A canção popular no cinema brasileiro: os filmes cantantes, as comédias musicais e as aventuras industriais da Cinédia, Atlântida e Vera Cruz

Marcia Carvalho é radialista formada pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), e doutoranda em Multimeios, pela Universidade Estadual de Campinas (IA-UNICAMP), com uma pesquisa sobre a canção no cinema brasileiro, sob orientação do Prof. Dr. Claudiney Carrasco, com apoio financeiro da CAPES.

O cinema brasileiro sempre foi acompanhado com música popular. Desde o cinema mudo, os filmes possuíam acompanhamento musical dentro e fora das salas de exibição. Além de atrair o público para o cinema, a criação dos filmes de enredo, cômicos ou dramáticos, tornava a música cada vez mais indispensável. Nesse sentido, o que passamos a chamar de trilha musical com o advento do cinema sonoro sincronizado (com a gravação da trilha sonora articulada às imagens), era realizado ao vivo, muitas vezes com improviso, por pianistas ou pequenas orquestras atentos aos acontecimentos das imagens da tela. Muitos músicos e compositores populares brasileiros, desde Ernesto Nazaré, passando por Pixinguinha, até Ari Barroso tocaram nas salas escuras de projeção, ou sobre os pequenos tablados das salas de espera dos cinemas. Segundo o historiador José Ramos Tinhorão:

A formação desses pequenos conjuntos para divertimento do público na sala de espera, nos intervalos das sessões, e para proporcionar fundo musical aos filmes mudos, obrigou a ampliação tão grande de quadros, que a própria barreira entre músicos eruditos e populares desapareceu, permitindo ouvir num cinema o flautista José do Cavaquinho (que nos choros fazia jus ao sobrenome tocando cavaquinho com cordas de tripa), e no outro o futuro maestro Villa-Lobos manejando um violoncelo. (TINHORÃO, 1972, p. 229)

O crítico e historiador de cinema Jean-Claude Bernardet em seu livro Historiografia clássica do cinema brasileiro afirma que já em 1902 houve projeções sonoras no Brasil, pelo menos de filmes estrangeiros:

Já em 1902 (há casos anteriores?) o salão-Paris em São Paulo anunciava o “Cine-Phone” com a fita Trabalhando. Não foi um acontecimento isolado. Ao acaso, cito “O Cinematographo Falante e Cinematographo Aperfeiçoado” que a empresa E. Hervet anunciava com algum estardalhaço em 1905, enquanto no ano seguinte a Empresa Candboung anunciará o “Maravilhoso Cinematographo Falante”. (BERNARDET, 1995, p. 92).

Na primeira década do século, chegou-se a produzir alguns filmes que apresentavam músicos populares como personagens cantantes que dublavam o som da própria voz no momento da exibição. O crítico e historiador de cinema, Alex Viany aponta como o primeiro desses filmes cantantes o filme Nhô Anastácio chegou de viagem, estreado em 1908.

Assim, surgiram vários ciclos de “filmes cantantes” produzidos entre 1908 e 1912, geralmente de curta duração, que apresentavam canções ou, de maneira mais freqüente, se apropriavam de espetáculos de teatro, revistas musicais, ou árias de óperas conhecidas. Com técnica de sonorização bastante simples, em que os cantores se posicionavam atrás da tela e interpretavam ao vivo as canções que acompanhavam as imagens visuais dos filmes, os cantantes estão associados a um momento singular da história do cinema brasileiro, o qual o crítico Paulo Emílio Sales Gomes chamou de “bela época”. Segundo Lécio Augusto Ramos:

Desde as primeiras projeções, os filmes mudos eram sempre acompanhados de música incidental, seja por pianistas ou outros instrumentistas, seja por pequenos conjuntos ou até orquestras completas. Nos cantantes, todavia, a relação entre o som e a imagem ganhou outra dimensão, que implicava, mas certamente não se limitava, a intenção de obter sincronismo sonoro. Isso era buscado não apenas entre as notas e acordes do acompanhamento musical e as cenas projetadas, mas, principalmente, entre as canções apresentadas ao vivo e as partes cantadas na tela, típicas dos gêneros musicais. A ocultação dos atores e cantores atrás da tela demonstra a tentativa de preservar a ilusão de realidade fortemente associada ao cinema. (RAMOS, 2000, p. 241).

No final da primeira década do século o cinema sonoro era um sonho para o pioneiro Francisco Serrador, de origem espanhola, que produziu dezenas de pequenos “filmes cantantes”. Segundo Sérgio Augusto:

Os filmes eram mudos e eles cantavam atrás da tela, longe da vista dos espectadores, às vezes utilizando-se de canudos e funis. Uma dublagem ao vivo, digamos assim. Esse método teatral de sonorizar imagens silenciosas, também prestigiado por artistas populares como Eduardo das Neves, Manoel Pedro dos Santos (o popular Baiano, primeiro cantor a gravar um disco no Brasil, em 1902) e José Gonçalves Leonardo, foi uma coqueluche entre 1909 e 1912. (AUGUSTO, 1989, p. 77).

Também José Ramos Tinhorão descreve o período:

O certo é que, a partir desse ano de 1909 até 1912, esporadicamente (como no caso de Pierrô e Colombina, filmado em 1916 com Eduardo das Neves, em cinco partes, para aproveitar o sucesso carnavalesco da valsa do mesmo título), o cinema pioneiro ia aproveitar-se sempre do prestígio das músicas e das figuras dos artistas populares para a conquista do público. (…) O mercado brasileiro, por essa época, ainda não tinha sido invadido definitivamente pelo cinema americano… (TINHORÃO, 1972, p. 246).

No entanto, muitos dos cantantes eram filmes estrangeiros sonorizados por cantores locais, como afirma Jean-Claude Bernardet:

Na “Filmografia Brasileira” estabelecida pela Cinemateca Brasileira, a indicação do filme é freqüentemente seguida por observações do tipo: “Não é certo que se trata de um filme nacional”, ou “Talvez não se trate de filme brasileiro, mas simplesmente dublado por artistas nacionais quando da sua exibição no Rio Branco” (…) De qualquer forma, esse sucesso cinematográfico encontra a sua origem num gosto teatral, de que pode ser visto como prolongamento. (…) Neste caso, seu sucesso não representa necessariamente uma consolidação da produção cinematográfica brasileira junto ao público. (BERNARDET, 1995, p. 78-79).

Na ânsia por novidades, o passo seguinte aos filmes cantantes foi adicionar ruídos e falas ou diálogos, como no famoso Paz e amor (1910). Apenas na década de 20 é que produtores e cineastas vão se preocupar em selecionar ou compor temas musicais articulados ao desenrolar das estórias dos filmes. São exemplos pioneiros a escolha musical do maestro Alberto Rossi Lazzoli para Barro Humano (1927-1929), de Adhemar Gonzaga, que incluía a canção “Tango” composta por Alim e com letra de Lamartine Babo, e a seleção da trilha erudita, com composições de Erik Satie, Debussy, Ravel, César Franck, Borodin, Stravinski e Prokofiev, realizada pelo pianista e ator Brutus Pedreira para Limite (1930) de Mário Peixoto.

O italiano Paulo Benedetti produziu no Brasil vários curtas falados e cantados acompanhados por discos, sendo responsável pela primeira tentativa de sonorização pelo sistema Vitafone (ou Vitaphone, conjugação de disco gravado com imagens) no curta-metragem Bentevi (1927), com a participação do cantor paulista Paraguassu (ou Paraguaçu). Benedetti realizou uma série de curtas-metragens musicais com músicos populares. O Bando de Tangarás gravou quatro músicas, dublando seus próprios discos para a câmera na busca de sincronia das imagens com as músicas pré-gravadas. Almirante, Noel Rosa, João de Barro e os demais integrantes apareciam vestidos de sertanejos para cantar as emboladas “Galo garnizé” e “Bole bole”, o lundu “Vamos falá do norte”, e o cateretê “Anedotas” (TINHORÃO, 1972, p. 251 e AUGUSTO, 1989, p. 78).

Em 1929, surge o primeiro longa-metragem brasileiro com cenas sonorizadas: Enquanto São Paulo dorme, de Francisco Madrigano. No mesmo ano, Acabaram-se os otários, de Luís de Barros, tornou-se o filme conclamado para o marco do primeiro filme completamente sonorizado e sincronizado (VIANY, 1959, p.98).  Segundo Sérgio Augusto:

Oferecendo piadas, trocadilhos e modinhas (Bem te vi, sol do sertão) de Paraguaçu e Carinhoso (de Pixinguinha), Acabaram-se os otários foi anunciado como ‘uma engraçada comédia falada e cantada em português, com as aventuras do Betinho, Samambaia e Xixilio Spicafuoco’. Dois caipiras e um colono italiano (interpretado por Vincenzo Caiaffa) metidos num conto-do-vigário, envolvendo a compra de um bonde na capital paulista – era simplória a trama da aventura. (AUGUSTO, 1989, p. 78).

Em 1930, o norte-americano Wallace Downey dirige Coisas nossas, o primeiro sucesso do cinema falado brasileiro, produzido em São Paulo, que aposta na popularidade de Paraguassu, Batista Júnior, Jararaca e Ratinho, e outros astros e estrelas da radiofonia na época. Segundo Sérgio Augusto, Noel Rosa se inspirou neste filme para compor a canção “São coisas nossas”.

Mas foi Luís de Barros que deu continuidade à produção de filmes falados, como em O babão (1930), paródia do sucesso norte-americano Amor pagão (The pagan), no qual, segundo Alex Viany, Genésio Arruda parodiava Ramón Novarro, o galã do musical americano, “de cuecas, com sotaque de caipira paulista” (VIANY, 1959, p. 115-116). Neste filme, Luís de Barros utiliza um sistema próprio de sincronismo entre o projetor e os discos em que gravava os diálogos.

A imprensa brasileira, segundo o crítico de cinema Alex Viany, argumentou bastante contra o cinema falado. Otávio de Faria e Pedro Sussekind publicavam, no fim da década de 1920, na revista O Fã, inúmeras lamentações contra o cinema falado, proclamando apenas a imagem visual como a essência do cinema, em contraposição ao falatório de origem teatral (VIANY, 1959, p.95-96). Segundo Arthur Autran:

Refinando a reflexão sobre o “filmusical” em “O filme de carnaval” (Revista Leitura, fev. 1958), Alex Viany aponta nos tempos do cinema silencioso a película A Gigolete (Vittorio Verga, 1924) como precursora da temática carnavalesca. Mas somente na era sonora surgiria o “filmusical”, gênero iniciado com Coisas Nossas (Wallace Downey, 1931), cujo técnico de som foi Moacyr Fenelon e com música homônima de Noel Rosa, classificada como “um verdadeiro programa nacionalista”. O historiador atesta que os críticos da época não gostaram de Coisas Nossas, pois para eles o som conspurcava a arte muda. (AUTRAN, 2003, p.96).

Enquanto vários jornalistas e críticos se posicionavam contra o cinema falado, Adhemar Gonzaga, produtor em Minas Gerais, junto a Pedro Lima, da revista Cinearte, se interessavam pelo som no cinema. Gonzaga, como narra Paulo Emílio Sales Gomes, viaja para os Estados Unidos a fim de aprender sobre a mudança no modo de produção dos filmes. Paralelamente, o paulista Joaquim Canuto Mendes coloca o cinema falado na pauta dos grandes jornais de São Paulo. Gonzaga volta de viagem entusiasmado com a idéia de produzir filmes sonoros. Há a esperança de que a passagem para o cinema sonoro dê o impulso necessário para alavancar à indústria nacional.

Gonzaga funda a Cinédia, produzindo dois filmes concomitantes, Lábios sem beijos (1930) e Mulher (1931). Delega a direção dos dois a, respectivamente, Humberto Mauro e Otávio Gabus Mendes. Mulher, que se alongou em sua produção, deveria ter sido, pela vontade de Gonzaga, o primeiro filme sonoro brasileiro. No entanto, quando fica pronto, em 1931, a sonorização pelo Vitaphone, que reproduzia orquestrações e trechos de diálogos já não constitui primazia.

Aliás, um fato relevante é que com a chegada do som, a produção e a exibição ganham novos custos, com as novas técnicas e recursos tanto para a realização dos filmes como para as salas de cinema, fortalecendo ainda mais a dependência tecnológica em relação aos Estados Unidos e provocando o fechamento de muitas salas de menor porte.

O sistema Movietone (o som gravado no próprio filme, na película) chega ao Brasil em 1932, introduzido pela Cinédia no curta Como se faz um jornal moderno. Com o sistema Movietone foram realizados os primeiros filmes documentais sonoros, tal como o primeiro filme falado e cantado sobre o carnaval: O Carnaval cantado de 1933, produzido por Fausto Macedo, com Genésio Arruda e alguns números musicais de Jonjoca, Paraguassu e os irmãos Tapajós, além de reportagens sobre o pula-pula nas ruas e nos salões cariocas. Ou ainda, o semidocumentário A voz do Carnaval, primeiro filme falado da Cinédia de Adhemar Gonzaga e Humberto Mauro, que dá início à linha de produção de comédias sempre com vários números musicais. No “musicarnavalesco” A voz do Carnaval podemos ver e ouvir Carmem Miranda cantando “Moleque indigesto” com o próprio autor Lamartine Babo, e “Good-bye, boy!” de Assis Valente.

Também o filme de Humberto Mauro produzido por Gonzaga, Ganga Bruta (1933) trazia em sua trilha musical uma seleção de trechos de composições eruditas estrangeiras e alguns temas regionais brasileiros, com arranjos de Radamés Gnatalli. Ganga Bruta é exemplar no processo de transição do cinema mudo ao sonoro no Brasil, dado que, assim como vários outros filmes ao redor do mundo, teve sua produção iniciada como um filme mudo, mas ao longo de sua produção ganhou falas e músicas. Nesse sentido, o filme já era, segundo João Luiz Vieira, “defasado em relação a sua técnica sonora, falado apenas em alguns momentos, e com ruídos que não se aproximavam do padrão sonoro mais realista, já demonstrado pelo cinema norte-americano” (VIEIRA, 1987, p.139).

As dificuldades com a aceitação de seus primeiros projetos sonoros, em contraposição ao sucesso do musical Coisas nossas de Wallace Downey, faz com que Gonzaga siga nas próximas produções o modelo musical, unindo-se ao norte-americano, como nos filmes A voz do carnaval (1933), com som direto da festa citada no título, e Alô, alô Brasil (1935), que marca a estréia de Carmem Miranda em um longa-metragem de ficção, cantando a marcha “Primavera no Rio” de João de Barro, e “Salada portuguesa” de Vicente Paiva e Paulo Barbosa, junto a Manuel Monteiro. Outros números musicais deste filme trazem Aurora Miranda interpretando a marcha “Cidade maravilhosa” de André Filho; Mário Reis interpretando a marcha “Rasguei a minha fantasia” de Lamartine Babo; ou Francisco Alves cantando o samba “Foi ela” de Ari Barroso.

Com isso, é em 1933 que a Cinédia descobre o samba, o carnaval e o rádio, apresentando a imagem dos mais populares cantores e compositores da época, como Carmen Miranda, Lamartine Babo, Noel Rosa, Francisco Alves e Assis Valente. A partir daí a produção que ganha destaque é a de musicais carnavalescos, na qual canções de carnaval tornaram-se números musicais que se intercalavam com o fio da narrativa dos filmes. (Klonopin) Segundo João Luiz Viera: “a inovação do som permitiu a visualização das vozes de cantores e cantoras já populares no disco e no rádio, ao ritmo de sambas e marchinhas inscritos, por sua vez, no universo maior do carnaval” (VIEIRA, 1987, p. 141).

A história do cinema falado brasileiro se desdobra com a produção que se limita praticamente ao Rio de Janeiro, onde se criam estúdios mais ou menos aparelhados com a Companhia Cinédia e com a Atlântida, fundada por Moacyr Fenelon, José Carlos Burle e Alinor Azevedo, entre outros, a partir de 1941. O resultado dessa concentração no Rio de Janeiro foi à proliferação do gênero comédia popularesca, quase sempre musical. Durante a década de 30 a 50, a Chanchada se consolida como o gênero cinematográfico de ampla aceitação popular e que melhor sintetiza a produção do cinema brasileiro, como nos disse Paulo Emílio Sales Gomes:

A década de 1930 girou em torno da Cinédia, em cujos estúdios firmou-se a fórmula que asseguraria a continuidade do cinema brasileiro durante quase vinte anos: a comédia musical, tanto na modalidade carnavalesca quanto nas outras que ficaram conhecidas sob a denominação de “chanchada”. (GOMES, 1996, p. 73).

Neste quadro, nota-se que em vários filmes a música popular ou até a erudita brasileira (O descobrimento do Brasil (1937)* e Argila (1942) de Humberto Mauro) tornou-se importante elemento da narrativa e da ação, e os cantores do rádio, radialistas, locutores e outros profissionais da área, passaram a trabalhar na produção de cinema.

A Cinédia, com Alô, alô Brasil (1935) de Downey, e Alô, alô Carnaval (1935), de Adhemar Gonzaga, escrito e co-dirigido, com parceria de Wallace Downey, pela dupla de compositores João de Barro, ou Braguinha, e Alberto Ribeiro, no qual Carmen e Aurora Miranda interpretaram a canção “Cantores de rádio”, de Alberto Ribeiro, João de Barro e Lamartine Babo, seguidos de Estudantes (1935) novamente dirigido por Wallace Downey, reuniu os principais astros e estrelas da canção dos anos 30. No elenco, vemos César Ladeira (o mais famoso locutor da época), os comediantes Jorge Murad, Barbosa Júnior e Cordélia Ferreira, o ator de revista Mesquitinha, e os cantores Francisco Alves, Carmen e Aurora Miranda, Dircinha Batista, Almirante e Mário Reis, que colaboraram para as aventuras de um radiomaníaco que se apaixona por uma cantora inexistente. Segundo Sheila Schvarzman:

Alô, alô Carnaval é um exemplo privilegiado de filmusical brasileiro, este estilo cinematográfico atualizou o amálgama da cultura popular carioca com suas revistas lustradas do século XIX, caracterizadas pelo humor e sátira social, onde forma incluídos o samba, o carisma de seus cantores e o apelo do rádio. Além disso, assimilava também, de maneira particular o musical oriundo do teatro. Assim, em Alô, alô Carnaval características locais ancoradas na história e no gosto popular (revista ilustrada, samba) juntam-se a uma forma internacional consagrada de fazer filme (musicais). No filme realizado em 1936 pela Cinédia e dirigido por Adhemar Gonzaga existem ecos de Coisas nossas (1931), feito em São Paulo pelo americano Wallace Downey, que se junta a Gonzaga em 1934, quando realizam Alô Alô Brasil e Estudantes (1935), mas também de The Broadway Melody (1929) de Harry Beaumont e outros musicais americanos do período. Essas influências somam-se ao já bem estabelecido filme de carnaval, gênero que remonta ao mudo e que a Cinédia experimentou com pioneirismo em Voz do Carnaval (1933), quando foram usados pela primeira vez equipamentos de captação direta de som ótico. (SCHVARZMAN, 2006, p. 8).

Curiosamente, é desta época também o filme que foi considerado uma resposta paulista aos musicais cariocas: Fazendo fitas (1935) de Vittorio Capellaro. Nesse sentido, a novidade da visualização das vozes dos cantores e cantoras já populares no rádio, possibilitada pela inserção do som no cinema, foi o principal fator responsável pelo sucesso das produções que adotaram essa forma. João Luiz Vieira afirma que a ocupação da tela pelos filmes carnavalescos nacionais ocorrida naquela época se deveu prioritariamente à relação do cinema com a música:

Embora como via de saída frente à competição estrangeira, ou enquanto proposta estética, esse rumo tenha sido combatido durante muitos e muitos anos, não resta dúvidas que, nas décadas de 1930, 40 e 50, a união entre o cinema e a música brasileira, identificada para sempre com o cinema que se fez no Rio de Janeiro, possibilitou a sobrevivência e garantiu a permanência do cinema brasileiro nas telas do país. (VIEIRA, 1987, p.141).

Enquanto a década de 30 foi marcada por uma produção sob a égide da produtora Cinédia, os anos 40 já conta com a hegemonia da Atlântida, com a união entre o cinema, o rádio e a música formando a base de um cinema popular brasileiro. A produção das chanchadas cariocas lançou um conjunto de atores como Mesquitinha, Oscarito e Grande Otelo, o par romântico Eliana e Anselmo Duarte, ou ainda o vilão José Lewgoy, entre outros que foram os principais responsáveis pela aproximação do filme brasileiro com o público.

O gênero da Chanchada foi o mais realizado e só decaiu no cinema quando foi absorvido pela televisão. As chanchadas abriram destaque aos números musicais com a presença de astros e estrelas do rádio e do teatro da época, interpretando canções que se tornaram consagradas na história da MPB, como podemos verificar em Banana da terra (1938), primeiro filme da chamada “trilogia das frutas tropicais”, seguido de Laranja-da-China (1939) e Abacaxi Azul (1944). Nas palavras de João Luiz Vieira:

O sucesso e o impacto de Banana da terra podem ser comparados ao de Alô, alô Brasil alguns anos antes. O argumento, uma vez mais, era do experiente João de Barro, em parceria com Mário Lago, apresentando Oscarito como o chefe de uma campanha publicitária em favor da banana, incentivada por Barbosa Júnior. O argumento desenrola-se em meio à sofisticação de cassinos cariocas e do rádio, possibilitando assim a inserção de números musicais que também se tornaram clássicos, como por exemplo “A jardineira” (de Benedito Lacerda e Humberto Porto), na voz de Orlando Silva; “Tirolesa” (de Osvaldo Santiago e Paulo Barbosa), Dircinha Batista; “Sei que é covardia” (Claudinho Cruz e Ataulfo Alves), com Carlos Galhardo; e, num dueto entre Carmen Miranda e Almirante, “Pirulito” (de João de Barro e Alberto Ribeiro). Foi também na voz de Carmen Miranda que Dorival Caymmi, então um compositor ainda desconhecido, lançou o célebre samba “O que é que a baiana tem?”. (Idem, p. 151).

Entre os sucessos que marcaram a história da companhia Atlântida também se destacam os filmes Aviso aos navegantes (1950) de Watson Macedo, com as canções “Beijinho doce” e “Tomara que chova”, e o filme Carnaval Atlântida (1952), dirigido por José Carlos Burle. Carnaval Atlântida é uma paródia sobre a própria chanchada, definindo-a como opção num país em que a superprodução sempre foi inviável. O filme conta a estória de uma produtora de filmes que quer fazer um longa-metragem sobre a guerra de tróia. Para isso, contratam um especialista em história grega, o professor Xenofontes (Oscarito), mas ele conclui ser um projeto impossível. O produtor, Cecílio B. de Milho (sic) desiste do projeto e tudo termina em carnaval, satirizando diretamente a Companhia Vera Cruz que atuava na época com a tentativa de se implantar uma indústria cinematográfica. Outra paródia importante foi Nem Sansão, Nem Dalila (1954) dirigido por Carlos Manga, que tira sarro da produção norte-americana Sansão e Dalila (1954), de Cecil B. de Mille.

Neste período, também podemos encontrar filmes com temáticas sérias como Moleque Tião (1943) dirigido por José Carlos Burle, com trilha musical do arranjador e orquestrador Lyrio Panicali, inspirado em um artigo de jornal que narrava a história de Grande Otelo que saiu do interior de São Paulo para ser famoso no teatro de revista. Além de contar com a presença do ator como protagonista, o filme se destaca por mostrar o morro carioca com suas músicas e misérias. O tema do morro e dos sambistas cariocas, como Sinhô, aparece também em filmes como Favela dos meus amores (1935), dirigido por Humberto Mauro, com produção de Carmem Santos.

Ainda sobre Humberto Mauro, é preciso lembrar o seu interesse pelas canções populares brasileiras nos curtas-metragens que produziu para o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), órgão criado em 1936, por Edgar Roquette Pinto. Mauro filmou entre 1936 e 1964 vários pequenos filmes inspirados nas canções populares brasileiras recolhidas por Villa-Lobos e Mário de Andrade, entre eles a série de seis filmes intitulada Brasilianas: Chuá-chuá e Casinha Pequenina (1945), Azulão e Pinhal (1948), Aboio e cantigas (1954), Cantos de trabalho (1955), Manhã na roça (1956); ou ainda, Carros de bois e, o mais conhecido, A velha a fiar (1964), filme bem humorado inspirado numa canção tradicional sobre o ciclo da vida, cantada pelo trio Irakitã.

Também com temática séria e até impostada é preciso lembrar de um dos filmes mais populares da Cinédia, dirigido pela cantora e Rainha das atrizes no Carnaval de 1937, Gilda Abreu. Empresária do marido Vicente Celestino, ela adaptou e dirigiu para o teatro peças baseadas nas canções de Celestino, como “Ouvindo-te”, “Matei”, “Coração materno” e “O ébrio”, encenadas com tanto sucesso que por iniciativa do produtor Adhemar Gonzaga O ébrio (1946) e, depois Coração materno (1949), foram parar nas telas do cinema. O filme O ébrio contou com a participação do próprio Vicente Celestino, cantor de voz operística extremamente popular na época, para interpretar o tema da desilusão amorosa associada à bebida, marcando a estréia como diretora de Gilda Abreu. Este filme sério precede as produções da Vera Cruz, e se tornou um dos maiores sucessos do cinema brasileiro, com mais de 12 milhões de espectadores em seu lançamento.

Já nos anos 50, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz (1949-1954) foi a principal e mais ambiciosa tentativa de criação de uma produção industrial de cinema no Brasil, após os ensaios anteriores da Cinédia e da Atlântida. A Vera Cruz, criada por Franco Zampari e Assis Chateaubriant em São Paulo, surgiu juntamente com a inauguração de um importante movimento teatral, marcado pela fundação do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) e a implementação das artes plásticas, abrindo as portas do MAM (Museu de Arte Moderna).

A Vera Cruz desconhecia quase todas as experiências anteriores do cinema paulista e pretendia-se produzir filmes sem nenhuma relação com o cinema realizado no Rio de Janeiro. Com a sua criação, e pouco depois, com a Maristela, a Multifilmes e a Kino Filmes, São Paulo voltava a ocupar um lugar de destaque no cenário da cinematografia brasileira. A produção da Vera Cruz era caracterizada por um sistema de estúdios, com a preocupação de produzir industrialmente seus filmes, que constituíam dramas universais com produções luxuosas e caras, de forte apelo comercial e conservador, no melhor estilo hollywoodiano e com forte investimento norte-americano da Universal-Internacional. O grande destaque dado para a Vera Cruz foi para a sua equipe técnica importada, principalmente por Alberto Cavalcanti, e o seu irremediável fracasso devido ao alto custo dos seus filmes e a ausência de uma distribuidora própria. Afinal, a industrialização para o cinema brasileiro não é um fim, mas sim um meio.

Na Vera Cruz se contratava compositores regulares para a criação das trilhas musicais, com a preocupação com o uso dramático dos temas, em geral, seguidor da tradição norte-americana. Participaram da Vera Cruz os compositores: Radamés Gnattali, Francisco Mignone, Gabriel Migliori, Guerra Peixe e Enrico Simonetti.

A canção nas trilhas musicais da Vera Cruz aparece em Tico-tico no fubá (1951) de Adolfo Celi, com a recriação de Radamés Gnatalli para a música de Zequinha de Abreu, abordada na cinebiografia do compositor, um dos maiores sucessos da Companhia; ou no exemplar O cangaceiro (1953), de Lima Barreto, no qual podemos notar a canção “Muié Rendêra” no meio dos vários mecanismos americanizados adotados no filme. Segundo Lécio Augusto Ramos:

De modo geral, a produção paulista da Vera Cruz, Maristela e Multifilmes é aquela em que melhor se identifica a influência da música de Hollywood no cinema brasileiro. Na produção carioca do período, marcada ainda pela hegemonia da chanchada, essa influência não é tão forte. Na Atlântida, a música de fundo tinha importância secundária. Devemos ressaltar que a fórmula do musical da Broadway que Hollywood incorporou e reformatou – com uma trilha de canções próprias, compostas especialmente para o filme ou adaptadas ao seu enredo – não seduziu os brasileiros. (RAMOS, 2000, p. 548).

Na década de 50, e avançando para os anos 60, Amacio Mazzaropi é responsável por um desdobramento paulista de alguns conteúdos e formas típicas da chanchada carioca. Mazzaropi estreou na Rádio Tupi de São Paulo, no final dos anos 40, com um programa de conversa com os caipiras da cidade grande. O sucesso no rádio o impulsionou para a televisão, praticamente inaugurando a Tv Tupi de São Paulo, em 1950, com o programa Rancho Alegre. Convidado para fazer filmes na Vera Cruz, Mazzaropi entra definitivamente para a história do cinema brasileiro, particularmente com o filme Jeca Tatu (1959), uma adaptação de Monteiro Lobato, com direção de Milton Amaral. Mazzaropi incorpora a sua caricatura histriônica de caipira, cristalizando o esteriótipo e os clichês do homem do campo ou do interior paulista como indolente, simples, conformado e astucioso. Entretanto, é importante lembrar a presença em Tristezas do Jeca (1961), dirigido por Mazzaropi, da toada-paulista: “Tristezas do Jeca”, criada por Angelino de Oliveira, uma das canções mais importantes do cancioneiro sertanejo; e a participação do compositor e acordeonista Mário Zan, que também participou dos filmes Da terra nasce o ódio (1954) de Antoninho Hossri, Casinha pequenina (1963) de Glauco Mirko Laurelli. Com carisma inexplicável, esta fusão entre Jeca e Mazzaropi se desenvolve em muitas aventuras em inúmeros filmes, todos seguidores do mesmo esquema de enredo sentimentalista e alienado, se tornando até hoje, um dos maiores marcos do trabalho de produção/ distribuição/ exibição e também de aceitação de público para um filme brasileiro.

Paralelamente a esta produção de estúdios e em oposição a eles, tanto na sua vertente paulista quanto carioca, surgiu uma geração de realizadores independentes, que asseguraria a continuidade dos filmes de pretensões artísticas. Entre estes, destaca-se a produção de cineastas como Walter Hugo Khouri, que deu seguimento ao cinema de pretensões universalistas da Vera Cruz, realizando dramas psicológicos nos moldes do cinema clássico, e Nelson Pereira dos Santos, que enveredou por um cinema de tom neo-realista, fugindo aos padrões dos estúdios ao filmar Rio, 40 graus (1954) e Rio, Zona Norte (1957).

O cineasta Nelson Pereira dos Santos é considerado um dos fundadores do cinema moderno brasileiro, aproximando-se da geração de jovens críticos e realizadores, e compondo com eles o Cinema Novo. Assim, a instigante relação do cinema dos anos 60 com a canção popular pode ser analisada a partir do samba de Zé Kéti para os filmes Rio, 40 graus e Rio, Zona Norte, com músicas engajadas que incitam reflexão sobre a política e a sociedade brasileira. Segundo Mariarosaria Fabris:

Em Rio, quarenta graus, o aspecto mais turístico da então capital federal, esse grande mito construído pelo cinema carioca e mesmo por produções estrangeiras, chocava-se com o “olhar neo-realista” que Nelson Pereira dos Santos lhe lançava. A cidade era ainda a grande protagonista, mas o diretor pretendeu dar vez e voz a outras personagens: a gente do povo. É bem sintomático, portanto, que a canção que abre e fecha o filme seja o samba A voz do morro. (FABRIS, 1994, p. 82).

Já em Rio, Zona Norte novamente o mundo da favela vem à tona com a história de um sambista, baseado na vida de Zé Kéti, que tem as suas composições roubadas pela indústria do rádio e do disco.
Com este breve panorama exposto pode-se sentir a necessidade de avançar esta investigação nas décadas seguintes, permitindo assim, verificar a importância e a contribuição da presença da canção na escrita da história do cinema brasileiro, mapeando o seu contexto histórico de produção e analisando a articulação entre música e cinema no Brasil.

*A música composta por Villa-Lobos para este filme é considerada a primeira trilha musical do cinema brasileiro. Outras de suas composições também aparecem em vários filmes cinemanovistas marcando a trilha musical dos filmes Deus o diabo na terra do sol (1964) e Terra em transe (1967) de Glauber Rocha, O desafio (1965) de Paulo César Saraceni, A grande cidade (1966) e Os herdeiros (1970) de Carlos Diegues, e Lúcia McCartney (1971) de David Neves.

Bibliografia

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