A trajetória do homem absurdo em “Veludo Azul”

Albert Camus enquanto romancista foi de considerável contribuição para a literatura do nosso tempo, rendendo-lhe inclusive o reconhecimento de um prêmio Nobel – mas é como filósofo, no entanto, que somos levados a crer, dada as características peculiares da época em que vivemos, que seus pensamentos foram realmente definitivos. Marca uma reinterpretação, um estudo e o esclarecimento de uma angústia que encontra eco em todos nós, posto sua inerência ao próprio ato de viver. Camus e seu são os símbolos maiores desse momento aterrador e sublime em que os homens vão pouco a pouco tomando conhecimento do Absurdo, um processo essencial para um novo momento da história, onde a liberdade e a melancolia são conseqüências inevitáveis de uma visão demasiada clara da vida, da onde constatamos a total falta de sentido e propósito em nossa existência marcada pela morte. Após tantos anos mergulhados em sistemas fantasiosos que enchiam nossa vida com significado, é de compreender a dor do homem absurdo perante seu rochedo. Um despertar que pode levar tanto ao suicídio (físico, mental, espiritual) à felicidade que só se encontra na verdade, ou, ao menos, no reconhecimento decisivo da inexistência dela. Vemos em Camus o conflito entre dois mundos: o mundo passado, aquele pertencente aos que ainda dormem, e o mundo presente, onde o Absurdo coroa cada homem como o deus único de sua existência. A tênue linha que separa os dois é feita de apenas um elemento: a consciência. Analisando a obra de David Lynch, é possível enxergar em alguns de seus momentos e personagens, ilustrações dessa filosofia. No entanto, a estética o diferencia de outros artistas que, propositalmente ou não, tiveram as temáticas contaminadas por esses pensamentos. Longe de apenas narrar o Absurdo, Lynch nos propõe uma narrativa e uma linguagem que é por si só absurda, rendendo a seu legado ainda em construção uma coerência de forma e conteúdo que, ignorando as diferenças de estilo, poderia colocá-lo ao lado de nomes reconhecidos pelo próprio Camus, sendo Kafka a lembrança mais óbvia dessa lista.

A maioria de seus filmes é aberta o suficiente para se projetar inúmeras interpretações acerca de seus discursos, mas é em Veludo Azul que Lynch parece nos guiar mais claramente a uma visão Camuniana da vida. A trajetória do protagonista pode ser lida claramente como a do homem absurdo. Jeffrey, no início da narrativa, se encontra mergulhado em um mundo idílico que parece se equilibrar delicadamente sobre negações essenciais a sua manutenção. Em uma cena, a tia de Jeffrey o alerta a nunca pisar em determinada rua, um território desconhecido que representa uma ameaça constante ao sonho de lógica e coerência cujas cores, demasiadamente falsas, pintam a felicidade entorpecida daqueles indivíduos. Qualquer peça fora do lugar pode tornar clara demais a artificialidade que grita nos cenários, nas vozes e nos diálogos e que, embora ao telespectador seja exposta brutalmente, é ignorada firmemente pela inconsciência dos personagens que a povoam. Andando por um campo abandonado após visitar seu pai no hospital (cujo acidente já representa um aviso, uma brecha pela qual o Absurdo começa lentamente a emergir e se impor naquele mundo), Jeffrey encontra uma orelha humana amputada sendo devorada por formigas em meio à grama. Essa imagem é o próprio Absurdo, é o golpe final que faz romper dentro do homem sua crença cega nos códigos que, se antes reconfortavam, agora só podem produzir asco. A câmera nos leva a “entrar” na orelha, em um belíssimo corte que nos conduz a corredores escuros cujo destino ainda é incerto. Nasce dentro de Jeffrey o impulso que o impele em direção a uma verdade escondida – assustadora, de fato, mas que não pode mais ser ignorada, dada a desconstrução do mundo antes habitado. Sua busca por respostas o levará aos cenários mais trágicos, cruéis e vazios da existência humana, que estranhamente o atraem com uma paixão que exige ser vivida no presente, não mais na certeza de um amanhã que agora se encontra negado. Depois que essa paixão é finalmente consumada (carnalmente, em sua relação com Dorothy), a promessa tentadora da liberdade constrói uma consciência irreversível; “Você tem minha doença agora”, anuncia a mulher, e essa frase pode ser dirigida a todos nós – fala dessa doença para qual encontramos a cura à custa de nosso próprio orgulho e humanidade e agora clama por ser recuperada. É da própria vida que emana essa doença. Negá-la é negar a vida.

Esse novo mundo é surreal, bizarro, distorcido, e ainda assim nos parece muito mais palpável e real do que aquele paraíso bucólico onde tudo fazia sentido. Lynch encontra na estética surrealista uma representação dessa incoerência que introduz o Absurdo em cada um de nossos dias. Sendo a jornada de Jeffrey a confrontação com o que de pior existe em si e no que o cerca, é difícil imaginarmos uma conclusão feliz para essa história, do mesmo jeito que nos parecia improvável imaginar Sísifo feliz com sua condenação. Mas assim como Camus, em última instância, quando o Absurdo é plenamente aceito e reconhecido, Lynch vislumbra uma possibilidade ímpar de satisfação. Jeffrey volta para seu mundo cotidiano, é verdade, mas com uma consciência que agora guiará sua vida para sempre, e é principalmente no amor aonde encontra seu consolo definitivo. Esse caráter quase messiânico do amor também foi descrito por Camus, e seu apego à vida e aos homens o levaram a lutar com todo empenho em prol da humanidade. Sua ética é fruto da inteligência, não mais da submissão, e constrói um futuro aonde estamos felizes com nossa solidão no mundo, com nossa efemeridade e insignificância. Sísifo ri, Jeffrey também. A redenção absurda está finalmente consumada.

Fernando Spillere

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