Roberto Acioli de Oliveira *
Em 02 de novembro de 1975, Pier Paolo Pasolini foi assassinado em Ostia, na periferia de Roma
A Periferia é o Centro
Pier Paolo Pasolini chegou à Roma na década de 50 do século passado e nunca mais a deixou. Entrou naquela cidade pelas entranhas, no caso, a periferia. Pelas favelas cheias da gente pobre que o poder público ignorava (e/ou usava para fins eleitorais). Na verdade, assim que chegaram, ele e sua mãe foram alojados no antigo gueto judeu. Situado entre o Campidoglio, o Largo Argentina e o rio Tibre (Tevere), o bairro permitia a Pasolini vislumbrar áreas adjacentes destruídas por Mussolini em nome da urbanização – e de mais avenidas para desfilar suas tropas. Só posteriormente eles se mudaram para Rebibbia, na periferia miserável. Curiosamente, ao passar do centro para a periferia, Pasolini reproduz o destino dos moradores do centro de Roma que haviam sido deslocados pelos projetos de Mussolini – surgem então os primeiros bairros populares e favelas na periferia de Roma no século XX. Os primeiros poemas de Pasolini sobre Roma ainda não se referem a ela da forma como iremos conhecer posteriormente, embora já se encontrem imagens não urbanas que sugerem suas descrições futuras da periferia como um híbrido entre o sagrado e o profano, o estupendo e o miserável. Especialmente nos quinze poemas de Roma 1950, diário; no penúltimo ele utiliza a palavra “periferias” pela primeira vez (RHODES, John David. 2007: pp. 21, 24, 25-6).
Pasolini se deixa seduzir pelo mundo da periferia. Ao transferir seu amor pelos camponeses do Friuli para a população das favelas de Roma, começa a surgir aquilo que John David Rhodes chamou de uma “poética da periferia” na obra do poeta e futuro cineasta. A década de 50 avançou e o trabalho de Pasolini foi reconhecido. Os romances Ragazzi di Vita (1955) e Una Vita Violenta (1959), que examinam a sobrevivência nas favelas, tem relação direta respectivamente com Accattone. Desajuste Social (Accattone, 1961) e Mamma Roma (1962) (embora aqui também se possa incluir As Cinzas de Gramsci, de 1957), seus primeiro e segundo longas-metragens – embora não seja uma correspondência literal. Ragazzi descreve partes da periferia de Roma até a minúcia topográfica. Lugares bem na fronteira da expansão urbana da cidade. Essa Roma que está bem longe do Panteão, do Vaticano e da Piazza Farnese, pontos de referência da burguesia provinciana. É claro, sugere Rhodes, ao utilizar um tom zombeteiro, Pasolini assume que os romanos não querem saber de nada disso – o detalhamento das ruas e praças vem para repreender o provincianismo. Como o livro é ambientado no final da ocupação nazista e nos primeiros anos do pós-guerra, a descrição detalhada parece muito pior hoje do que poderia parecer em meados da década de 50.
Em Ragazzi di Vita, Pasolini documenta um mundo que estava fora do “radar” da maioria dos romanos. A Roma de Pasolini não está no centro, era desconhecida pelos turistas e ignorada pela Direita. Na opinião do poeta-cineasta, os conjuntos habitacionais construídos pela Democracia Cristã (Partido de centro-direita que dominou a política italiana de 1948 até princípio dos anos 60) são iguais às borgate rapidissime criadas por Mussolini e seus fascistas. Nos primeiros anos do século passado, quem chegava próximo a Roma de trem ou automóvel (principalmente pelo sul) encontrava pela frente favelas e bairros pobres. Essas áreas eram visíveis também a partir dos muros da cidade velha (a Muralha de Aurélio). Mussolini demoliu as favelas e bairros pobres do centro de Roma e transferiu a população para fora das muralhas. As borgate rapidissime são subúrbios construídos rapidamente para alojar essa população (Idem: pp. 429-30, 33, 167n38). Começa a saga das populações sem dinheiro ou trabalho, alojadas longe demais do centro de Roma. Na década de 60, algumas dessas áreas haviam sido alcançadas pela expansão da cidade.
Falando de Roma Mesmo Quando Não Está lá
Por outro lado, e apesar de amar essa gente, nos últimos anos de sua vida Pasolini se mudou para um bairro burguês. Com uma abreviatura como nome, o EUR (Esposizione Universale Roma) havia sido projetado durante a era fascista de Mussolini como a cidade ideal. Quando lhe questionavam porque uma pessoa como ele havia escolhido morar por lá, dizia que era para dar mais conforto para a mãe. Ela poderia cultivar um pequeno jardim e, no horizonte, a paisagem apontava na direção do mar – mais especificamente Ostia, ironicamente o local onde Pasolini seria assassinado.
Embora EUR tivesse sido mostrado (porque EUR foi usado no masculino no parágrafo anterior) no cinema por vários cineastas italianos, pelo menos em seus dois primeiros filmes Pasolini só mostrava a periferia – nessa época ele ainda morava por lá. Durante as filmagens de Teorema (1968), chegou a dizer que foi a única vez que conviveu com burgueses – uma gente que afirmava detestar. Federico Fellini mostrou EUR em As Tentações do Doutor Antônio (Le Tentazioni del Dottor Antonio, segmento de Boccaccio ’70, 1962), Michelangelo Antonioni fez o mesmo em O Eclipse (l’Eclisse, 1964). Nos dois casos, como em Teorema, embora o foco variasse entre os três exemplos, tudo apontava para aspectos da burguesia decadente. Em Accattone. Desajuste Social e Mamma Roma, Pasolini mostraria respectivamente a favela e o conjunto habitacional. A seguir, dirigiria A Ricota (La Ricotta, segmento de Rogopag, 1963), também filmado na periferia de Roma e não muito diferente da visão de Cecafumo em Mamma Roma, embora os prédios estejam bem distantes (Ibidem: pp. 136 e 140).
A Ricotta, afirmou John David Rhodes, é uma alegoria do proletariado romano. Stracci, o personagem que morre de verdade na cruz, personifica a morte que ocorre longe dos olhos da burguesia. Em seu próximo filme Pasolini sai de Roma, mas continua mapeando o horizonte da pobreza na Itália. O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo, 1964) foi filmado em locações no sul do país. Para representar Jerusalém, Pasolini escolheu Matera. Localizada na Basilicata, na época era um dos lugares mais miseráveis do país – em algumas partes as pessoas moraram em cavernas até meados do século passado.
Matera foi evocada nas memórias de Carlo Levi (1902-1945), Cristo Parou em Eboli (1945), um dos monumentos da literatura neo-realista. Levi fora exilado em Matera por ordem do governo fascista, o título do livro foi inspirado numa frase muito repetida por lá. A idéia era que Cristo parou em Eboli porque não queria se aventurar num lugar tão miserável como Matera. Entretanto, de acordo com Rhodes, Pasolini queria deixar claro que o Cristo dele, ao contrário do Cristo neo-realista, iria a Matera. Existe ainda outro elemento de ligação entre Matera e Roma, na mesma época estava em curso um projeto habitacional para a região. La Martella, considerada um marco da arquitetura neo-realista, se tornou um projeto público de habitação tão famoso quanto Tiburtino ou Tuscolano II, na capital do país. Agora Pasolini pensa numa escala global, na periferia de Roma ele enxergava a periferia de todas as cidades daquilo que se chamava então Terceiro Mundo.
De acordo com Angelo Restivo, Federico Fellini apresentou um mapa cognitivo de Roma bastante distinto. A cidade como uma capital internacional de produção de imagens e uma “sociedade do espetáculo” – emergente entre as nações capitalistas emergentes. Restivo se refere ao grande sucesso que foi A Doce Vida (La Doce Vita, 1960), de cuja construção do roteiro Pasolini participaria. Em 1960, os desdobramentos do Milagre Econômico no pós-guerra se fizeram sentir em Roma. Localizada no centro geográfico do país, ressoava a problemática relação entre o norte (industrializado) e o sul (subdesenvolvido), assim como a modernidade e a antiguidade. Problemática esta que é central em A Doce Vida e nos filmes italianos de toda a década de 60. Na opinião de Restivo, Roma é, invocando a fórmula de Jacques Lacan, aquilo que “na Itália é mais do que a Itália”. Isso explica porque Roma se manteve como o centro de produção da imagem – a história da cidade substitui a da própria Itália (RESTIVO, Angelo. 2002: pp. 36, 46).
Muitas cenas de Accattone. Desajuste Social foram filmadas no bairro/favela Gordiani, enquanto Mamma Roma foi filmado no bairro/conjunto habitacional Tuscolano II. Gordiani foi descrito por Pasolini como um campo de concentração. O poeta-cineasta afirmou que a melhor maneira de se compreender o fenômeno do crescimento de Roma é através do olhar. Aparentemente, seu trabalho cinematográfico nasce dessa necessidade. Referindo-se ao cinema italiano de sua época, Pasolini admitiu que se mostrasse a favela. Entretanto, não se tratava da favela real. O Teto (Il Tetto, direção Vittorio De Sica, 1956) e Noites de Cabíria (La Notte di Cabiria, 1957), por mais realistas que sejam em alguns momentos, no final se rendem ao sentimentalismo. Rhodes acredita que Pasolini não considerou filmes como O Amor na Cidade (Amore in Città, filme em episódios, 1953). Na crítica de Pasolini às representações açucaradas da favela no cinema italiano da década de 50 reside seu confronto com o legado do Neo-Realismo (RHODES, John David. Op. Cit.: pp. 36-8).
Accattone e a Favela Romana
Pasolini via nos cafetões e prostitutas do subproletariado de Roma a mesma pureza dos camponeses do Friuli. Precisamente porque todos eles eram excluídos ou ignorados pelo “centro” (RYAN-SCHEUTZ, Colleen. 2007: p. 28)
As prostitutas entraram no elenco de personagens de Pasolini na década de 50. Foi nessa época que se tornou amigo de Sergio Citti, um garoto de rua que posteriormente se tornaria cineasta. Citti deu a Pasolini uma perspectiva privilegiada em relação à população local, incluindo os cafetões e as prostitutas, cuja linguagem e interação intrigavam ao cineasta-poeta. Os primeiros resultados foram Ragazzi di Vita e Una Vita Violenta. No final da década de 50, Pasolini seria chamado a colaborar numa série de roteiros que tocavam no assunto (Idem: pp. 76, 78). Foi consultor para as cenas com prostitutas romanas em dois filmes dirigidos por Fellini, Noites de Cabíria e A Doce Vida. Também escreveu o tratamento e o roteiro de A Morte (La Commare Secca, 1962), primeiro filme dirigido por Bernardo Bertolucci – que havia sido assistente de direção no primeiro filme de Pasolini, um ano antes. Esses filmes eram ambientados na periferia de Roma.
Accattone. Desajuste Social retrata um aspecto menos conhecido da realidade italiana do pós-guerra, a vida dos subproletários nas borgate (favelas de barracos ou cortiços nas margens de Roma). Pasolini mostra seus assaltantes, cafetões e prostitutas, vivendo o dia-a-dia sem demonstrar nenhum sinal de consciência social ou progresso em relação ao centro da cidade. Quando Accattone consegue passear com Stella, moça pura e pobre, ela não deixa de notar as prostitutas na rua. Então ele comenta que ela parece muito ingênua e sem malícia. Até que pergunta para ela, “você é de Roma?” Quando Stella começa a fazer parte do mundo de Accattone, ele até pensa que vai mudar. Mas não há novo começo. Assim como os novos conjuntos habitacionais na periferia de Roma não se revelaram um novo começo. É nesta hora do filme que Pasolini nos deixa ver os novos prédios construídos rapidamente na década de 50. O casal está literalmente na margem da cidade quando Stella confessa que não é tão santa, pois sabe “como é a vida” (já que é filha de uma prostituta). Antes da confissão dela, Pasolini faz uma panorâmica do caminho que os dois percorrem ao longo das novas construções (RHODES, John David. Op. Cit.: p. 73).
De acordo com Maurizio Viano, na década de 60 Accattone. Desajuste Social emergiu da tradição neo-realista italiana no cinema – retratando a pobreza, o desemprego e o desespero social nas vidas das massas no pós-guerra. Todavia, difere significantemente em termos de estilo e abordagem ao desafiar as leis da plenitude, naturalismo e continuidade que definiam o Neo-Realismo na década anterior. O filme de Pasolini, ao contrário, favorece a fragmentação e a visível reconstrução da realidade (VIANO,1993 in RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit.: p.242n10)
Já na seqüência de abertura, Restivo chama atenção para um detalhe pouco comentado. Geralmente se lê a respeito da cena em que Accattone se prepara para mergulhar de uma ponte “com anjos” (RESTIVO, Angelo. Op. Cit.: pp. 55-6). Em primeiro lugar, Restivo resgata o ponto de vista de Viano, que privilegia uma análise baseada num padrão espacial alto-baixo. Em segundo lugar, esclarece que certamente se trata da Ponte Sant’Angelo adornada com as esculturas feitas por Gian Lorenzo Bernini (1598-1680). A ponte liga a parte baixa da cidade velha e o castelo Sant’Angelo – do qual podemos ver uma pequena parte, de um ângulo de baixo para cima. Na Idade Média, esse castelo serviu como prisão. Antes disso, durante o Império Romano, o imperador Constantino viu a aparição de um anjo. Isso o levou a decretar o Cristianismo como a religião oficial do Império. Além disso, Restivo se esqueceu de citar, entre a ponte e o castelo temos a Via della Conciliazione, uma avenida aberta por Mussolini em comemoração ao tratado entre o Estado italiano e o Vaticano.
Um lugar tão carregado de sentido logo no início do filme estabelece imediatamente uma imagem dialética tão forte que é capaz de demolir a visão utópica de uma fronteira estável com a imagem da prisão que guarda aquele que ameaçam a ordem. Desfaz-se a polarização espacial, agora a prisão se combina livremente com as imagens da periferia pobre, da favela na periferia romana da década de 60. Restivo reafirma que não se trata de uma oposição, mas de uma “estética da contaminação”. Pasolini não estaria se rendendo ao clichê do bairro pobre da periferia/favela (borgata) como prisão. Queria pensar como e em que sentido a nova geografia urbana (que se estabeleceu primeiro com os planos urbanísticos de Mussolini e depois com o desenvolvimento econômico do pós-guerra) criou uma prisão.
“(…) A interação entre centro e periferia animou o trabalho de Pasolini enquanto cineasta, especialmente em suas primeiras e últimas obras. No princípio dos anos sessenta, quando a máquina do milagre econômico estava correndo a todo vapor, Pasolini podia encontrar na esquálida periferia em torno do centro de Roma a realização espacial das contradições no capitalismo emergente (…)” (Idem: p. 149)
Em Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta, direção Roberto Rossellini, 1945), a primeira cena identifica Roma e a ocupação nazista. No início de Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, direção Vittorio De Sica, 1948), se não sabemos que estamos nas ruas do projeto habitacional fascista Val Melaina, pelo menos reconhecemos a iconografia de um conjunto habitacional de massa. Mas temos dificuldade em nos localizar na primeira cena de Accattone. Desajuste Social. Na opinião de Rhodes, isso acontece porque é a favela! (RHODES, John David. Op. Cit.: pp. 40-1, 44, 168n7) Só sabemos que estamos num lugar da Itália da década de 60 onde a cidade encontra o campo – e o edifício encontra o casebre. Só “encontramos” Roma na seqüência seguinte, quando Accattone pula da ponte, ladeado pelos anjos de Bernini e o castelo Sant’Angelo – um lugar, diga-se de passagem, de onde ele e sua turma são excluídos. Na época, muitos romanos talvez tenham se lembrado de outros excluídos. Para a construção da Via della Conciliazione houve o deslocamento de milhares de trabalhadores residentes no local há séculos (um projeto que só foi concluído no pós-guerra), sendo empurrados para os bairros populares na periferia. É como se a presença de Accattone ali produzisse uma contaminação entre o presente e o passado.
A seqüência em que Accattone tenta arrumar dinheiro com Ascenza (a ex-esposa) foi filmada na borgata Gordiani – embora no roteiro Pasolini se referisse ao lugar apenas como “estrada miserável”. Tempos depois, Accattone e Stella caminham na mesma estrada que ele havia caminhado com Ascenza. Na caminhada com a esposa, víamos a periferia pelos cantos da tela enquanto Accattone mentia para ela. Agora, continuamos olhando para os cantos, enquanto Accattone mente para Stella (esta seqüência se encontra no vídeo abaixo, onde se pode perceber a miséria de Gordiani e os canteiros de obras com os conjuntos habitacionais que serão o tema de Mamma Roma). Logo ela estará “nas ruas” para ele. Nenhum novo começo para Accattone, nem para os conjuntos habitacionais que os circundam. As novas casas dos pobres estão lado a lado com os prédios de luxo, mas a divisão de classes se manteve intacta na Roma do pós-guerra. Na opinião de Rhodes, a caminhada de Accattone com sua esposa resume a situação das pessoas que vivem nas favelas mais afastadas do centro da cidade.
As pessoas são mais definidas pelas distâncias forçadas a percorrer do que por seus empregos – Accattone é um cafetão e não conseguiu trabalhar mais de um dia, sua esposa era lavadora de garrafas. Construída vários quilômetros a sudoeste da estação Termini, Gordiani era totalmente isolada de Roma. Uma das piores borgate rapidissime (Idem: pp. 46, 49, 66-7, 71, 74, 169n15, 16), sua função era alojar a população deslocada da região da Piazza Venezia – pela re-urbanização de Mussolini. Não havia água corrente ou eletricidade. Com trinta anos na época, as construções pareciam ter três vezes essa idade. Na época das filmagens, em 1960, ainda estavam em curso demolições que Pasolini descreveu em seu ensaio, “Os Campos de Concentração” (1958). De acordo com Rhodes, o primeiro filme de Pasolini contém algumas das últimas imagens daquele lugar antes que desaparecesse totalmente – ao que parece, ainda durou até os anos 80. Além disso, naquela época a cidade já havia crescido naquela direção.
A casa de Accattone ficava em Pinetto, uma área a leste do centro de Roma, fora da Via Casilina (numa transversal à Via Ettore Giovenale?). Na cena final, depois de roubar uma motocicleta e sofrer um acidente, ele morre. A batida aconteceu na ponte Testaccio, com o bairro operário homônimo ao fundo. Testaccio foi a primeira favela de Roma – sua primeira periferia. Mesmo aqui não há lugar para Accattone. O roubo foi em Testaccio, mas sua morte acontece fora de lá. Antes de morrer, Accattone diz: “Estou bem agora” (“Mo, sto bene”). O filme parece sugerir que apenas a morte traz alívio para as classes inferiores. Se assim é, aqui Pasolini rompe com o otimismo, sentimentalismo e naturalismo do Neo-Realismo. Todavia, Rhodes afirma que Pasolini desejava apenas subverter a ideologia do Neo-Realismo, mas não sua política.
Mamma Roma e a Política Habitacional
A única cena no centro de Roma mostra Mamma Roma espiando o filho no emprego de garçom. A ironia está em ver uma personagem que tem o nome da cidade ser reduzida a uma espectadora/consumidora. Para morar, só mesmo num conjunto habitacional fora da cidade (Ibidem: p. 123)
Embora Accattone. Desajuste Social apresente várias mulheres e até duas mães, não dá muita atenção aos cuidados maternais e não trata de famílias ou gerações. Se o primeiro filme dirigido por Pasolini acompanha a vida dos vadios e prostitutas oprimidas, de maneira a oferecer um vislumbre da sobrevivência diária na Roma do pós-guerra, em seu segundo projeto a maternidade e as diferenças entre as gerações entram em cena – embora a vida dura da Roma do pós-guerra para os desprivilegiados continue a mesma. Mamma Roma, espirituosa prostituta de meia idade sempre com uma risada na ponta da língua, juntou dinheiro e conseguiu se livrar de seu cafetão. Mudou-se para a periferia de Roma e comprou uma barraca na feira. Trouxe consigo o filho Ettore, que ela havia deixado com parentes pobres em Guidonia, fora da capital. As aspirações da mãe por uma mudança de classe social logo entram em choque com o temperamento de Ettore. Ele não consegue se adaptar numa cidade que é muito distante de suas raízes culturais. Acaba assaltante e morre nas mãos da polícia (RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit.: pp. 46 e 244n37, 38).
Bruna é mãe solteira e rivaliza com Mamma Roma em relação à Ettore. Ela se encaixa no ideal pasoliniano da mãe jovem (madre fanciulla), representando um espaço fora de Roma não muito diferente da terra onde ele foi criado. Não por acaso, Ettore a conhece nos terrenos baldios que circundam o primeiro conjunto habitacional onde foi morar com a mãe. Bruna aprofunda a dicotomia entre a vida de Ettore antes e depois da chegada na vizinhança de Casal Bertone – e posteriormente em Cecafumo, ainda na periferia. O conjunto habitacional Casal Bertone é descrito como se fosse o inferno: “Casal Bertone se ergue amarelo cinzento contra o céu como a cidade de Dis” (uma referência ao Inferno, de Dante). Uma zona habitacional da classe baixa, Cecafumo é agora considerada parte da área metropolitana de Roma. Em Mamma Roma, Cecafumo representou um passo adiante em relação a Casal Bertone. Miséria e um horizonte cinza caracterizavam a zona, tornando-a de muitas maneiras uma extensão da periferia. Além de Mamma Roma, Casal Bertone também serviu de locação para Os Eternos Desconhecidos (I Soliti Ignoti, direção Mario Monicelli, 1958). Além de Bruna e Mamma Roma existe uma terceira prostituta, Biancofiore.
“As três prostitutas em Mamma Roma representam diferentes níveis de consciência cívica; elas expressam diferentes níveis de interesse ou determinação com respeito à Roma simbólica ou aos ideais burgueses que gradualmente penetram os espaços de vida (projetos habitacionais modernos) e mentes (desejo por bens materiais e melhoria do status social) da maioria das comunidades de classe baixa por volta de 1960. Em outras palavras, essas mulheres personificam o sub-proletariado em vários estágios de assimilação cultural em relação ao padrão dominante [mainstream]. Mamma Roma claramente abraçou a moral ética e material da cultura dominante; Bruna permanece num estado ambíguo de adolescência, mantendo-se enraizada num passado instintivo e sem consciência; e Biancofiore combina os dois, dando e tirando de cada domínio o que precisa, de maneira a viver confortavelmente. De muitas formas, a abordagem de Biancofiore é a mais prática, uma vez que ela não é nem inteiramente limitada por um passado opressivo ou totalmente direcionada para um futuro intangível. Vive aqui e agora, aparte alguns comentários cínicos, ela parece estar relativamente satisfeita” (Ibidem: pp. 91-2)
Com Mamma Roma, Pasolini lança sua crítica aos desdobramentos do Milagre Econômico, cujos efeitos, materializados nos projetos habitacionais públicos, estavam alcançando as camadas mais baixas da sociedade e engendrando uma mutação pequeno-burguesa. Para Pasolini, isso poderia levar essas pessoas a talvez se tornarem fascistas e conformistas. Inicialmente, Mamma Roma traz Ettore para morar com ela, num bairro de trabalhadores. Ela pede desculpas ao filho pelo tipo de gente que se encontra ali e pelo estado degradado do prédio, insistindo que em breve se mudarão para uma vizinhança “com gente de outra classe” – Mamma Roma está se referindo a Tuscolano II. Neste filme Pasolini repete a cena da caminhada (de Accattone com Ascenza e depois com Stella), só que agora ele enquadra uma Mamma Roma cambaleante e de frente – e ao contrário do primeiro filme, aqui não sabemos muito bem onde ela está. Durante a caminhada, o assunto de Mamma Roma são os conjuntos habitacionais fascistas:
“Na frente da minha casa havia um velho muito rico. Não sabia o que fazer com o dinheiro. Ele se vestia como Robespierre – bigode, bengala – parecia o rei de Santa Calla… Você sabe como ele conseguiu o dinheiro? Na época do Fascismo. Mussolini disse-lhe assim: ‘Quero que me faça um bairro para o povo’ – que então seria Pietrarancio. Esse senhor fez a primeira casa, com lindas paredes e tantas privadas… onde se podia até comer de tão bem feitas. Mussolini veio e disse, ‘Excelente, era exatamente o que eu queria’. Esse filho da puta. Quando o Duce foi embora, só fez privadas, não fez mais casas. Agora chamam aquele bairro de Privadônia. Ha! Ha! É toda uma longa extensão de cagatórios”
Na cena seguinte o que vemos é o bairro de Cecafumo, com uma parede de prédios e a rotunda da igreja San Giovanni Bosco se erguendo no meio deles. Este bairro fica ao sul da Via Tuscolano, ocupando os dois lados da estrada. Cecafumo não está muito longe dos estúdios da Cinecittà. Depois de uma passagem pela igreja, onde Mamma Roma mostra ao filho o tipo de gente com quem ela espera que ele se case, acompanhamos os dois caminhando em direção ao prédio Muratori em Tuscolano II. Na entrada do prédio, a posição da pilastra evoca um crucifixo. Rhodes aponta uma retórica pasoliniana do sublime operando em Mamma Roma. O elemento sublime está na sensação da periferia como algo além da compreensão, um excesso que não pode ser compreendido, digerido, ou mesmo representado. Como na imagem panorâmica de Cecafumo que se repete oito vezes durante o filme. Para Rhodes, talvez essa imagem não deva ser considerada apenas nos termos do sublime kantiano, mas também no de Lyotard: uma “dor” ou “falha de expressão”. O poder daquela imagem reside em sua estranheza (RHODES, John David. Op. Cit.: pp. 115, 120, 126, 135).
Outro exemplo do sublime seriam as ruínas de um aqueduto no terreno baldio ao lado de Tuscolano II. Ruínas de um sublime Romântico, como nas referências de Shelley e Byron a Roma. O sublime de Pasolini, por outro lado, é o da periferia: marrom, caiada de branco, imensa, sem forma. É o sublime do excessivo, incompreensível, porém impossível de ignorar. Em sua crítica ao Neo-Realismo, Pasolini pretendia impedir que os espectadores desenvolvessem uma aceitação confortável da realidade urbana moderna. Ele percebeu que essa realidade é muito variada e complexa demais para ser representada corretamente. Foi então que adotou uma retórica estética do sublime, queria forçar nos espectadores uma consciência da experiência que ele próprio vivera na periferia. Mas ele não nos dá os contos de fada dos sem teto de Milagre em Milão (Miracolo a Milano, direção Vittorio De Sica, 1951), Pasolini insiste que testemunhemos seu esforço em fazer o que acredita ser impossível: dar voz e visão à experiência da vida na periferia de Roma.
Alegorias da Vida
“Para o observador europeu, o processo de criação artística no mundo subdesenvolvido é de interesse apenas na medida em que satisfaz uma nostalgia pelo primitivismo”
Glauber Rocha, Aesthetic of Hunger (RESTIVO, Angelo. Op. Cit.: p. 147))
Assim como Pasolini fizera uso da analogia para articular Matera e Jerusalém, agora utiliza alegorias para se referir há muitos lugares, ainda que se concentrasse em apenas um – a periferia de Roma. Em Gaviões e Passarinhos (Uccellatti e Uccellini, 1966), Pasolini parece citar a seqüência final de O Eclipse – que, aliás, mostra a paisagem arquitetônica burguesa de EUR. Quando Ninetto e Totó entram num bairro pobre e procuram entender o que aconteceu com um morador, Pasolini realiza uma série de tomadas dos prédios na vizinhança – assim como a famosa seqüência final do filme dirigido por Antonioni. Na opinião de Rhodes, a conexão entre os dois filmes neste ponto é óbvia. Mas por que Pasolini desejaria parodiar Antonioni? De acordo com Rhodes, o método de Antonioni consistia em focalizar estruturas arquitetônicas tipicamente sem atrativos, de tal forma a revelar sua dimensão abstrata ignorada ou escondida. Como se fosse uma meditação a respeito do potencial de um fragmento para renovar ou reorientar nossa percepção. Pasolini desejava, afirma Rhodes, demonstrar que o método de Antonioni não dá conta de áreas degradadas como a periferia de Roma daquela época. A metáfora alegórica seria a única meio de dar conta daquelas favelas e periferias (RHODES, John David. Op. Cit.: p. 144-6).
A seguir, Ninetto e Totó caminham por uma estrada deserta, com a periferia romana na linha do horizonte atrás deles. De repente uma placa, “Istambul 4253 km”, talvez parte do catálogo de periferias do mundo… Em seguida, estão subindo a rampa de um elevado (Tangenziale Est) que leva a uma estrada que conecta o centro de Roma à Autostrada del Sole, que liga a capital ao norte e ao sul do país – os 755 quilômetros iniciais haviam acabado de ser completados em 1964. Para Pasolini, essa estrada era uma espécie de não-lugar. Viajando pela auto-estrada, os dois personagens deixam Roma para traz da mesma forma que a cidade (enquanto encarnação de uma série de histórias e práticas urbanas específicas) não interessa mais a Pasolini. Isso aconteceu devido ao fato de que a especificidade daquela cidade sucumbiu às forças homogeneizantes do capitalismo.
Na opinião Pasolini, aquela auto-estrada era uma expressão concreta das forças de homogeneização – o lado negro do Milagre Econômico. A “cultura do automóvel” remodelou as cidades italianas e suas periferias. Um idioma italiano padronizado sufocou a riqueza e a diversidade dos dialetos, especialmente através dos jornais e da televisão. Restivo mostrou como a construção dessa via expressa “re-mapeou” a Itália – a publicidade focada no turismo foi mais determinante do que propriamente o asfalto. Analisando a propaganda de uma empresa de petróleo/postos de gasolina (Gulf), Restivo viu na imagem de um automóvel em movimento a idéia de “velocidade” num registro futurista. Futurismo que se infiltra no espaço medieval e renascentista das cidades italianas. Curiosamente (ou não) o Futurismo foi uma corrente artística muito identificada com a construção da nação durante o período fascista (RESTIVO, Angelo. Op. Cit.: pp. 72, 76).
A passagem para uma alegoria fica patente nos filmes entre 1967 e 1969. A Terra Vista da Lua (La Terra Vista dalla Luna, episódio de As Bruxas, Le Streghe, 1967) foi filmado numa favela em Fiumicino e também próximo a Ostia, além do centro de Roma (no Coliseu). Juntamente com O Que São as Nuvens? (Che Cose Sono le Nuvole, episódio de Capriccio all’Italiana, 1968), trata-se de dois médias-metragens alegóricos. No primeiro, pai, filho e madrasta desejam ascender socialmente – nisso o filme lembra Mamma Roma. É uma peça cômica, embora Pasolini faça com que a aspiração de mobilidade social se identifique a um instinto de morte. A moral do filme é anunciada num intertítulo que fala dos pobres: “estar morto ou vivo é a mesma coisa”.
“Em 1967 Pasolini realizou sua versão de Édipo Rei, iniciando um ciclo de filmes interessados em reeditar a tragédia clássica (os outros filmes nesse sentido são Medéia [Medea, 1969] e Notas Para Uma Oréstia Africana [Appunti per Una Orestiade Africana, 1970]). Estas adaptações de textos clássicos, míticos, eram também concebidas e comentadas por Pasolini enquanto tratamentos alegóricos do presente. Notas Para Um Filme Sobre a Índia [Appunti per Un Film sull’India. 1967-8], baseou-se numa fábula indiana. Teorema, a respeito de uma família burguesa de Milão desfeita em função da visita sexualmente carregada de um estranho, é descontroladamente alegórico. Assim como é Pocilga [Porcile, 1969]. Claramente, a mudança para a alegoria é dramática, elaborada e completa. E em cada caso o recurso ao mito e alegoria deriva de um infatigável desejo de criticar as forças da modernidade e do progresso capitalista” (RHODES, John David. Op. Cit.: pp. 148-9)
Em Seqüência da Flor de Papel (La Sequenza del Fiore di Carta, episódio de Amor e Raiva, Amore e Rabbia, 1969), Ninetto Davoli caminha pelo centro de Roma. Mais especificamente, partindo da Piazza della Republica ele segue pela Via Nazionale. Uma escolha apropriada da parte de Pasolini, já que esta avenida é considerada uma via pública da Roma moderna. Datando do final do século XIX, ela teria inaugurado o mau uso do espaço urbano daquela cidade, cujos efeitos eventuais foram favelas e projetos habitacionais na periferia. “Assim, de certa forma, é a rua que leva à corrupção do presente” (Idem: pp. 150, 152). Nos filmes da Trilogia da Vida, Pasolini procurava ambientar sua ode à autenticidade dos corpos inocentes (e seus órgãos sexuais) no Terceiro Mundo – apesar de algumas locações na Europa.
No documentário Os Muros de Sana (Le Mura di Sana’a, 1964), montado a partir de material extra de As Mil e Uma Noites (Il Fiore delle Mille e Una Notte, 1974), Pasolini faz um apelo à UNESCO pela preservação das muralhas dessa cidade. Embora Rhodes chame atenção para um olhar ingênuo de Pasolini no que diz respeito a decidir o que é melhor para países do Terceiro Mundo como o Iêmen, acredita que o importante no documentário é a consistência da visão (articulada a uma paisagem urbana) de Pasolini. Ela nos permite perceber a alegórica, porém muito real violação mútua entre o Primeiro e o Terceiro mundos. Falando de Sana, na verdade Pasolini se refere à Itália. De acordo com Rhodes, o fato de Pasolini utilizar alegorias, na medida em que suas análises se tornaram mais urgentes e sombrias, está dentro da natureza do próprio discurso alegórico.
“(…) O modo alegórico de Pasolini foi – e talvez ainda possa ser experimentado como – uma forma de costurar o Iêmen à Itália e ao Ocidente, de forçar sua interpenetração da mesma forma que seus primeiros filmes foram métodos de reincorporar as vidas periféricas de romanos na consciência da Itália moderna. Nossa habilidade de compreender como os filmes posteriores de Pasolini funcionam como alegoria depende de alcançarmos a especificidade, a história, a materialidade dos lugares que ele documenta e nos oferece através de um modo de visão inquietante. E para entender tudo isso, temos que compreender primeiro o lugar do qual esse modo de visão se origina. Isto é: emerge de Roma, de um encontro com uma cidade – um encontro do qual Pasolini nunca se recuperaria” (Ibidem: p. 154)
* Roberto Acioli de Oliveira é graduado em Ciências Sociais – 1989, Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestrado e Doutorado em Comunicação e Cultura – 1994 e 2002, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Além da revista RUA, também é colaborador da revista dEsEnrEdoS e mantém três blogs sobre cinema e corpo: Corpo e Sociedade, Cinema Europeu e Cinema Italiano.
Referências Virtuais
http://www.bandb-rome.it/roma_pigneto_cinema.html [cenário da borgata de Accattone. Desajuste Social, ontem e hoje]
Referências Bibliográficas
RHODES, John David. Stupendous, Miserable City. Pasolini’s City of Rome. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2007.
RESTIVO, Angelo. The Cinema of Economic Miracles. Visuality and Modernization in the Italian Art Film. Durham & London: Duke University Press, 2002.
ROCHA, Glauber. Asthetic of Hunger, 1982 in RHODES, John David.
RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Canada: University of Toronto Press, 2007.
VIANO, Maurizio. A Certain Realism (1993) in RYAN-SCHEUTZ, Colleen.