rio da Prata, tão celebremente sangrento que se imaginou que ninguém escapara. Sem embargo, Del Puerto estava vivo, sem ferimentos senão por discretas cicatrizes de cortes – impossível dizer se causadas por acidentes nas selvas ou pontas de setas. E nem precisara fugir para escapar da carnificina: jovem garoto, não despertara interesse de sacrífico. Destarte, juntou-se à tribo e incorporou seus costumes e seu vestuário, ainda que não tenha abandonado crenças de além-mar. Ademais, afora a aculturação, por muito tempo explorou as virgens terras da América.

Gaboto se espantou por um europeu viver entre os charruas, famosos por seu temperamento belicoso. Espantou-se ainda mais pelo modo que Del Puerto, provando aquilo que dissera, comunicava-se com eles, apesar de claras diferenças na articulação das falas e na disparidade de culturas. Ou ele passara a aceitar o fato de seus pares haverem sido objeto de tal morticínio? Vivaz, o sobrevivente voltava ao castelhano quando falava ao explorador. Seu sotaque era estranho, mas não podia deixar de sê-lo depois de tão longo tempo de isolamento. Ainda assim, Gaboto não teve problemas de entendimento, mormente quando seu heroico interlocutor lhe falou sobre a montanha de prata que vira próximo a um rio que passava pelas cercanias. Sem mais lucubrar acerca de questões banais, o aventureiro do norte fê-lo seu intérprete e guia. Afinal, era suposto que conhecesse tudo daquela região. Inclusive não era exagerado dizer, como lhe pareceu, que o precursor daquelas terras não fora o piloto-mor de talento técnico e ambição, mas o aventureiro que travou amizade com os nativos e primeiro pôs os pés descalços em solo virgem.

Este é que havia sido seu descobridor.

*****

Ao penetrar fundo na província e mostrar imagens e vidas insuspeitas, Mariano Llinás tem o mérito de descobrir a Argentina. Não à maneira dos cineastas que se esforçaram para explicar a formação e configuração política argentina nem como aqueles que reproduziram fórmulas narrativas e sistemas de produção convencionados pelo estrangeiro, como os partidários do Terceiro Cinema e Juan José Campanella, respectivamente. Por melhores que sejam, é o genuíno Llinás o descobridor da Argentina. Porque achou uma forma corajosamente selvagem de fazer cinema, com poucos milhares de pesos, menor dependência da burocracia estatal, uma série de favores (o que, apesar de tudo, implica na presença massiva de não atores, grande índice de um retrato franco) e amigos polivalentes. Porque ignora as indicações dos estudiosos ao criar sentido e expressividade cinematográfica na renitente utilização da voz over, literária por excelência. Acima de tudo, porque organizou um discurso que mostra profundezas de seu país, mas sem ter a pretensão de excedê-lo, já que assume – e retrata, seja na estrutura narrativa caótica, na ação dramática de natureza épica ou no cultivo quase místico do enigma – o intrincado mistério humano que ele é. Que a Argentina continue sendo descoberta com essa ousadia. Nenhum aventureiro há de duvidar que aí se esconde a maior riqueza.

NOTAS

1 –  http://contrapicado.net/article/mariano-llinas-bajo-el-signo-del-prodigio/

*Daniel Augusto do N. Batista é graduando do curso de Imagem e Som na Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Deixe uma resposta