CRÍTICA | Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), Apichatpong Weerasethakul

Por Guilherme Otávio Barroso Reis

Redação RUA

Até onde a liberdade criativa é capaz de se estender de maneira produtiva? Qual o limite que separa o virtuosismo deliberado de escolhas funcionais? 

Reconhecido no Brasil e no mundo, principalmente pela sua exibição no Festival do Rio de 2010 e a conquista da Palma de Ouro no mesmo ano, o filme Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), de Apichatpong Weerasethakul pode tangenciar esses temas e responder essas perguntas de maneira única.

        No livro A arte do cinema: Uma introdução (2014), de Kristin Thompson e David Bordwell, são discutidas diversas convenções formais do cinema. No capítulo “A narrativa como sistema formal”, os autores colocam a mostra os principais fatores que fazem o espectador se envolver com a narrativa de um filme, e expressam o valor que esse envolvimento pode trazer para a obra. Dentre os fatores relevantes, a relação de causa e efeito tem um papel especialmente importante. É a partir da percepção (clara ou turva) de que fatos acontecem como consequência de outros fatos, que o filme consegue um envolvimento (eficaz ou não) do público no decorrer da história. 

      No enredo de Tio Boonmee, essa teia de causalidade é quase irrelevante, exceto por momentos explicativos, como o sumiço do filho de Boonmee e o porquê da família estar vivendo afastada da cidade. Mesmo nesses casos, a explicação é simples. Ou seja, ao retirar (quase completamente) da narrativa seu papel sistemático de engajamento, atrelado a sequência de raciocínio, o longa passa a criar outras estratégias para fascinar seu público e tornar-se vigoroso.

       A mais notável estratégia me parece ser a temática da fantasia e como ela é abordada. Devido a acontecimentos sobrenaturais que permeiam a vida real, o filme estabelece que, em seu universo, existem conceitos, seres e possibilidades além das que conhecemos. Assim, existe a criação de um universo paralelo, que, diga-se de passagem, manifesta-se de maneira extremamente autoral da parte do diretor, no sentido de que trabalha com elementos muito comuns da sua cultura e vida pessoal. Como já esclarecido por Joe (nome pelo qual prefere ser chamado para facilitar a pronúncia) em uma entrevista para a revista Folha de S. Paulo em 2010, a influência para confecção desses elementos vem da cultura popular tailandesa e de histórias infantis que ele mesmo cresceu consumindo. Entretanto, ele reforça que esses momentos não devem ser levados a sério, pois, na maioria das vezes, são “apenas” veículos para transmitir sentimentos. O que dialoga com a segunda estratégia.

       Como em um filme experimental, a obra busca explorar os efeitos da linguagem cinematográfica no seu espectador. Entretanto, o caminho para qual todos os efeitos  trabalhados apontam é um caminho da metalinguagem. A falta de contato lógico entre um plano e o seu sucessor – momentos em que o corte leva de uma situação para outra sem explicação narrativa, como a inesperada cena da princesa que é seduzida pelo peixe, que simplesmente acontece sem contextualização explícita -, fortalece o objetivo do longa de se concentrar no poder que a imagem e as situações evocam por si só. Não é tão relevante as implicações que tal cena terá no enredo, quanto as implicações sensoriais e sentimentais que ela terá no seu espectador. 

      Outra ferramenta que faz essa intenção do filme parecer mais evidente é sua dilatação temporal. Os planos longos, sem cortes, não parecem ser úteis para passar um senso de realismo, na verdade, acho justamente o contrário. A duração é propositalmente estendida para provocar uma penetração na imagem, como um aprofundamento na essência visual daquele trecho, que só acontece a partir do tempo.

      Essa interessante forma de reflexividade se coloca de um outro jeito, que integra todo o filme, um jeito mais conceitual. Partindo do princípio – imposto pelo título – de que o enredo trata do fim da vida de um homem que possui a capacidade de relembrar outras vidas, ao fazê-lo, o espectador percorre uma trajetória de recordação alternada com o presente. 

     Essas memórias, sejam da vida desse homem ou de um passado qualquer (já que isso não é explicado) refletem sobre a essência preservadora do cinema, a perpetuidade da imagem. De forma mais direta, existe a referência à fotografia como obsessiva. A pequena história de como o filho retornado de Boonmee desapareceu e se transformou na figura primata de olhos vermelhos é uma história sobre esse poder imobilizador da imagem. Encantado por um corpo irreconhecível em uma de suas fotos, o rapaz persegue esse mistério. De maneira similar, o filme persegue o mistério da permanência da imagem na memória. A reminiscência do cinema é objeto de contemplação.

      É interessante reparar, também, o quanto a natureza tem participação nisso. Os momentos que aparentam ser memórias se passam na floresta ou no campo, envolvendo algum animal e algum elemento do espaço ao redor, por exemplo na cena do búfalo, na qual ele se solta da árvore em que estava preso por uma família.

 A recorrente aparição do meio natural passa a impressão de que a vida do tio moribundo está profundamente ligada a esse cenário, tomando como premissa que o filme mostra momentos de suas vidas passadas. A importância da natureza é novamente reforçada na própria motivação para a família de Boonmee estar vivendo tão próxima a ela. Fica claro, nos diálogos, que existe um desafeto com a cidade grande e com sua agitação descontrolada. A busca pelo fim de sua vida em um lugar calmo, ultrapassa somente esse motivo e apresenta um novo: morrer no mesmo lugar onde tantas de suas vidas se passaram, talvez porque Boonmee tivesse mais orgulho delas do que dessa última que viveu.

   Envolvido por esse procedimento, o espectador entra numa experiência que transcende o convencional modo do cinema. A substituição de significado por estímulos não faz essa ser uma obra menos profunda ou carente de complexidade. Na verdade, ela demonstra de maneira diferente da usual como o desprendimento de certas regras pode ser produtivo ao cinema. As respostas para as perguntas do início, deixo ao leitor, mas sugiro fortemente a experiência com esse filme, que, de forma pessoal para cada espectador, pode respondê-las.

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual