ARTIGO | É Possível Definir o Cinema Novo?

Kaio Belicio Montarroyos
Graduando em Direito pela UNIRIO e graduado em História pela UFRJ.

Sabemos que o conceito de Cinema Novo foi utilizado com diversos fins por atores sociais distintos. Isso fica claro no artigo de Reinaldo Cardenuto, professor adjunto do Departamento de Cinema e Vídeo da UFF, intitulado “Cinema Novo em disputa: páginas da imprensa carioca em 1962” (2022), no qual o autor demonstra a maleabilidade conferida ao conceito pelos jornalistas do período.

No entanto, apesar de alertar que também trabalha com uma definição exordial (primária) que os cinemanovistas conferiram ao termo, em oposição à dos jornalistas, gostaríamos de lembrar que tais realizadores também utilizavam esse conceito de forma fluida, com objetivos políticos, englobando ou expelindo autores distintos de acordo com a conveniência. Considerando a frequência com que tal questão é ignorada, pretendemos interpelá-la neste sucinto texto.

Nessa linha da volatilidade, o cineasta Domingos de Oliveira chegou a ser considerado cinemanovista, tanto que, no curta-metragem Cinema Novo (1967), de Joaquim Pedro de Andrade, é associado ao grupo, representado, na película, em seus empreendimentos para a dublagem do filme Todas as Mulheres do Mundo (1966). Logo depois, afastou-se. Roberto Santos idem. Júlio Bressane, conhecido expoente do Cinema Marginal, começou como assistente de direção de Walter Lima Jr., destacado membro do Cinema Novo. Além disso, Bressane tinha raízes cinemanovistas (Marcelino, 2016, p. 61), muito embora tenha rompido com o grupo, posteriormente.

A metamorfose característica da formação do grupo do Cinema Novo é tão latente que, além dos exemplos pretéritos, gostaríamos de citar que, em 1960, em um artigo no Jornal do Brasil, denominado ‘Bossa Nova’ no Cinema Brasileiro, Glauber menciona Walter Hugo Khouri e Roberto Santos como signatários de uma renovação que ainda não é nomeada por ele como Cinema Novo, mas a qual ele categoriza como “cinema novo do Brasil”, o que, alinhado a outras evidências, como a posterior e breve presença de Domingos de Oliveira no movimento, demonstra que Glauber era, também, adepto, ainda que em menor medida, de uma concepção de Cinema Novo que, com o tempo, mostrou-se igualmente elástica, embora pudesse não ser no recorte temporal perscrutado pelo artigo comentado no primeiro parágrafo.

Ademais, Cardenuto sinaliza que, para os cinemanovistas, existia uma caracterização rígida e inequívoca do que era o movimento, como de fato talvez existisse, naquela época, como comentamos acima. Cabe, aqui, uma observação: claro que não podemos esperar dos agentes históricos coisas sobre as quais apenas sabemos por sermos testemunhas privilegiadas dos fatos, espectadores dos seus desdobramentos ulteriores. De tal modo, não haveria como os cinemanovistas saberem sobre as deformidades sofridas pelo conteúdo do conceito de Cinema Novo em tempos posteriores ao debate analisado por Cadernuto. No entanto, tais apontamentos não deixam de parecer-nos interessantes. De fato são proveitosos.

Por exemplo, diversos cineastas paulistas, como Person e João Batista de Andrade, acompanhavam as propostas cinemanovistas e se identificavam com elas, embora Glauber não os considerasse parte do movimento (Ridenti, 1997, p. 95). Inclusive, muitos diziam que só seria Cinema Novo o que Glauber considerasse como tal (Renato Tapajós. Entrevista ao autor, Caxambu, 1997. In: Ridenti, 2005, p. 95).
Ou seja, nesse momento, é posta em dúvida a existência, ao menos atualmente, de uma delimitação inequívoca do significado de Cinema Novo, embora não neguemos que – reiterando uma última vez, para não sermos repetitivos, mas reconhecendo que, nesses casos, é melhor ser excessivo -, no período analisado pelo docente da UFF, isso pudesse ser possível – o que pensamos que não era -, dada a possibilidade de coincidência, ao menos em grande parte, entre a definição posta e o fenômeno real.

Não nos esqueçamos, por exemplo, que as características das obras dos autores de um movimento delineiam as características desse movimento. Realizadores tão díspares, nesse sentido, podem tornar incongruente ou ao menos mais difícil, hodiernamente, uma caracterização unívoca. É relevante retomar, também, que o que era ou não considerado Cinema Novo assim o era por determinações de demandas políticas acentuadas.

Ademais, devemos constatar aos leitores que o núcleo duro do Cinema Novo era extremamente politizado e isso reverberou em suas posições públicas. Nesse sentido, o conceito de Cinema Novo defendido por membros do grupo, como Glauber Rocha, era muito maleável, o que Cardenuto não nos diz, o que não significa, obviamente, que não o saiba.

Ao afirmar que Glauber utilizava a designação para caracterizar uma produção artística determinada (Cardenuto, 2022, p. 187), tal formulação, apesar de presumivelmente não ser a intenção do redator do texto, inclusive considerando sua proposta inicial, pode fazer o leitor mais apressado ou menos habituado ao debate pensar que esse conceito foi utilizado, ao transcorrer do tempo, de forma precisa pelo grupo. No entanto, como demonstrado, isso não é verdade, já que muitas obras, embora com características claramente cinemanovistas, eram afugentadas pelo realizador baiano e seus epígonos. Da mesma forma, outras eram incluídas no movimento ao seu bel prazer. Essa era uma tentativa de distinguir-se dos demais. No entanto, Glauber não era tão distinto assim, como demonstraremos adiante.

A geração formada nos anos 1950, com Glauber Rocha incluído, em boa parte, pertencia à estrutura de sentimento romântico-revolucionária (Ridenti, 2005, p. 83). Estrutura de sentimento, um termo criado por Raymond Williams (1999), significa uma consciência social informal, vivida de modo íntimo por um grupo que, conscientemente rebelde, em certo sentido, se compreende como portador de uma consciência sobre a realidade superior às dos outros – aqui cedemos crédito à interpretação de Ridenti (2005) sobre o artigo, que nos auxiliou em nossa formulação.

No Brasil, como dito, essa consciência era a romântico-revolucionária, da qual eram típicos artistas tão díspares quanto Anselmo Duarte e Glauber Rocha (Ridenti, 2005, p. 95). Por isso afirmamos que, apesar das tentativas e das diferenças que de fato eram notáveis, Glauber e os cinemanovistas tinham muito em comum com artistas dos quais eram detratores. Cardenuto (2022), contudo, mostra-nos a versão glauberiana de Cinema Novo, o que pode fazer, sem que seja culpa do autor, com que se passe despercebido que tal movimento não era tão rigidamente definido e distinto assim, sobretudo em 1962, quando os filmes do grupo ainda estavam dando os primeiros passos.

Então, indagamos, a partir da leitura do artigo: como dizer que os jornalistas utilizavam uma versão tão genérica de Cinema Novo, em contraposição à suposta caracterização assertiva de Glauber, se os cinemanovistas ainda estavam começando a lançar seus filmes? Poderia haver uma definição de Cinema Novo nesse momento tão primário? Em uma hipótese primária, pensamos que não, ao menos não rigidamente.

Um fator que comprova as pretensões incontornavelmente políticas do grupo e que torna sua auto-delimitação incerta é que, embora reivindicadores da inovação inovadora – com o perdão do pleonasmo para enfatizar a postura hiperbólica dos jovens cineastas -, as chanchadas, tão contestadas por eles, em menor medida, exibiam, nas telas, a brasilidade da qual eles alegavam ser os porta-vozes (Morais, 2018), quase como se fossem os pioneiros nessa iniciativa.

Eram, de fato, diferentes, vanguardistas, mas essa singularidade tinha limites, os quais não reconheciam. Por exemplo, Napolitano aponta “Agulha no Palheiro” (1951), de Alex Viany, e “Rio, 40 Graus” (1954), de Nelson Pereira dos Santos, como as primeiras tentativas de concretizar um cinema de esquerda engajado no Brasil, que tiveram como base as obras da Atlântida, repensadas a partir do neorrealismo italiano, fazendo com que, apesar de esses filmes de esquerda criticarem as chanchadas, eles se enquadrem “na tradição do cinema popular carioca” (Napolitano, 2001, p. 112).

Ademais, Napolitano aponta como há uma distância entre os filmes de Nelson Pereira e as obras cinemanovistas que surgiram a partir de 1962, distância tanto estética quanto com relação ao público (Napolitano, 2001, p. 112). Apesar disso, Glauber e Cardenuto destacam Nelson Pereira como cinemanovista, enquanto autores talvez mais assemelhados ao movimento, ao menos naquele momento, como Sérgio Person, eram excluídos.

Diante disso, concluímos que o próprio Glauber mobilizava, ao menos em uma análise panorâmica do movimento – embora também achemos que nunca houve, por parte de seus representantes, mesmo que de modo localizado, uma delimitação unívoca -, uma narrativa ambígua e em certa medida elástica sobre o Cinema Novo. De tal modo, consideramos possível definir o Cinema Novo, sobretudo a partir das suas continuidades, desde que reconhecidas essas alterações e reformulações relevantes pelas quais o movimento passou, muitas das quais frutos de demandas políticas. No entanto, destacamos o primarismo de tais apontamentos por nós empreendidos aqui, carentes de maiores aprofundamentos.

REFERÊNCIAS:

CARDENUTO, Reinaldo. Cinema Novo em disputa: páginas da imprensa carioca em 1962. ArtCultura, v. 24, n. 44, 2022.

MARCELINO, Ana Beatriz Buoso. O olho e a navalha: integração e subversão no cinema marginal de Júlio Bressane. São Paulo. UNESP. Dissertação de Mestrado, 2016.

MORAIS, Julierme. Cinema Novo e filmes cómicos e populares (“chanchadas”):
problematizando a historiografia do cinema brasileiro. Instituto de Sociologia. IS
Working Paper, 3ª séries, n⁰ 68. Porto, 2018.

NAPOLITANO, Marcos. A arte engajada e seus públicos (1955/1968). Revista estudos históricos, v. 2, n. 28, p. 103-124, 2001.

RIDENTI, Marcelo. Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960. Tempo social, v. 17, p. 81-110, 2005.

ROCHA, Glauber. “Bossa Nova” no cinema brasileiro. Jornal do Brasil, Suplemento Literário, Rio de Janeiro, 12 de março de 1960.

WILLIAMS, Raymond. A Fração Bloomsbury. MARTINS, Rubens de Oliveira; BARROS, Marta Cavalcante de (tradutores). Plural, São Paulo, Brasil, v. 6, p. 137–168, 1999. DOI: 10.11606/issn.2176-8099.pcso.1999.77127. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/77127.. Acesso em: 5 jun. 2024.

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