A Memória Intraduzível de Paula Gaitán em Diário de Sintra (2008)

Diário de Sintra (2008)

Por Nicole Menegasso

Graduanda do Curso de Audiovisual do Centro Universitário Senac – Santo Amaro

“Glauber, profeta alado, poeta do ar, dos murmúrios, das imagens, das trevas, revoluções, da tempestade, profeta alado. Fragmentos de cartas, registros das memórias, fotografias […] Sintra é um belo lugar para morrer. Sintra is a beautiful place to die. Por maior que seja o desespero, nenhuma ausência é mais funda que a tua, num deserto sem água, numa noite sem lua, num país sem nome, numa terra nua.”

Gaitán, Paula (Direção). (2007) – Diário de Sintra (Brasil): Aruac Filmes 

A poesia citada por Paula Gaitán em um trecho do filme sintetiza bem o enredo da obra. Sintra é uma cidade portuguesa localizada próxima à capital Lisboa. Esse foi o lugar em que Glauber Rocha foi exilado em 1971 por conta do regime militar e também ao qual passou os últimos anos de sua vida junto com seus filhos e sua esposa. Como colocar em movimento os sentimentos que este lugar traz? Como criar imagens de uma nova Sintra que remetem ao mesmo luto? 

O filme todo é filmado em primeira pessoa, e Paula utiliza suas imagens de arquivo filmadas em 16mm, que têm registros pessoais de família, misturadas com filmagens de uma Sintra atual, como um roadmovie, portanto sempre há essa mudança do granulado para o digital. 

Pode-se dizer que o filme foi dividido em três atos: Relação Glauber com a paisagem de Sintra, Glauber no imaginário das pessoas de Sintra e Glauber no imaginário de seus amigos e familiares quando morava em Sintra. 

“A paisagem não é habitada, é vivida” é um dos trechos de poesias utilizados por Paula no filme.

A cena inicial são várias fotos de Glauber, nas mais diversas situações e fases, espalhadas em um jardim e que vão sendo recolhidas e penduradas em uma árvore. De acordo com Rodrigo Oliveira, em seu artigo para HambreCine: “Não é mais, nem é menos, mas exatamente isto: Glauber disperso, fragmentado, e então reagrupado em torno de uma energia natural”. 

Essa energia sobrenatural de Glauber, como se ele e a natureza fossem uma coisa só, aparece por diversas vezes durante o filme. Como em uma das cenas mais deslumbrantes ao qual em um plano fixo é mostrado uma correnteza levando a areia até descobrir-se aos poucos uma foto inteira do diretor. Mesmo que anos tenham se passado desde a sua passagem por Sintra, ele ainda está eternizado com aquela paisagem, de alguma forma. 

A diretora diz em entrevista cedida para a 24° Mostra da Cidade de Tiradentes que ao ir para Sintra, foi sem roteiro de viagem, pois a Sintra que morou não é mais a mesma, portanto foi em busca de lugares aos quais remeteram aquela época, mesmo que jamais tivesse ido até lá. 

“Porque é isso, os espaços têm mutações também, então, quando você volta para esses lugares, esses lugares já não são aquilo. Então, como passar adiante essas sensações, essa memória que é intraduzível?” (Gaitán, Paula. Cinema sem Fronteiras – Entrevista Paula Gaitán | 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, dezembro de 2020)

Dessa forma, a memória deixa de ser um elemento revisitado através de seus arquivos e torna-se uma memória vivida efetivamente no presente. Ela conseguiu traduzir sua memória intraduzível. 

Ao optar por um método sem grandes represálias criadas por um roteiro escrito à pedra, Paula tem um trabalho muito mais ligado às sensações. O poético de seus filmes vem de um olhar muito naturalista, como a própria diretora diz: 

“O poético, eu acho, que vem do real. Você olha as ruas, sai e agora olha da janela a rua, você vai encontrar no real essa poética do cotidiano. Meu trabalho se inspira no mundo como é, ele é terreno, não é inventado. Não existe uma falsificação. O que faz o cinema naturalista? Ele cria a impressão da realidade a partir de coisas construídas. Eu nunca trabalhei em estúdio, sempre trabalhei com o mundo que ele é, a natureza como ela é. O meu cinema é muito de externas, para construir, digamos assim, inventar um novo mundo a partir de elementos que são reais.” (Gaitán, Paula. Desalinho – A Revolução Artística de Paula Gaitán, fevereiro de 2021)

Consigo fazer uma ligação desse trecho acima com algumas cenas do filme, ao qual a câmera permeia pela cidade gravando diversos espaços (ao qual já sabemos que muitos, sequer, houve a presença do Glauber), entretanto, esse estilo da diretora faz com que a presença de seu falecido marido ronde os planos mesmo sem sua figura aparente, dando não apenas um tom poético, mas fantasmagórico também. 

Partindo para um suposto segundo ato, Paula utiliza de um dispositivo: Começa a mostrar uma foto de Glauber da época que morou na cidade para diversas pessoas idosas na rua, perguntando se elas sabiam quem era aquele homem na foto. Nenhuma das entrevistadas disse que ele era o renomado diretor do cinema-novo brasileiro, uma das senhoras até chutou que ele era um ator português, porém todas identificaram ele como alguém que morava em Sintra. Mesmo em exilio, ele pertenceu a esse lugar, e até hoje esse lugar pertence a ele, em uma memória acolhida de pessoas que talvez ele nunca tenha cruzado.

“Cá está, esta é uma imagem de exílio, uma imagem de refúgio, uma imagem doída” foi falado por um amigo do casal ao ver a foto de Glauber. 

No decorrer da obra, somos inundados de imagens de família gravadas pela diretora nos anos que morava em Sintra. Vemos a intimidade daqueles arquivos, com cenas do Glauber brincando com seus filhos ainda pequenos, conversas íntimas, os dois juntos. A diretora ainda revela que houve uma hesitação em utilizar essas imagens: 

“Quando o Glauber morreu eu achei que era uma coisa muito colada, e eu nunca quis me aproveitar desse material para fazer uma coisa oportunista. Já se passaram 25 anos, já estou com muitos cabelos brancos, ai eu decidi trabalhar este material, porque é muito lindo, ele tem uma carga poética muito grande. E também fazer uma reflexão, poética de novo, acho que a palavra é essa, sobre esse período, refletir um pouco sobre essa relação desses últimos meses de vida do Glauber.” (Gaitán, Paula. Mulheres do Cinema Brasileiro –  Paula Gaitán, junho de 2006)

Além desses registros, Paula utiliza do mesmo dispositivo para mostrar as fotos de Glauber na época do exílio, só que dessa vez, mostra para seus amigos da época. Nesse momento, o espectador já tem uma outra visão de quem é esse homem que está sendo documentado a partir de memórias.

Aos poucos o filme aproxima o espectador do Glauber Rocha. Mesmo que em alguns momentos tenha o alívio de uma bela paisagem ou de senhoras engraçadinhas na rua, ainda tem seu tom melancólico muito forte, pois  é a história de uma viúva revisitando o lugar ao qual passou os últimos dias de vida de seu marido, pai de seus filhos, doente e exilado. 

“[…] se tem uma visão um pouco caricata do que aconteceu naquela época. Eu tenho outra visão, tenho outra versão dos fatos. Agora, não é um filme histórico, não é um documentário jornalístico, é um documentário dentro dessa linha, linha mais metafórica, mais poética.” (Gaitán, Paula. Mulheres do Cinema Brasileiro –  Paula Gaitán, junho de 2006)

Ao se aproximar do fim, o filme se torna cada vez mais melancólico e pesado, como se o espectador fosse convidado a passar os últimos dias de vida de Glauber com a família. Agora já se vê trechos dele falando sobre a doença e sua proximidade com a morte.

Sua ida é simulada por uma sucessão de cenas que vão escurecendo e acendendo, como se fosse alguém piscando, de forma ofegante e fugidia. Ao vir um tremor sonoro, é apresentada a última imagem de Glauber do filme (talvez de sua vida), em que ele está deitado em uma rede com um olhar pesaroso. Diário de Sintra acaba, junto com Glauber.

A memória é fragmentada, não-linear, suscetível a distorções e muito próxima do onírico. Paula Gaitán, com sua abordagem orgânica e poética, resgata essas lembranças que, de outra forma, seriam intraduzíveis. 

Ao renunciar à narrativa convencional, “Diário de Sintra” mergulha na subjetividade, na poesia e nas experimentações. Ao descartar a rigidez de um roteiro ou mise-en-scene, a diretora explora um terreno fluído de sensações.

As emoções causadas pelo espectador, a melancolia e a angústia que permeiam cada cena, transcendem a ficção. Paula Gaitán não apenas desafia as fronteiras da realidade, mas também tece de experiências muito profundas ao longo do filme.

REFERÊNCIAS (seguindo norma ABNT):

Oliveira, R. Diário de Sintra. Hambre Cine, p.30-32 – 2014. Disponível em: https://hambrecine.files.wordpress.com/2014/02/7.pdf. Acesso em: 4 nov. 2023

Valente, E. Diário de Sintra, de Paula Gaitán (Brasil 2007). Revista Cinética – 2007 Disponível em: http://www.revistacinetica.com.br/diariodesintra.htm. Acesso em 4 nov. 2023

Gaitán, Paula. Entrevista Paula Gaitán | 24a Mostra de Cinema de Tiradentes. Entrevista

concedida a Francis Vogner dos Reis, dezembro de 2020;

Gaitán, Paula. A revolução artística de Paula Gaitán. Entrevista concedida a Michele

Costa. Desalinho, fevereiro de 2021. Disponível em:

https://www.desalinho.com/posts/a-revolu%C3%A7%C3%A3o-art%C3%ADstica-de-paula-gait%C3%A1n . Acesso em: 4 nov. 2023;

Gaitán, Paula. Elas por Elas – Paula Gaitán. Mulheres do Cinema Brasileiro, junho de

2006. Disponível em:

https://www.mulheresdocinemabrasileiro.com.br/site/entrevistas_depoimentos/visualiza/136/. Acesso em: 4 nov 2023;

Gaitán, Paula. Embaúba Play. Disponível em: https://embaubaplay.com/catalogo/diario-de-sintra/. Acesso em: 28 out 2023;

Diário de Sintra. Direção: Paula Gaitán. Produção: Leonardo Edde e Eryk Rocha. Rio de

Janeiro: Urca Filmes, 2008. Disponível em:

https://vimeo.com/ondemand/diariodesintra/483087012 . Acesso em: 28 out 2023;

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Deixe uma resposta