A Trilha Tortuosa De Gustavo Santaolalla¹

Por Alfredo Werney*

Trilhando caminhos diferentes dos compositores das tradicionais trilhas orquestrais de Hollywood, Gustavo Alfredo Santaolalla tem nos brindado com um instigante trabalho de composição para cinema. Sua música parte de uma concepção mais econômica dos recursos estilísticos e tende, dessa forma, ao minimalismo. Algumas vezes, atinge uma atmosfera de pura abstração, uma vez que o músico latino utiliza melodias não-eufônicas e texturas sonoras de arpejos, sem a resolução harmônica que observamos habitualmente na música tonal. Nada dos dramatismos e “dilúvios musicais” (para utilizar um termo de Henri Agel) presentes nas famosas orquestras sinfônicas das trilhas musicais do cinema clássico. Um simples arpejo de oud (instrumento de cordas parecido com o alaúde), um acorde de violão, um leve “rasgueado” do charango já são suficientes para que se crie toda uma paisagem sonora.
Quando assisti ao filme Babel (2006 – direção do mexicano Alejandro Gonzáles Iñárritu), logo nas primeiras tomadas, percebi que estava diante de uma obra diferente do ponto de vista musical. Esperava, sinceramente, ouvir – em meio a tantas dores e sofrimentos daquela galeria de infortunados do mundo babélico – os famosos violinos ou as flautas de caráter mais operístico. Com efeito, não foi esse o caminho escolhido por Gustavo. O som era de um “grave” e profundo oud, um instrumento musical de sonoridade não muito comum aos ouvidos ocidentais. Poucas notas, muito silêncio. A música de Santaolalla parecia, de fato, com aquele deserto árido de Marrocos.
Há, certamente, na música composta para Babel, mais do que em outros trabalhos do compositor latino, uma tendência ao “minimalismo”, uma busca de um procedimento de redução das informações musicais. Sua composição é anti-retórica, recusa complexas texturas polifônicas e ornamentos desnecessários. Isto contribui, de maneira decisiva, para que a obra do diretor mexicano não seja pautada por um realismo “cru” e sem poeticidade. Assim como se observa na obra nino-rotiana para os filmes de Fellini, na música de Santaolalla é gerado um não-realismo sonoro, um contraponto em relação à banda visual.
Ao ver a obra O Segredo de Brokeback Mountain (2005), dirigida pelo cineasta taiwanês Ang Lee, fiquei também muito impressionado com a concepção sonora. Os sons musicais que compunham a trilha eram os acordes soltos de violão, uma simples gaita e, algumas poucas vezes, cordas friccionadas. Uma paisagem sonora que lembrava os westerns americanos, mas de uma maneira bem particular. Isto é, sem os exageros sonoros peculiares ao gênero (lembremos das vibrantes caixas e dos frenéticos tímpanos nos momentos de batalha dos westerns) e sem o mesmo tom épico. A música de Santaolalla se harmonizou perfeitamente com o mundo equilibrado de Brokeback Mountain. O cenário não foi mais um mundo babélico, portanto a música não quis, em momento algum, desintegrar o mundo equilibrado apresentado por Ang Lee. Não houve contrastes fortes. A instrumentação escolhida denotou suavidade: violões de aços, steelguitar, cordas friccionadas, gaita e voz. Os temas compostos foram curtos e a harmonia musical, de grande simplicidade (cadências perfeitas, acordes consonantes). O compositor se distanciou, efetivamente, do espírito de grandeza e totalidade artística (herança da Bildung germânica). A música – que deu ao compositor argentino o seu primeiro Oscar – mais parecia um terceiro personagem da relação homossexual entre os dois cowboys criadores de animais.
Em uma das últimas películas de Walter Salles (“Linha de passe”, 2009 – com co-direção de Daniele Thomas), a música de Santaolalla atuou como uma espécie de contraponto: nos momentos de maior intensidade e de movimentação dos planos visuais, sua composição permaneceu com um tom grave e psicodélico, praticamente sem nenhuma atividade rítmica. O músico pareceu nos querer dizer sonoramente que, por trás de toda a euforia (dos evangélicos, das partidas de futebol, da trajetória do ônibus coletivo nas ruas de São Paulo, das peripécias da motocicleta), havia uma certa melancolia, um silêncio no interior de cada um dos membros daquela família da periferia de São Paulo.
A música de Gustavo, especificamente nessa obra de Salles e Thomas, almejou equilibrar as tensões da vida enfrentada por Cleuza (premiada no Festival de Cannes como melhor atriz) e seus filhos, que habitavam um espaço de difícil sobrevivência e de pouca afetividade. Santaolalla procurou suavizar, com sua sonoridade inclinada ao abstrato, a dureza da existência na frenética cidade de São Paulo. Uma espécie de embate entre duas sensações distintas: a euforia (no plano visual) e a leveza (no plano musical).
A trilha musical dessa película talvez seja uma das composições do artista latino mais ligadas ao plano psicológico, emocional. A música, em muitas cenas, parece expressar não o que está contido na montagem, na fotografia, nos diálogos, no cenário, mas sim o que está na psique das personagens. Poucas são as marcações de música e, além do mais, algumas delas se repetem constantemente, como uma espécie de leitmovit. São composições circulares como as voltas do ônibus, como os dribles de Dario, como a própria existência cotidiana de cada uma das pessoas que compõem a família paulista apresentada por Sales e Thomas.
A audição constante e cuidadosa levou-me a perceber que há na construção das composições de Gustavo Santaolalla uma concepção de música de cinema, se não inovadora, pouco usual. Se ele não cria um conceito próprio de composição para cinema, ao menos alarga a dimensão e o potencial poético desta. Devemos lembrar, contudo, que no universo de produções que existem no atual mercado cinematográfico, fica muito complicado exigir de um trilhista que a cada obra sua ele nos apresente uma concepção totalmente inovadora de composição para cinema. Aliás, o conceito de “originalidade” é muito frágil (ainda mais quando se trata de música composta para cena). É resquício de um Romantismo exacerbado, no qual se tratava o artista como um gênio absoluto e uno. Um criador que a cada obra revelava uma nova idéia ao mundo.
As trilhas do argentino, em geral, não são fáceis de assimilar e nem são, de maneira alguma, cantábiles. Ninguém sai do cinema cantarolando Santaolalla. Ele não busca reforçar conteúdos que já estão claros no discurso das imagens. Em nenhum momento suas composições procuram fazer o público chorar e se comover facilmente com a situação das personagens. Suas trilhas são apolíneas e excluem tudo que não é essencial para a sua expressão poética: não há ornamentos gratuitos, nem ritmos vigorosos, nem melodias belas com grandes saltos intervalares, nem a utilização de muitos timbres (o famoso “colorido orquestral”). Trata-se de intervenções musicais que funcionam, efetivamente, como um contraponto: uma voz que acompanha outras vozes em diferentes ritmos.
Ao assistirmos um filme, não é difícil perceber que se trata da música elaborada pelo guitarrista latino: texturas musicais de cordas, pouca densidade sonora, silêncios repletos de significado, ambientações sonoras tendendo ao abstrato, melodias não-eufônicas, poucos recursos musicais e poucas entradas de música. Toda essa paisagem sonora revela um compositor de grande sensibilidade poética e de um agudo ouvido musical. Quando falamos “agudo ouvido musical”, estamos não só reconhecendo uma qualidade do compositor, mas também nos referindo ao fato de Santaolalla não possuir uma formação musical acadêmica e não saber ler música – segundo o que informara o próprio compositor em uma entrevista no Festival Internacional de Música do Cinema (Música em Cena, 2007- RJ).
As trilhas de Gustavo Alfredo – por todos esses aspectos estilísticos elencados – levam-me a afirmar, enfim, que ainda é possível ver um filme sem aquela sensação enfadonha de que a música só está dizendo o que já estamos vendo nas imagens. Um constante pleonasmo – como costumamos observar na maioria das trilhas musicais dos filmes produzidos para o grande público. A composição santaolallina, em vez de repetir, acrescenta informações à camada visual do filme. Ao invés de enfatizar o conteúdo e o movimento da imagem, ela cria, com essa associação, uma nova sinestesia. O caminho musical que o artista nos conduz é deveras tortuoso e pouco visitado.

*Alfredo Werney é músico e arte-educador. Autor do livro “Reencantamento do mundo: notas sobre cinema” (em parceria com Wanderson Lima). Possui o blog: http://alfredowerney.blogspot.com/

¹ No ensaio Na trilha de Gustavo Santaolalla (presente em http://www.desenredos.com.br/) desenvolvo de maneira mais extensa as idéias aqui apresentadas.

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