O Desejo e a Erotização dos Corpos em Praia do Futuro de Karim Aïnouz

*por Júlia Braga Neves

praia do futuro

Em seu novo filme, Karim Aïnouz volta-se para o universo masculino e para as relações de afeto entre parceiros e amantes e também entre irmãos. A virilidade e a valentia aparecem como elementos centrais na construção dos personagens como homens, mas são constantemente desarmadas pela delicadeza estética com a qual Aïnouz representa os corpos masculinos e pelos conflitos que envolvem as relações afetivas entre os personagens Donato (Wagner Moura), Ayrton (Clemens Schick) e Konrad (Jesuíta Barbosa).

 Trata-se de um olhar cinematográfico sobre o corpo já conhecido em outros filmes do diretor, que mostra o desejo como forma crucial de interação entre os personagens. As primeiras cenas de Praia do Futuro apresentam dois motoqueiros que desbravam as dunas da praia cearense e, em seguida, o afogamento de um deles. No mar, corpos fortes e viris debatem-se, entrelaçam-se e perdem-se; a cena do afogamento confunde-se com uma cena de sexo, na qual a fusão dos corpos expõe o prazer do toque, do suor e do êxtase. O momento do fracasso de Donato como salva-vidas e da morte do afogado impele o desejo e a força sexual que move o enredo do filme. Na obra de Aïnouz, desejo, sexo e amor não podem ser delimitados a meras convenções sociais de orientação sexual, embora seja impossível dissociá-los das formas em que sexualidade, sexo e gênero manifestam-se socialmente. A erotização dos corpos masculinos no Praia do Futuro evidencia um olhar sexual para o homem, tornando-o objeto de desejo.

 Essa forma de olhar já estava presente em O Céu de Suely (2006) e em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), mas direcionado a figuras femininas. No primeiro, a sensualidade da prostituta Georgina (Georgina Castro) e da protagonista Hermila (Hermila Guedes) é retratada pelo olhar masculino. No entanto, ambas as personagens também enfatizam o próprio desejo como mulheres altamente sexualizadas e, ao mesmo tempo, como uma forma de domínio sobre os homens. A decisão de rifar o corpo aparece como uma maneira de mostrar autoridade sobre o seu desejo e a sua sexualidade, mas ela também ressalta o poder masculino sobre o corpo feminino, pois, embora seja a sua libertação, a rifa torna-se também a humilhação de Hermila na cidade de Iguatá. Aïnouz representa essa dualidade em cenas que salientam a consciência da protagonista em relação ao seu poder sexual – geralmente em companhia dos homens que potencialmente comprarão a rifa – e em outras que revelam a sua condição subjugada, representadas por hostilidades que Hermila sofre pelos mesmos homens que se interessam pela rifa, mas a veem como uma prostituta e por mulheres cujos maridos ou parentes participam do sorteio.

 Em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, Aïnouz ressalta o olhar masculino sobre o corpo feminino através da subjetiva de José Renato (Irandhir Santos). Solitário após o fim de seu casamento, o protagonista desvia a atenção do espaço físico do sertão para registrar as pessoas que nele habitam. A tristeza e a solidão são amenizadas pela companhia de mulheres que José Renato encontra pelo caminho. Estas são em sua maioria prostitutas, mulheres as quais o protagonista retrata em imagens estáticas, como modelos fotográficas. A subjetiva e o olhar de José Renato desvelam o seu desejo por essas mulheres e também delineia a sensualidade delas, como se esta existisse unicamente para satisfazê-lo. Se o diário de viagem de José Renato acentua a tristeza e as dificuldades em superar o fim de um relacionamento, os encontros com as mulheres manifestam a necessidade de velar sua sensibilidade para que a virilidade sobressaia. A masculinidade do personagem é colocada em xeque em relação aos homens sertanejos, como Evandro, que “cheira a testosterona” e “tem cara de quem nunca broxou”.

 Tanto em O Céu de Suely quanto em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, Aïnouz concentra-se na sensualidade e na sexualidade femininas que ora asseguram poder e autoridade sobre o próprio corpo e desejo e ora mostram-se refém do olhar masculino. Em Praia do Futuro, o diretor cria um universo de homens também esboçado por esse olhar. Mostram-se corpos masculinos erotizados, homens desejados por outros homens, as relações afetivas entre homens e a homofobia nelas engendrada. Aïnouz explicita o desejo presente em qualquer relação de afeto, mas que no universo masculino é veementemente negado e velado para que se rejeite qualquer possibilidade de homossexualidade. Durante o treinamento na praia, as cenas captam com close-ups as curvas musculosas dos corpos dos salva-vidas, a maneira como eles se tocam durante a atividade e o desejo que paira entre esses corpos viris – que, como Evandro, cheiram a testosterona. Aïnouz cria em imagens o que a teórica norte-americana Eve Sedgwick argumentara na década de 1980: as relações homossociais entre homens confundem-se com relações homossexuais e, para que esta possibilidade seja rechaçada por completo, necessita-se de uma mulher que torna propícia a distinção entre social e sexual e assegura a heterossexualidade entre os homens. Para Sedgwick, essa forma de relação social é sintetizada nos triângulos amorosos entre dois homens e uma mulher.

 Em Praia do Futuro, o diretor mostra a tênue linha entre desejo sexual e afeto entre homens, mas não apresenta uma mulher para romper com essa ambiguidade. A questão não é mostrar todos os homens do filme como homossexuais, mas evidenciar o fato de que o desejo é fundamental também nas relações entre homens. A relação de Donato com Ayrton baseia-se no desejo entre irmãos e na figura do herói, o mais novo, Ayrton, almejando e glorificando o mais velho, Donato. No primeiro ato do filme, O Abraço do Afogado, constrói-se a imagem do herói, na qual Donato aparece como figura imprescindível no imaginário do irmão, que associa o salva-vidas ao personagem de Aquaman, um super-herói que vive na água. Ayrton, que tem medo do mar, identifica-se com o Speed Racer, um personagem conhecido por seu amor por carros e que sai em busca de seu irmão desaparecido. O olhar e o desejo de Ayrton compõem o heroísmo de Donato: como imagem predominantemente masculina, o herói é aquele que está acima do fracasso e do humano, ele simboliza a coragem e a tenacidade, um semideus que desbrava o desconhecido e arrisca a vida pelo bem-estar do próximo. Este olhar explicita o desejo de Ayrton em relação ao irmão, o desejo de alcançar o seu destemor e também de tê-lo ao lado para protegê-lo, assim como esboça Donato como cabra-macho, cuja valentia se dissipa com os monólogos interiores do personagem, que aludem à perda e ao fracasso na impossibilidade de os tornarem inteligíveis.

 A decisão de permanecer em Berlim ao final da primeira parte impulsiona a desconstrução do herói Donato na segunda, Um Herói Partido ao Meio. O deslocamento do personagem marca a dissolução da identidade heroica do salva-vidas para mostrá-lo como corpo amorfo, que segue em movimento e encontra novas maneiras de ser. A chegada em Berlim anuncia Donato como estrangeiro, a dispersão da identidade delineada pelo mar e a sua transposição em terras firmes. Nesse capítulo, o estranhamento – o fremd ­­– é essencial para a representação do desejo, principalmente na relação entre ‘nativo’ e ‘estrangeiro’. Em conversa com uma atendente do bar, Donato fala em português e ela responde em alemão: “Dizem que no Brasil todos são felizes”. Um tanto estereotipada, a frase sintetiza o desejo por e a idealização do outro. Donato é anônimo em Berlim, um corpo estranho e estrangeiro, mas a simples afirmação de sua nacionalidade já remete a um ideal de identidade, uma marca que o faz inteligível naquele momento. A relação entre o nativo e o estrangeiro baseia-se sempre no desejo de tornar-se o outro e, ao mesmo tempo, em afirmar o que não se tem do outro. Como em O Céu de Suely (2006) e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), o deslocamento do corpo é necessário para que haja mudanças no eu. Nos filmes de Aïnouz, colocar-se em movimento aparece como possibilidade de transformação e liberdade.

 Nos três filmes, o amor é força central para a partida. Em Praia do Futuro, o romance entre Donato e Konrad tem o mesmo furor que o sofrimento de José Renato ou de Hermila ao serem deixados por seus parceiros. A intensidade do romance entre o salva-vidas e o ex-soldado no Afeganistão é explicitada com as belas e ardentes cenas de sexo, que evidenciam o erotismo, a voluptuosidade e a sensualidade dos corpos masculinos. Aïnouz não tem como objetivo discutir a homossexualidade em seu novo filme, mas as relações de afeto no universo masculino. No entanto, pode-se dizer que o diretor tematiza, de fato, a homofobia. Na carta que narra as cenas finais do terceiro capítulo O Fantasma que Falava Alemão, Donato escreve a Ayrton:

 De Aquaman pra Speed Racer

Te escrevo pra dizer que eu não morri,

Eu só voltei pra casa.

Aqui nessa cidade subaquática tudo pra mim faz mais sentido.

Eu não preciso me esconder no mar pra me sentir em paz.

Nem preciso mergulhar pra me sentir livre.

 O mar cearense estende-se ao continente para dar vazão à liberdade. Esconder-se no mar implica o medo de confronto com a homofobia, o mergulho, uma válvula de escape da realidade. Tão poderosa quanto o machismo, a homofobia é um dos pilares estruturantes das relações entre gêneros, sendo ela imprescindível na dominação do homem sobre a mulher e também nas relações homossociais entre homens. Aïnouz cria seus filmes dentro dessas circunstâncias e esboça laços afetivos que se desenvolvem de acordo com elas. Em Praia do Futuro, o relacionamento entre Donato e Konrad poderia ser substituído por uma relação entre uma mulher e um homem ou entre duas mulheres, pois o desejo entre os personagens do filme não se baseia numa distinção de gêneros – o que mostra que Aïnouz não tem como tema central o amor homossexual entre homens. Porém, é necessário observar que as condições impostas pela homofobia moldam a forma pela qual essas relações se desenvolvem.

 Praia do Futuro é um passo importante na obra de Aïnouz, um filme que remete à estética e às temáticas de seus projetos anteriores. A decisão de voltar-se para um universo masculino implica a necessidade de compreender as relações de afeto, desejo e amor sob um olhar que se dirige normalmente às mulheres. Criam-se corpos erotizados dentro de uma estética que evidencia a delicadeza na rusticidade e no vigor, um contraste entre forma e conteúdo que desconstrói estereótipos de masculinidade e do desejo sexual. Sob esse olhar, desmantela-se também a figura do herói que, na impossibilidade de ser sempre forte e destemida, deve ser reinventada pela necessária contraposição do medo e da coragem. Praia do Futuro faz parte também de um momento importante do cinema brasileiro que tenta captar atuais circunstâncias sociais e culturais no país, como fazem, cada um a sua maneira, os filmes O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012) e Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (Daniel Ribeiro, 2014). No caso da obra de Aïnouz, esse contexto refere-se em grande parte às relações de gênero e de sexualidade, o que torna os seus filmes centrais num debate que tem sido frequente na produção cultural e midiática brasileira.

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