Tropico (Anthony Mandler, 2013)

Por Lucas Scalon*

Young and beautiful é, talvez, a expressão que melhor define a persona criada por Elizabeth Grant, Lana Del Rey. Quando seu sucesso na internet iniciou, em 2011, com o videoclipe de Video Games, já era possível observar uma matriz que a acompanharia por toda sua carreira até agora: a nostalgia de um tempo recente que, tendo-a vivido ou não, foi prontamente abraçada pelos jovens adultos noventistas. Ao utilizar-se de recortes de imagens de arquivo, Lana fez da obra um diário de memórias não vividas, mas que criam um laço sentimental da geração que cresceu vendo os video games se desenvolvendo e a Internet se tornar o maior meio de comunicação em massa.

Tal geração, principalmente os jovens pós-Tumblr e pós-Instagram, pedia que nascesse uma heroína que representasse esse sentimento de “saudades daquilo que deixei de viver”. Nesse contexo, Lana Del Rey se torna a representante de um movimento neo live fast and die young – e, talvez, essa aura que a precede tenha sido o motivo para que fosse convidada a compor a trilha sonora de O Grande Gatsby (The Great Gatsby, 2013, Baz Luhrmann). Em videoclipes e apresentações quase letárgicas, a cantora e compositora dá valor à força de suas letras e abusa da cultura pop para criar uma estética que culmina em Tropico, seu mais novo videoclipe que é, na verdade, um média-metragem (chamado de curta, oficialmente) com três de suas músicas, Body Electric, Gods and Monsters e Bel Air, as três de seu último extended play, Paradise.

O próprio EP, que é, em si, uma versão evoluída da matriz apresentada no álbum Born To Die já dá uma introdução ao conteúdo formal do videoclipe. O álbum tem, inclusive, uma versão da música Blue Velvet, gravada originalmente por The Clovers, mas eternizada na voz de Bobby Vinton, que foi utilizada em um spot da marca de roupas H&M, que faz várias referências ao universo de David Lynch – como, por exemplo, as coincidências entre a estética cinematográfica hollywoodiana e a europeia, a celebração da juventude de uma forma distorcida, a barreira nas relações humanas (principalmente amorosas), o tom onírico/surreal/subconsciente (que se manifestam nos temas de Lynch e nas melodias de Del Rey), entre outros – um dos cineastas responsáveis por dar forma à éstetica da qual Lana se apropria. Tropico é uma referência aos países que estão localizados entre os trópicos de Câncer e Capricórnio (e, para os estadunidenses, principalmente ao México e aos países da América Central). Sendo essas regiões de clima tropical, o termo evoca a imagem do paraíso no imaginário comum: sol, água, areia e palmeiras. Além disso, a promessa de que é possível encontrar um oasis no meio do deserto. Lana poderia, então, ter escolhido simplificar sua narrativa: contar a história de uma mulher que, buscando alcançar o american dream, se perde no meio do caminho. O que vemos, no entanto, é uma bela fábula sobre se perder tentando se encontrar (ou, como diria a música Shake it Out de Florence Welch, “looking for heaven, found the devil in me”), uma alegoria para a própria juventude.

Body Electric, o primeiro segmento da narrativa, é uma reencenação da mitologia abraâmica de Adão e Eva. Como é de se esperar em um videoclipe de Lana Del Rey, ele é permeado de ícones da cultura pop. John Wayne representa Deus e os outros personagens, provavelmente uma “santíssima trindade” da adoração popular: Jesus Cristo, Marilyn Monroe e Elvis Presley. É interessante notar que, enquanto o modelo Shaun Ross encarna Adão, Del Rey parece interpretar duas personagens diferentes, Eva e a Virgem Maria. Há, no entanto, a possibilidade da narrativa buscar encontrar um ponto em comum entre as duas. Nova Eva é um dos nomes recebidos por Maria, justamente por representar a obediência diante de Deus. Dentro da mitologia abraâmica, é Eva que comete o pecado original e leva a humanidade à perdição, mas é Maria, em uma redenção da figura feminina, que permite sua salvação, dando a luz a Jesus Cristo, fechando o primeiro ciclo de histórias das religiões cristãs. Essa unidade das personagens, então, pode representar justamente que ao, se perder, só depende do próprio indivíduo se encontrar novamente. A perdição e salvação convivem em um só espaço.

O Jardim do Éden de Tropico é um paraíso lisérgico. Dainteração entre as tonalidades das plantas às cores do céu, passando pelo exagero de flares coloridos, todos os elementos remetem a um estado de alucinação e, consequentemente, ao conteúdo da música, que fala sobre o estímulo do corpo. É possível ver, também, nesse contexto, um unicórnio, animal mitológico que aparece em algumas traduções da Bíblia, em referência ao animal que, nas escrituras originais, se chama re’em. Além de representação da força (o animal consegue levantar Davi com seu chifre), sua cor é um símbolo de virgindade e castidade. Segundo uma lenda medieval, que acabou se tornando uma alegoria para a incarnação física de Jesus Cristo, o unicórnio é atraído por uma mulher que tenha esses dois atributos supracitados. Dessa forma, o animal mitológico colocado dentro do Éden evidência a aproximação da humanidade (representada por Adão e Eva). A atribuição da qualidade “sensual” à dança de Eva é, então, nada mais que uma interpretação da cultura contemporânea, já que naturalmente, qualquer gesto pode existir sem pecado. Esse é um contraponto importante ao próximo segmento.

Wayne e a santíssima trindade da cultura pop são idolatrados como símbolos e, por representarem tal perfeição, se encontram juntos no Paraíso. Eva cria uma identificação com tais símbolos dizendo, na música, que foi criada por eles (provavelmente um discurso da própria Lana) e parece haver um desejo de ser como eles. Etimologicamente, electric tem a mesma origem que o nome Electra, personagem de Sofócles. Na teoria psicossexual de Carl Jung, o Complexo de Electra se dá quando a filha sente impulsos de roubar o lugar da mãe. Dizendo “Marilyn is my mother”, Eva poderia estar querendo roubar o seu lugar enquanto ídolo. Por isso, ela é tentada pelo Demônio, simbolizado pela serpente, a morder o fruto proibido. A perdição, aqui, vem justamente de Adão e Eva escolherem deixar o Paraíso, onde os ícones já estão determinados, para tentar a chegar a tal nível de adoração entre os humanos comuns – mesmo que isso signifique ter de deixar um lugar perfeito e que não há unicórnios para julgar onde há ou não a pureza.

Quando a narrativa se torna terrena, a identificação com o Jardim do Éden é feita através do som: a mesma estática radiofônica que se envolvia antes, é possível ouvir agora. O rádio é, provavelmente, o primeiro meio de comunicação em massa que criou símbolos e, durando até hoje, é colocado como uma alegoria à divisão entre os humanos comuns e os ídolos da humanidade. A narração de Lana vem reforçar a imagem da mulher como causadora do pecado original, ao mesmo tempo em que detentora da salvação. Maria e Eva, agora, de fato, são uma só – tanto que, antes com aparência etérea, agora demonstra o desejo de “be fucked hard”. É importante notar a interação que se cria entre a narração e a imagem: enquanto no começo há uma espécia de redundância entre os dois, ambos começam a interagir à medida que a narração cita elementos simples da vida cotidiana e imagem aparece em slow motion, como uma forma de perceber os detalhes de tais elementos, que geralmente não são reparados no dia-a-dia.

No segmento Gods and Monsters, tal simplicidade leva Lana/Eva/Maria a concluir que o próprio corpo é um limite entre o que é físico e a alma de um indivíduo. A música, agora, descreve a vida que Eva escolheu ter na Terra: no lugar em que deuses (alma) e monstros (corpo) convivem, ela é uma linha tênue entre os dois, um anjo de origem virginal, mas que se entregou ao pecado. Los Angeles, a cida dos anjos, é o jardim do mal descrito na música, em que ela, mesmo com medo, é obrigada a fazer de tudo para sobreviver (“Doing anything I need” para se sustentar e “Living like Jim Morrison”, ou seja, drogando-se como uma forma de escape). Dessa forma, ela trabalha como stripper – dançando sensualmente e, agora sim, com conotação sexual, ou seja, sem a pureza original que busca o unicórnio – vestindo-se de vermelho. Na teologia cristã, a cor é tida como simbólica do pecado (o fruto que Eva morde, por exemplo, é vermelho) e do sacrifício. Eva, então, é obrigada a sacrificar seu corpo, sua beleza e sua juventude ao pecado, para conseguir dinheiro.

Los Angeles é, também, uma das cidades-símbolo do american dream. Hollywood é o lugar em que as pessoas tornam-se estrelas, o que almejava Eva ao morder o fruto proibido. Ali, Adão e Eva arquitetam um plano para roubar dinheiro de grandes empresários. Essa sequência de símbolos alegorizam a própria relação de um recording artist com a indústria fonográfica: para se tornar um ícone, é preciso se despir de toda a originalidade e deixar que os agentes das gravadoras criem uma imagem do zero. Para se tornar um sucesso, um artista preciso ser moldado do barro para ganhar a forma que vai diferenciá-lo dos comuns.

Enquanto o plano é executado Lana/Eva/Maria narra um trecho da primeira parte do poema Howl, do poeta americano Allen Ginsberg. Principal expoente da geração beat, o poeta descreve, no trecho, sua visão do mundo em que está inserido, quase como um lamento à juventude. O poeta se refere ao meio em que vive como formado por desajustados, que não se encaixam nos padrões do que é “normal” da época. Lana, da mesma forma, descreve sua geração como jovens desajustados vivendo no jardim do mal. É interessante o que a cantora observou ao narrar o poema: mesmo com mais de cinquenta anos, Howl continua atual. Mesmo que não haja uma censura latente, existe uma aura cultural conservadora que sempre julga a juventude como perdida, principalmente por causa de seus ideias de liberdade. A luta contra a repressão é vista como uma luta contra a “moral”. Expor os interesses dessa geração, então, parece também ser uma pauta das canções da cantora, já que desde Ride – seu videoclipe anterior, também dirigido por Anthony Mandler, e que parece estar na mesma diegese de Tropico, ou pelo menos é isso que o estilo audiovisual dá a entender – ela traz essas questões da perdição como sendo, também, uma forma de se encontrar.

A narração retoma o tema das linhas tênues entre corpo/alma-deuses/monstros e coloca Los Angeles como a entrada tanto para o submundo, quanto para o paraíso. Maria pede perdão pelos pecados de Eva mas, agora com dinheiro, não há nada que a impessa de atingir o status de ícone. Sua canção, agora, é ouvida através da estática do rádio, simbolizando que ela chegou onde almejava. No segmento Bel Air, “que eu salve a América” parece ser o subtexto do recital de “America, why I love her”, por Wayne-Deus: um ícone americano abençoado alguém que atingiu o topo do american dream, mesmo que tenha sido por ter abraçado o lado rival, criando uma ironia que leva a questão que, se de fato, aqueles que atingem o sucesso estão do lado de Deus.

Adão e Eva se despem de tudo o que pertence à vida passada, principalmente do vestuário da cor preta, passando por um ritual de purificação simbólico que os permitirá seguir em direção ao Paraíso sem pecado, vestidos agora de branco. Paraíso, este, não como o Jardim de Éden, mas Bel Air, bairro nobre de Los Angeles. O anjo queria ser como os símbolos que via no Éden (“life imitates art”), mas acabou sendo atraída pelo Demônio, que a jogou na Terra. Fazendo de tudo para sobreviver, Eva conseguiu se estabelecer e mesmo passando para o lado obscuro, conseguiu sua redenção (“I don’t want to be bad”) e encontrar seu próprio Paraíso. Este que parece muito mais verdadeiro do que o Éden, dito perfeito. Como questiona a cantora Lady GaGa, em sua versão da criação do universo, no videoclipe Born This Way, “how can I protect something so perfect without evil?”.

Contar uma história bíblica dessa forma pode soar basflêmico para quem segue as religiões abraãmicas. Isso, talvez, porque colocar a humanidade perto de Deus – mesmo que ela tenha sido feito à sua imagem e semelhança – seria colocar um ser perfeito em face à sua criação passível de corrupção. Del Rey encontra, justamente, um ponto entre bem e o mal. Mais do que isso, aliás, coloca os dois na mesma esfera, como se os dois pudessem ser a mesma coisa. Na narrativa, a ascensão ao Paraíso depende das escolhas feitas por livre arbítrio, independente se elas são “más” ou “boas”. Tecnicamente, a obra se apropria da linguagem videoclíptica, sem grandes revoluções para o meio, mas a narrativa de Tropico representa um grande avanço para a contemporânea hibridização da imagem, seja ela sonora ou visual.

 

*Lucas Scalon é graduando no curso de Imagem e Som na Univesidade Federal de São Carlos (UFSCar) e editor responsável pela seção Panorama na Revista Universitária do Audiovisual, para a qual escreve esporadicamente.

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Deixe uma resposta