A imagem prosaica em Kiarostami

*por Daniel de Boni       

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      A inovação dos filmes de Kiarostami em termos de linguagem condiz com o próprio processo de produção empregado em seus filmes. Embora não haja informações precisas sobre o orçamento de seus filmes, é bem provável que a maioria deles tenha sido concebida com pouco dinheiro. O diretor se vale dessa condição material para interpelar o espectador a dirigir a atenção para o filme em si, na contramão do torpor provocado pelos efeitos hipnóticos e mirabolantes resultantes de maciços investimentos em recursos tecnológicos. Disso se depreende um importante aspecto constitutivo da linguagem de seu cinema: tentar captar a realidade enquanto fato cotidiano, cru, aparentemente banal e desprezível. É a busca de um realismo mais espontâneo, ao contrário do realismo tipicamente hollywoodiano, que forja através de uma série de procedimentos mecânicos um padrão repetitivo. É a superação do aprisionamento provocado pelas normas aristotélicas que norteiam esse realismo, que se importa muito mais em direcionar o olhar e o sentimento do espectador no decorrer da trama do que em fazê-lo se sentir parte ativa do que se passa no quadro.

          Um fenômeno peculiar é recorrente no seu modo de fazer cinema: evidenciar os mecanismos de produção do próprio filme, numa espécie de metalinguagem, como no transcorrer de Vida e nada mais e de O vento nos levará, em que o protagonista é o próprio processo de feitura do projeto a ser registrado, e no desfecho de Gosto de cereja, o qual explicita uma discussão em torno da captação do som nos bastidores da filmagem. Já no documentário ABC África, a imagem se desvanece em um fade out persistente, onde continuamos ouvindo o som direto, como se o diretor quisesse nos dizer que aquilo é apenas um filme.

          Essa ideia de exibir os artifícios do dispositivo fílmico, em detrimento do esforço em mascará-los, é um de seus elementos basilares, tal como em Dez, de 2002, marcado por dez sequências separadas por contagem regressiva. A ousadia de Kiarostami é sintática, na medida em que investe numa linguagem elementar que procura reconciliar com o espectador a sensação de movimento natural dos acontecimentos no fluxo da vida.

          Kiarostami afirmou certa vez em entrevista que seu cinema é incompleto, e que essa incompletude se dava em função de uma necessidade interna que o filme tem de convidar o espectador a observar os planos mostrados, não apenas no sentido de contemplá-los, mas essencialmente no sentido de construir subjetivamente o sentido das imagens exibidas. Com efeito, pequenos acontecimentos do dia-a-dia assumem função diegética, e Kiarostami prova ser possível fazê-lo do modo mais inusitado, como no caso de Five, de 2005. Esse projeto altamente experimental se constitui de cinco planos estáticos, nos quais se intercalam imagens captadas no cotidiano, de modo que um olhar atento permite perceber um movimento narrativo em cada sequência, com um rigor minimalista pouco visto no cinema. A primeira sequência, por exemplo, mostra um pedaço de tronco de árvore sendo ora trazido ora levado ao sabor da maré. Num certo instante, surge outro pedaço de tronco, menor, que insistentemente permanece à margem da areia, enquanto o primeiro é submetido ao vaivém das ondas, até desaparecer completamente de cena, ao passo que o último permanece até o fim da sequência. Kiarostami quer afirmar que construir uma narrativa é mais simples do que se pensa, e não se deve subestimar o potencial interpretativo do espectador.

          Outra estratégia utilizada pelo iraniano é manter o espectador subinformado em relação à narrativa. Isso fica claro em diversos filmes, como em Gosto de cereja, no qual não se sabe até por volta da metade do filme qual a motivação do longo deslocamento realizado pelo protagonista-taxista. Alguns atores já afirmaram que Kiarostami suprimia-lhes o roteiro, oferecendo apenas informações básicas sobre o que deveriam fazer em cena, priorizando uma liberdade de interpretação na construção dos personagens e das suas falas, através de improvisações, gestos e expressões espontâneos, no intuito de tornar a narrativa mais maleável possível. Outro dado que comprova isso é o uso de atores não-profissionais, possível herança neorrrealista do cineasta, que confere tom documental a seu cinema.

          Uma ideia inovadora do cinema de Kiarostami é a função que ele atribui ao carro. Na maioria de seus filmes, o veículo é a própria locação, conferindo a ele um protagonismo inédito. Kiarostami já se declarou surpreso em relação ao uso quase que meramente instrumental do carro na história do cinema, sempre com vistas a servir como veículo da frenesi e da ação desenfreada da narrativa. O carro-locação se constitui para ele como motivo psicológico dos personagens, um sentido existencial, o caráter medidativo e processual da busca de si mesmo. O cineasta jamais acelera o tempo: ele opta em pontuá-lo pelo movimento contínuo e equilibrado, que prossegue mesmo com constantes interrupções em seu processo.  Por outro lado, revela um sentido situacional, geográfico, uma vez que prevalece um desconhecimento do percurso e do destino por parte dos protagonistas, condição que os leva constantemente a buscar orientação e informação do exterior, caracterizando-se como outro elemento documental de seu estilo.

     O carro também se funde ao universo íntimo de cada personagem na possibilidade de abertura para o outro, materializada pelas fugazes, mas fecundas conversas entre o motorista e o passageiro, como são os casos da figura feminina de Dez e do taxista determinado a se suicidar de Gosto de cereja. Em Close-up, Kiarostami se vale de um fato empírico (a tentativa de um homem de se fazer passar por um famoso cineasta iraniano) para reconstruí-lo moralmente junto à própria família desse cineasta, protagonistas “de carne e osso”.

      A complexidade de seu cinema revela, enfim, uma síntese original entre o cotidiano aparentemente banal e a necessidade do deslocamento, descortinando assim as camadas da imagem e seus ricos subtextos.

*Daniel de Boni é graduando do curso de Imagem e Som da UFSCar e editor da revista RUA

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