10.5281/zenodo.13854352 | versão ISSN: 1983-3725
Por: Nycolle Barbosa Souza²
Universidade Federal de São Carlos
¹ Artigo escrito para a disciplina de Meios de Comunicação do bacharelado de Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos, ministrada pelo Profº. Drº. Dario Mesquita, em São Carlos, SP
² Graduanda em Imagem e Som. E-mail: nycolle.barbosa@estudante.ufscar.br
RESUMO
O modo de consumo televisivo mudou. Desde a época de sua criação até pouco mais da segunda metade do século XX não se buscava tão robustamente remodelar seu eixo narrativo e sua interação com o público, principalmente no que concerne aos desenhos animados. O presente trabalho tem como objetivo discorrer sobre a complexidade narrativa vigente nas animações destinadas a televisão, usando como supervisão o desenho do Disney Channel, Gravity Falls, o mesmo pertence historicamente a um período de interação transmídia entre a televisão e outras mídias, bem como por ter sido um dos primeiros a conseguirem tal efeito com o público fortemente devido a sua narrativa complexa.
Palavras-chave: televisão; complexidade narrativa; transmídia; Gravity Falls.
INTRODUÇÃO
Atualmente o público da televisão vem se tornando cada vez mais ativo fora da interação única com o aparelho televisivo, relacionando-se com esses programas por meio dos blogs/vídeos/podcasts feitos por fãs, utilizando-se de recursos para fazer download de suas séries favoritas e dedicando-se ao fandom através de redes sociais compartilhando informações, teorias e spoilers (contar o que aconteceu em episódios anteriores por vezes estragando a surpresa que outro espectador teria).
No entanto, as animações televisivas não eram grandes influenciadoras da criação dessas comunidades em rede, o enredo mais proeminente delas acabava sendo o qual cada episódio é uma história autônoma sem relação com os anteriores, repetindo-se nos seguintes com a mesma situação narrativa e personagens principais, em grande parte causado pela impressão de que as crianças (as animações são mais voltadas para público infantil) não ficariam tanto tempo em frente a uma tela se os fatos não acontecem rapidamente e pudessem ser entendidos sem perder um episódio.
Apesar disso, nas últimas décadas essas narrativas mudaram em algumas animações e agora é possível notar uma linearidade e evolução da história, bem como easter eggs, transformando essas séries em narrativas complexas com a possibilidade de discussão para além da televisão como em chats e fóruns online, etc.
Assim, este ensaio tem como objetivo analisar o desenho Gravity Falls (2012-2016) como uma das primeiras animações com complexidade narrativa bem como a discussão do engajamento da audiência para o sucesso dessa complexização.
A animação como produto cultural
A técnica de animação e narrativa pode ser encontrada desde a pré-história onde em suas cavernas o homem primitivo registraria seus desenhos e depois os riscaria verticalmente no que Wachtel (OULLETT, 2021) chama de “gravuras de spaghetti”, criando assim, com auxílio do fogo, uma ilusão de ótica fazendo com que as imagens “se mexessem”, gerando uma ação. Mais tarde, durante a Idade Média, os brinquedos ópticos possibilitaram que houvesse um aperfeiçoamento na tecnologia de animação e no final do século XIX a criação do cinema de animação (NESTERIUK, 2011, p. 12).
Assim, durante os séculos XIX e XX houve o surgimento e avanço tecnológico dos novos meios de comunicação como o telefone, o cinema, a televisão e a internet. Como Walter Benjamin lembra, “a obra de arte sempre foi suscetível de reprodução. O que os seres humanos fazem pode ser imitado por outros.” (BENJAMIN, 1955, p. 2). No entanto, com o advento desses meios de comunicação passou-se a ter uma facilidade na reprodutibilidade de imagens massificando o público que poderia usufruir delas gerando o interesse das pessoas não mais apenas como objeto artístico mas para obtenção de lucro no que Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985) conceituam como “indústria cultural”, um modelo de produção e distribuição em massa de itens de cultura.
Essa constante reprodução dessas imagens e itens de cultura faz com que de tempos em tempos a indústria, no nosso caso a da televisão, tenha que se reinventar, permitindo que seus consumidores possam explorar diferentes abordagens de consumo angariando outras mídias mais populares como a internet.
As animações
Com o advento da televisão no século XX foi consolidado o desenho animado como um dos produtos do meio audiovisual. Apesar desta consolidação, por muito tempo os desenhos foram feitos utilizando o método de animação tradicional, ou seja, desenhados à mão e sobrepostos por células, o que aumenta seu tempo de produção. Por conta disso, visando facilitar a vida do animador e diminuir o tempo gasto, era bastante utilizado a técnica de limited animation para desenhos que iriam para a televisão.
Desse modo, podemos considerar que uma narrativa complexa não era prioridade no começo dessa era de animações devido aos prazos curtos dos estúdios, que tinham que produzir desenhos semanalmente, juntamente com as especificidades do campo televisivo, que optava por blocos episódicos que pudessem ser assistidos em qualquer momento sem precisar ver os anteriores para o entendimento do espectador.
Até o final dos anos 1970 a animação na televisão e no cinema era feita de forma manual. Somente quando a Disney Company realizou durante a década de 1980 uma longa campanha chamada de CAPS/ink & paint (Sistema de Produção de Animação por Computador) para melhorar industrialmente seu produto é que isso pode ser mudado. Através da substituição do método tradicional de animação em células – que eram pintadas à mão – por uma técnica desenvolvida pela Pixar que consiste em digitalizar a coloração e combinação dos desenhos por meio de um scanner. Elimina-se com isso a necessidade de células, além do uso das câmeras multiplanos e efeitos ópticos.
Entretanto, foi apenas na década de 1990 que a animação começou a ser largamente automatizada através do uso de computadores, facilitando o trabalho dos animadores e encurtando o tempo de um projeto para outro. Apesar da automatização desse processo, a narrativa dessas séries ainda não é profundamente mudada como a dos seriados em live action.
A popularização da internet ao longo dos anos 2000 e sua rápida adoção de usuários possibilitou que os consumidores se engajassem em seus seriados favoritos, buscando apoio ao lado de outros fãs, criando teorias, discutindo eventos. É a partir desse período que de acordo com Jason Mittel (2012) “a complexidade narrativa já está suficientemente difundida e popularizada a ponto de podermos considerar o período que abrange dos anos 1990 até hoje como a era da complexidade televisiva” (MITTEL, 2012, p. 30). Assim, concomitantemente a outros seriados televisivos como The Sopranos, Game of Thrones, Downton Abbey entre outros, os desenhos animados tem se engajado no mesmo estilo complexo de narrativa.
Gravity Falls
Conforme as audiências mudam, os desenhos animados têm tentado se tornar mais complexos, implementando o dito por Mittel (2012), criando diálogos com fãs em outros meios de comunicação e saindo do estereótipo das animações do século XX, no qual eram comum as histórias com episódios isolados entre si com começo, meio e fim, em alguns casos até reiniciando o universo como se nenhuma ação ocorrida no capítulo anterior afetasse a linha do tempo no seguinte.
No entanto, essa complexidade se dá mais tardiamente e tem seu desenvolvimento mais fervoroso a partir da década de 2010. É claro que temos algumas poucas exceções no período de 1990-2000 como Hey Arnold! em 1996, Samurai Jack em 2001 ou Avatar: The Last Airbender de 2005. Esses desenhos, apesar de possuírem narrativas em blocos episódios que podem não ter nada a ver com os restantes, ainda possuem um arco principal que vai sendo construído aos poucos para ser finalizado. Arnold quer saber o que aconteceu com seus pais, Jack tem como destino acabar com o demônio Abu e Aang precisa destruir o Senhor do Fogo e restaurar o equilíbrio do mundo.
Mas de maneira geral, no que consiste à televisão norte-americana esses exemplos são apenas exceções, sendo muito mais comum em outras televisões como a japonesa a complexificação da narrativa, devido ao fato da maioria massiva desses desenhos japoneses serem originados dos mangás, com histórias longas que sempre tem um gatilho no término da publicação ligando a próxima, dessa forma, ao instigar o leitor, logra audiência para comprar próximas edições.
Em Gravity Falls (2012-2016), desenho animado criado por Alex Hirsch e produzido pela Disney para exibição no canal de tv a cabo Disney Channel, seguimos dois irmãos gêmeos: Mabel e Dipper Pines de 11 anos. Eles estão passando as férias de verão em uma cidade misteriosa na casa museu do seu tio-avô Stan Pines. Dipper encontra um diário codificado com o número 3 em sua capa, repleto de lendas sobre seres mitológicos que ele descobre serem reais.
Logo em seu início nós e Dipper somos rodeados por questões: Quem é o autor do diário? Por que ele escreveu esse diário? Onde estão os outros diários restantes? Por que Gravity Falls é desse jeito? Aos poucos eles vão se familiarizando com a cidade e começam uma busca pelos diários restantes, assim como pela identidade do autor, apesar de que nem todo episódio tem como foco responder ou mesmo se voltar plenamente a essas perguntas.
Em todos os capítulos apenas possivelmente o que mais chama a atenção para uma possibilidade de resposta é a proposta dos criadores de inserir elementos extra-diegéticos (pois não faz parte da trama, funcionam apenas como um meio do autor brincar com o telespectador) que consistem em códigos secretos exibidos nos segundos finais dos créditos de cada episódio e tem como objetivo gerar mais investigação, operando como pistas para respostas sobre a trama encorajando o espectador a criar suas próprias teorias. Os códigos eram criptografados por meio da Cifra de César, uma criptografia feita de forma simples em que cada letra do alfabeto corresponde a uma outra letra, dessa forma ao decifrar seu significado os espectadores atuariam como “fãs forenses” como escreve Mittel (MITTELL, 2014, p. 273 apud GOSCIOLA; SCHMIDT, 2022, p. 8).
Conforme os fãs iam descriptografando a série passou a adotar medidas mais difíceis de codificação como a Cifra de Vignére que consiste em uma série de cifras de César, porém cada letra descoberta depende de uma palavra-chave fornecida pelo episódio; ou o “código do autor”, um alfabeto próprio criado pelos desenvolvedores do seriado. Os códigos também deixaram de serem colocados apenas nos créditos e passaram a acontecer ao longo do episódio, além de em outras mídias oficiais ligadas ao Disney Channel como em jogos e curtas – lançados no canal oficial do YouTube -, no DVD da série e nos livros lançados até mesmo após o fim do desenho, estimulando mais ainda os fãs.
Esses easter eggs não estão presentes apenas em Gravity Falls como já existiam antes em outros desenhos animados. Porém foi com Gravity Falls que eles passaram a ter um valor ligado à narrativa central e não apenas como entretenimento para os fãs. Em Adventure Time (2010-2018), os desenvolvedores escondiam o mesmo caracol em cada um dos episódios e virou um jogo entre os fãs tentar encontrá-lo; alguns momentos de Steven Universe dialogam diretamente com referências à cultura pop, por exemplo, no décimo terceiro episódio da terceira temporada temos uma clara menção já no título: Kiki’s Pizza Delivery Service remetendo ao filme do Studio Ghibli (Kiki’s Delivery Service, 1989), aliado ao visual de certos objetos de cenário como pelúcias e consoles que remetem ao universo de Five Nights at Freddy’s e à empresa Nintendo, respectivamente.
O sucesso do sistema de códigos e criação de teorias em cima deles foi tanto que os telespectadores começaram a entrar na trama verdadeira com suas hipóteses. A mais conhecida delas é a de que o tio-avô Stanford tinha um irmão gêmeo e que ele seria o autor dos três diários, fato comprovado mais tarde no decorrer da série. Por conta disso, os desenvolvedores de Gravity Falls vazaram uma cena ainda durante a “produção” de um episódio que continha o velho Fiddleford Mcgucket com seis dedos na mão direita escrevendo com uma pena em um diário, fazendo com que as pessoas voltassem a sua atenção para ele e não mais para a família Pines. Tal frame, no entanto, é falso tendo sido todo arquitetado pela produção para que soasse verdadeiro.
Desta maneira, é perceptível que as tecnologias presentes na época bem como a narrativa mais complexa do desenho permitiram que os fãs interagissem com os conteúdos mais diretamente: a possibilidade se utilizar de meios ilegais devido ao fato dos episódios serem lançados apenas na televisão e demorarem para serem disponibilizados em DVD como com a gravação de episódios para consumo próprio e/ou ajudando outros fãs jogando essas gravações na internet. Também pela vantagem do uso do pause para analisar certas cenas à procura de pistas para resolver os mistérios ou para voltar sempre que quisessem para não perder a história; além dos fóruns digitais, da enciclopédia virtual da série criada por fãs e das redes sociais como o YouTube e Facebook que permitiram o contato com outros apaixonados e até criaram canais e grupos famosos no meio como o Noitosfera no Discord ou o CometaToon com quase 80 mil inscritos.
Isso angariou um caráter de narrativa transmidiática à Gravity Falls, criando uma tendência nos desenhos dos anos seguintes, mesmo os que já existiam simultaneamente a ele, que passaram a contar com uma história mais complexificada em alguns casos remetendo ao próprio seriado de Alex Hirsch, como Steven Universe (2013-2019), Regular Show (2009-2017), os arcos diversos em Adventure Time (2010-2018) e atualmente The Owl House (2020-presente), o último inclusive utilizando dos mesmos recursos de criptografia e complexidade narrativa que o primogênito.
REFERÊNCIAS
Adorno, T; Horkheimer, M. (1985). Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar.
ANTHONY, Scott. A FILM TO REMEMBER:: “THE LITTLE MERMAID” (1989). Medium, Sem local, p. Não tem, 28 abr. 2019. Disponível em: https://medium.com/@sadissinger/a-film-to-remember-the-little-mermaid-1989-cac4703f77e3. Acesso em: 21 abr. 2022.
ART INSIGHTS. ART INSIGHTS. In: ART INSIGHTS. ARIEL AND FLOUNDER THE LITTLE MERMAID DINGLEHOPPER ORIGINAL FEATURE PRODUCTION CEL. Reston, VA, 2017. Disponível em: https://artinsights.com/product/this-ariel-and-flounder-dinglehopper-the-little-mermaid-original-production-cel/. Acesso em: 25 abr. 2022.
BENJAMIN, Walter. (1955). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. pp. 2. Sem local. Sem editora. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/plugin file.php/4179833/mod_resource/content/1/A%20OBRA%20DE%20ARTE%20NA%20ERA%20DE%20SUA%20REPRODUTIBILIDADE%20T%C3%89CNICA.pdf. Acesso em: 25 abr. 2022
D23: The Official Disney Fan Club (Estados Unidos). D23. Disney History. D23, [S. l.], Walt Disney Archives, Disponível em: https://d23.com/disney-history/. Acesso em: 26 abr. 2022.
GOSCIOLA, V.; SCHMIDT, I.. Narrativa Transmídia em Desenhos Animados: De Gravity Falls a A Casa da Coruja. 2022, Brasil, nov. 2020. Disponível em: <http://meistudies.org/index.php/cmei/3cime/paper/view/893/526>. Acesso em: 27 abr. 2022.
MITTEL, J. (2012). Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea. MATRIZES, ano 5, n.° 2, p. 31, jan./jun. Disponível em: http://www.matrizes.usp.br/index.php/ matrizes/article/view/337/pdf. Acesso em: 23 abr. 2022.
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OS PRODUTORES DE THE OWL HOUSE ESTÃO NOS ENGANANDO! A VERDADE SOBRE A CENA DELETADA Hunting Palismen. Direção: CometaToon. Produção: CometaToon. Intérprete: CometaToon. Roteiro: CometaToon. Fotografia de CometaToon. Gravação de CometaToon. [S. l.]: Youtube, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3WgOa4Xqfsg. Acesso em: 26 abr. 2022.OULLETTE, Jennifer. Archaeologists recreated three common kinds of Paleolithic cave lighting. Arstechnica. 19 jun. 2021. Los Angeles, EUA. DOI: https://journals.plos.org/plosone /article?id=10.1371/journal.pone.0250497 Disponível em: https://arstechnica.com/science/2021/06/archaeologists-recreated-three-commo n-kinds-of-paleolithic-cave-lighting/. Acesso em: 25 abr. 2022.