Jurando vingar: anotações sobre a cópia em nitrato

Durante os anos 1920, acontece uma expressiva produção cinematográfica no estado de Pernambuco, no Nordeste do Brasil. De 1924 a 1930, são produzidos e exibidos quase 50 filmes, entre longas e curtas, de enredo e não ficção. Hoje em dia, talvez ainda mais surpreendente do que o número de títulos realizados é perceber o quanto sobreviveu desse conjunto. Um cálculo aproximativo indica que cerca de 30% dessa produção está preservada de alguma maneira, desde filmes completos (ou quase) até fragmentos ou apenas seqüências de fotogramas. É uma proporção a se comemorar, considerando que, de toda a produção brasileira até 1930, quase 4 mil títulos, apenas em torno de 7% está preservada.

O conjunto dos filmes silenciosos pernambucanos preservados permite empreender uma larga variedade de estudos, incluindo a análise fílmica e o exame físico dos materiais ainda existentes. Neste texto, irei registrar algumas observações iniciais feitas a partir do exame, em mesa enroladeira, da cópia em nitrato de Jurando vingar, filme dirigido por Ary Severo em 1925. Trata-se do terceiro filme de ficção realizado pela Aurora-Film, a “fábrica” mais atuante e reconhecida no Recife entre os anos de 1925 e 1926. Antes dele, a produtora havia lançado Retribuição e Um ato de humanidade, ambos dirigidos em 1925 por Gentil Roiz, um dos fundadores da Aurora, ao lado do cinegrafista Edison Chagas.

No enredo de Jurando vingar, o herói Júlio (Gentil Roiz) encanta-se por uma atendente do café local, Bertha (Rilda Fernandes), e acaba arrumando briga com um “mau elemento”, que irá se vingar do protagonista, primeiro assassinando sua irmã e depois raptando sua namorada Bertha.  Trata-se de um típico filme de aventura, nos padrões do cinema americano popular da época, mas ambientado na Zona da Mata pernambucana, uma paisagem dominada por infindáveis plantações de cana-de-açúcar.

A cópia preservada

A cópia em nitrato com tingimentos de Jurando vingar, hoje depositada na Cinemateca Brasileira, pertence à Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), de Recife. O material integrava o acervo de filmes e documentos guardados durante décadas por Jota Soares, ator, diretor e principal memorialista do cinema silencioso pernambucano.

A Fundaj teve o cuidado de conservar em instalações especiais os filmes pernambucanos em nitrato, material altamente inflamável utilizado até os anos 1950, quando foi substituído pelo acetato (suporte de segurança). Como o nitrato pode entrar em combustão espontânea quando exposto a altas temperaturas, não se recomenda que seja exposto ao calor das luzes de um projetor, o que inviabilizou durante décadas o exame e a catalogação do material pela Filmoteca da Fundaj. O exame manual mais detalhado também não era possível, já que a instituição não possuía uma mesa enroladeira. Graças a acordo firmado com a Fundaj, a Cinemateca Brasileira recebeu os nitratos pernambucanos, transportados para São Paulo em caminhões especiais entre dezembro de 2006 e janeiro de 2007. A partir das cópias em nitrato, o Laboratório da Cinemateca fez contratipos (material negativo) em acetato e, em seguida, cópias (material positivo) em poliéster, suporte mais utilizado atualmente.

Dividida em 6 rolos, a cópia tem um total de 1.065 metros, com uma duração aproximada de 50 minutos. Além dos 6 rolos, também vieram no lote da Fundaj pequenos fragmentos soltos do filme, separados em um estojo identificado com a etiqueta “Sobras”. Tanto a cópia quanto as sobras são em filme Agfa, que não traz símbolos na borda para identificar o ano de fabricação da película. Os únicos trechos com película Eastaman Kodak são as cartelas “Segunda Parte” e “Fim”. Sem dúvida foram colocadas posteriormente e não são parte original de Jurando vingar, já que trazem indicação da produtora Liberdade-Film, criada por Edison Chagas mais de um ano depois da realização do filme.

A cópia em nitrato exibe numerosos e variados tingimentos (obtidos ao submeter a cópia a banhos de corantes). Na restauração do material, feita no Laboratório da Cinemateca Brasileira, os tingimentos originais foram reproduzidos pelo sistema Desmet Color. Um estudo mais rigoroso das cores da cópia em nitrato fica comprometido diante das variações que sofreram ao longo das últimas décadas, seja em termos de desbotamento ou das diferentes maneiras pelas quais os corantes reagiram às deteriorações, criando “efeitos visuais” indesejáveis – embora muitas vezes de grande beleza, nas formas e texturas criadas aleatoriamente. Por vezes, pode-se depreender motivos dramáticos e/ou espaço-temporais que servem de critério para o uso das cores: o verde patriótico para o plano da bandeira do Brasil, logo no início, ou o verde reforçando a natureza em planos nos quais se destaca o campo e a vegetação; o rosa festivo dominando a seqüência do almoço em comemoração ao casamento dos protagonistas. No mais, o mesmo laranja presente em todos os planos no interior do café da povoação aparece em cena externa, quando o herói visita a sepultura da irmã e jura vingança. Mais de uma cor pode aparecer na mesma seqüência, como no idílio do casal, quando se vê planos em amarelo, verde, azul e laranja; também quando o protagonista supervisiona o canavial, somos brindados com uma sucessão de verde, sépia, laranja.

O uso das cores parece destoar do gosto corrente na época de produção do filme, como indica o breve comentário de Mário Mendonça, “informante” em Pernambuco para a revista carioca Para todos…. Em carta a Adhemar Gonzaga (que assina a coluna de cinema brasileiro na revista), Mendonça observa: “Só não gostei de algumas cenas que estão com cores muito fortes” [1]. Diante da profusão e intensidade das cores e do efeito por vezes caleidoscópico de sua sucessão, fica-se com a impressão de que, bem mais do que critérios dramáticos e funcionais, prevalece no uso das cores o critério do puro ornamento, exibição dos recursos da produtora. É uma postura semelhante ao que acontecia nos anos 1910 em relação às principais companhias, para as quais, segundo Paolo Cherchi Usai, “o uso de uma escala de tons era com freqüência um sinal de prestígio” [2].

As “sobras”

O exame da cópia em nitrato na mesa enroladeira levantou algumas conjecturas (nem todas conclusivas) quanto a onde poderiam estar encaixados, originalmente, os fragmentos hoje considerados como “sobras”.

Quando teria sido realizada essa versão um pouco mais curta? Desde o lançamento em 1925 até a chegada do nitrato na Cinemateca Brasileira, oito décadas depois, o material passou por várias mãos, tendo permanecido durante bom tempo sob a guarda de Jota Soares, realizador, ator e técnico dos mais atuantes no período. Além disso, as cópias desses e outros filmes silenciosos pernambucanos foram manipuladas quando da realização de documentários sobre o chamado “Ciclo do Recife”, dirigidos pelo crítico e realizador Fernando Spencer, entre os anos 1980 e 1990.

É bem verdade que as “sobras” de Jurando vingar contêm imagens de interesse para serem mostradas em um documentário: cenas de briga, planos da mocinha, trechos com tingimento. No entanto, a natureza das supressões não parece ter como critério a peculiaridade das imagens excluídas. Mais do que isso, percebe-se uma evidente preocupação em conferir maior dinamismo ao filme, reduzindo a duração de determinados planos. Não se trata de uma intervenção radical, com a retirada de longos trechos, mas em geral de curtas seqüências de fotogramas. Entre as intervenções, também não se deve excluir a possibilidade de algumas se justificarem como forma de recompor trechos rasgados, quebrados e danificados.

É possível aventar a hipótese de uma “reforma” realizada por Jota Soares, antes de vender seu acervo à Fundação Joaquim Nabuco. Muito cioso da memória da época, ele poderia ter procurado realizar algumas alterações, nesse e em outros filmes em seu poder, que os tornassem mais “eficientes”, valorizando-os aos olhos dos espectadores de hoje. Esse é um procedimento, aliás, que está longe de ser uma exceção entre aqueles que conservaram filmes antigos. Não havia maiores pudores em manipular o material, como comprova a declaração de um depositante que, ao depositar na Cinemateca Brasileira uma cópia em nitrato do documentário Rumo ao céu da pátria (Antonio Medeiros, 1926), deixa claro na carta que envia junto com a cópia, em 1961: “fiz uma restauração à minha moda. Os técnicos se incumbirão de uma revisão adequada, se o filme for julgado de interesse” [3]. Fica sempre a dúvida sobre qual teria sido a extensão de sua restauração.

A intervenção realizada em Jurando vingar é parcimoniosa. As “sobras” somam pouco mais de 18 metros de película. Por mais discretas que possam parecer, entretanto, tais mudanças acabam por se contrapor às concepções iniciais de Jurando vingar, ignorando inclusive o que se configura como um traço estilístico dominante no filme, no qual existe um trabalho sistemático com a duração do plano que, aliada à profundidade de campo, acentua composições em perspectiva.

Na direção de Ary Severo, o tratamento dado ao plano muitas vezes explora a duração tanto quanto a ação. É recorrente a composição de quadro em perspectiva, enfatizando a profundidade de campo e o deslocamento dos personagens em meio à paisagem, permitindo que percursos e ações transcorram em um tempo mais estendido do que pregam os padrões habituais. A partir da decupagem e da montagem, o ambiente ganha relevo, torna-se elemento expressivo. É por meio do tratamento estilístico conferido ao espaço e à duração que Jurando vingar melhor dialoga com elementos regionais e locais, imprimindo uma tonalidade própria em meio às convenções do filme de aventura americano, que toma como modelo.

Luciana Corrêa de Araújo possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco (1987), mestrado em Cinema pela Universidade de São Paulo (1994) e doutorado em Cinema pela Universidade de São Paulo (1999). Realizou Pós-Doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Multimeios, da Universidade de Campinas (2001-2005). Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal de São Carlos. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Cinema, atuando principalmente nos seguintes temas: história do cinema, cinema brasileiro, cinema silencioso, documentário.


[1] Carta de Mário Mendonça a Adhemar Gonzaga. Recife, 20 de julho de 1925.

[2] Cherchi Usai, Paolo. Silent cinema – An introduction. London, BFI  Publishing, 2003, p.27.

[3] Carta de João Raymundo Ribeiro à Cinemateca Brasileira. São Paulo, 5 de junho de 1961.

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