Mariana Polo Garotti e Marilia Abrão Rezende *
Todo autor tem uma linguagem própria e, usualmente, essa linguagem se adequa a seu objeto de estudo e à sua intenção, seja ela poética, narrativa ou explicativa. Se Decartes foi bem sucedido ao fundar o método cartesiano, isso se deve, entre outras questões, à escolha de uma linguagem adequada. Decartes jamais fundaria o método valendo-se da linguagem poética! Seu discurso, extremamente lógico, exige o devido encadeamento de ideias de modo que a primeira premissa sustente a segunda e assim por diante.
Tratando-se de Bachelard, a linguagem por ele utilizada coube perfeitamente em sua intenção. Bachelard se apoia na literatura para nos sugerir imagens e sensações, tal como se preocupa em deixar brechas para que o leitor divague e se aproprie de suas descrições e enunciados. Essas brechas não seriam possíveis se não houvesse um cuidado vocabular. O autor escreve como quem intenciona fornecer imagens. Bachelard só não nos fornece menos texto e mais imagem porque pretende abordá-las, estando sujeito ao uso da escrita. Não fosse isso, acredito que o autor nos daria um quadro ou ao menos um poema, linguagens essas muito mais próximas de sua crença e valoração da imagem. Sem dúvida alguma, seria agradável ler Bachelard e sua teoria por poemas, no entanto, essa não seria a linguagem adequada (a linguagem do autor é um tanto quanto poética, mas ela não se aproxima de um poema em estrutura). Podemos ler os mais diversos poemas e eles nunca nos diriam o que escreve Bachelard. Não porque sejam pouco ricos, ao contrário. A riqueza que um poema nos proporciona nos faz submergir na imagem e não nos deixa espaço suficiente para refletir a respeito dela, de sua importânca como presença, de seu poder e elementos.
Em ” A Poética do Espaço” o autor mostra seu apreço pela meticulosidade da poesia na escolha vocabular: ” Por si só a importância vocal de uma palavra deve prender a atenção de um fenomenólogo da poesia. A palavra alma pode ser dita poeticamente com tal convicção que envolve todo um poema”. E como poderia ser diferente? A escolha das palavras determina, mais que uma interpretação, uma sensação. Pensamos que cada palavra carrega em si um valor, algo que supera seu sentido em especificidade. Uma palavra pode ser substituída por seu sinônimo vírgula mas isso sempre acontecerá de modo grosseiro, pois os fonemas são distintos, o universo no qual as encontramos também (algumas são de uso comum, outras raras; algumas mais voltadas ao uso literários, outras mais jornalísticas..) e nossas impressões, no que diz respeito a tudo que vinculamos a elas devido a nossa experiência, também são variadas.
A linguagem, portanto, está associada às imagens na medida em que as incita. Ao lermos um texto, sobretudo quando ele é marcado pela subjetividade, diversas imagens nos são sugeridas. Um poema nos leva a inúmeras imagens (ou as traz até nós), se preferirmos). Bachelard, em ”A Poética do Espaço” faz uso de poemas e romances para refletir sobre a imagem incitada. Em um dos momentos o autor escolhe uma narrativa – L’antiquaire – e faz menção às escadas dos ambientes envolvidos. A torre e o subterrâneo, através do poder imaginário que contêm, têm suas escadas ”distintas” , de modo a rememoramos sempre a subida que nos conduz à torre (e não a descida) e a descida que nos leva ao subterrâneo. Isso porque a torre como um espaço de tranquila solidão e o porão como um ambiente sombrio estão muito mais apregoados a nosso imaginário que o ambiente intermediário para o qual se retorna ao descer da torre e ao subir do porão.
Sobre o livro ”A Poética do Espaço”, o qual ainda não foi abordado em suas ideias gerais, podemos dizer que é cativante. Ele coloca em questão os espaços que criamos ou recriamos a fim de nos abrigarmos. Podemos possuir uma casa e não nos sentirmos ”em casa”. Precisamos recriá-la, fazer dela nossa e confortável para que essa se apresente como um abrigo de fato. Usamos aqui a palavra abrigo como aquilo que nos envolve, recolhe, protege… Dessa forma, qualquer espaço reconfortante, recriado por nós pode ter o efeito de um abrigo. Costumamos relacionar o elemento terra a esses espaços de intimidade. Sim, talvez seja o elemento predominante. A casa, por exemplo, está vinculada a esse elemento e é um espaço de intimidade de peso. A casa da infância – diz Bachelard – é um ambiente para o qual nos voltamos sempre. Nosso imaginário, frequentemente, apoia-se nela e nas memórias que ela desperta para a construção de imagens e sensações. Porém, a casa e outros espaços vinculados ao elemento terra não excluem a possibilidade da criação de um espaço reconfortante que esteja vinculado aos outros elementos: água, ar e fogo.
O fogo, abordado pelo autor em ”A Psicanálise do Fogo” é capaz de modificar um ambiente, transformando-o em um espaço íntimo. Isto é, o fogo pode proporcionar o aconchego num dia frio, no qual a lareira estala e fornece o calor que acaricia a pele. Não é apenas o calor, mas também esse estalar da lareira que proporciona a atmosfera capaz de levar o homem a outro estado de espírito, em que, como cita Bachelard, ele, quase que inconscientemente, apóia o cotovelo no joelho e o rosto sobre as mãos, em uma espécie de hipinóse à aquela chama que ali se configura.
O fogo não só aquece, mas também transforma a matéria, consome o que o mantém, sendo o único objeto a possuir nitidamente a dualidade de ser bem e mal. Ao mesmo tempo em que fornece o calor, ilumina, aconchega e cozinha o alimento, ele pode queimar, trazer dor e destruição. É essa contradição que o faz receber o respeito do homem, que desde a sua infância aprendeu a temê-lo e admirá-lo. A criança é impedida de se aproximar do fogo, e é exatamente esta proibição que a faz manter-se distante e ao mesmo tempo desejá-lo. Bachelard se utiliza de mitos para explicar as imagens e suas sensações. Com o mito de Prometeu, o autor explica o desejo do filho em ”roubar” o fogo do pai, conquistando o poder de acendê-lo.
Além disso, o elemento fogo está presente na fricção entre corpos. Se no atrito entre pedaços de madeira ele surge, também se manifesta quando amantes se afagam. O fogo é a metáfora da paixão e da fecundidade. Se o homem aprendeu a fazê-lo, com o atrito entre madeiras é porque já sabia do calor que se produz entre os corpos.
O cavalo da figura é muito mais imponente por ser composto de fogo. Ao ver um cavalo desses sentiríamos uma espécie de força, quase que gravitacional, que desejasse nossa aproximação a ele. Simultaneamente, haveria uma força mais sensata – a repulsa provocada pelo medo – que nos impediria de sermos queimados. Que impacto um cavalo composto por outro elemento, como a água, teria sobre nós? Qualquer que fosse, não nos atrairia tanto, não provocaria em nós a contrariedade da atração e da repulsa. Não há figura mais proponente a nosso olhar que o fogo sob a noite. O fogo na noite possui um contraste e uma energia exclusivos. No cavalo, seu poder é maior ainda. O fogo ganha forma e movimento. Torna-se mais fabuloso e temível.
A figura do cavalo complementa o poder do fogo. O cavalo é um animal ativo e musculoso. Ao cavalgar coloca todos os seus músculos em atividade. Não é como um gato ou um tamanduá de fogo. O fogo nesse animal tem sua imponência acrescida.
Retirando a lareira da imagem, o espaço se tornaria um pouco menos acolhedor. O fogo é insubstituível. Qualquer imagem que fizesse menção a ele seria ineficiente. O fogo é sensível. Sensível na medida em que podemos senti-lo como calor e como presença. Um dia quente, onde há calor, não pode ser tão acolhedor quanto um dia frio, no qual o calor é recriado com a presença do fogo. O fogo não só esquenta a pele, ele a toca, envolve-nos, aconchega. Isso no nível de intensidade em que se encontra presente na figura acima.
O fogo está presente num abraço, como a um vapor que não queima, mas aquece. O fogo nasce, aqui, do contato entre os dois. E em outras situações, nas quais não o vemos mas o sentimos presente, o fogo é social. Envolve mais de um.
“Se tudo o que muda lentamente se explica pela vida, tudo o que muda velozmente se explica pelo fogo”. O fogo tudo consome, se alastra, apaga o tempo e a memória. Transforma qualquer matéria, se quiser transforma tudo em cinzas.
A água é o elemento oposto ao fogo. Ela é capaz de apagá-lo, ao oferecer a ele o que não cabe em seu ser. O fogo não aceita outro elemento armoniosamente, não o fogo em chamas. Ele consome o ar e até mesmo a água em menores proporções. Se isso não ocorre é ele quem se apaga.
A imagem a baixo é composta por todos os elementos. O sol é fogo, ilumina, aquece e bronzea. A água purifica, é o feminino em ascensão. Já a terra, representada pelas árvores, traz a fertilidade. O ar é, a princípio, incolor, mas pode adquirir tons. É o que nos mantém vivos. Sustenta o voo dos pássaros, balança as árvores e enche nossos pulmões. Tais elementos estão em tudo e Bachelard faz uso deles ao mergulhar na imagem, levantando as sensações que esses despertam.
Bachelard, como vimos, a partir do fogo, mergulha na imagem. Não pretende produzir conhecimento, mas sim desfrutar do sabor dela. A imagem poética abordada por Bachelard não possui passado, nem futuro, mas somente a imagem repentina. Fosse os psicanalistas, a presença da imagem seria colocada em segunda plano. Na opinião deles, sua importância para análise está no momento da criação, no que a impulsiona. Ainda sim, o valor que os psicanalistas conferem à imagem é imenso. Outros teóricos evitam-na, encarando-a como um mal. Platão é um desses teóricos. Seu objeto de estudo – a verdade – não pode admitir um caminho trilhado através da imagem.
Não queremos desmerecer Platão, e nem seria possível minimizá-lo em grandiosidade. No entanto, o autor nunca se permitiu desfrutar da imagem. Produzir conhecimento e se aproximar da verdade estão muito distantes dela como fonte na qual podemos mergulhar sem uma busca precisa. Desse modo, vemos que Bachelard abre imensos portais ao se despojar de pretensões como a produção de conhecimento. Tal irreverência proporciona a ele um caminho totalmente distinto: um caminho pela imagem, visando somente a imagem e nada mais.
* Mariana Polo Garotti e Marilia Abrão Rezende são graduandas em Imagem e Som pela UFSCar – Universidade Federal de São Carlos
Referências Bibliográficas
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. El Dourado: Rio de Janeiro.
BACHELARD, Gaston. __________________. A Psicanálise do Fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
DESCARTES, René. Discurso do método. Brasília: UnB, 1985.