ARTIGO | Nouvelle Vague Tcheca: Jan Svankmajer e o cinema visceral

AS PEQUENAS MARGARIDAS, de Vera Chytilová 

Por: Luiza Ritz Bertocco

Resumo: O presente artigo trata sobre a questão da formação do cinema nacional na Tchecoslováquia, atual República Tcheca. Permeando alguns aspectos sociopolíticos e culturais desta região desde o contexto entre guerras, passando pela Primavera de Praga, Revolução de Veludo e seus resquícios, a ideia é analisar a tentativa de produção de filmes independentes em meio às disputas de poder e a repressão da ditadura socialista na região. O enfoque será para o cineasta Jan Svankmajer e o movimento do qual fez parte, denominado “Nouvelle Vague Tcheca”. Com a coligação de artistas de diversas searas, o ideal em comum era utilizar a arte como instrumento de militância para a liberdade de expressão e abertura política.
Palavras-chave: República Tcheca; Filmes independentes; Cinema.

Levando-se em conta o processo histórico da então Tchecoslováquia, sabe-se que, por um longo tempo, fez parte da monarquia austro-húngara e continuou dependente de Viena. Estes resquícios estagnaram os esforços dos tchecoslovacos para um desenvolvimento nacional, político, econômico e sociocultural. A grande maioria dos filmes exibidos em Praga eram importados da Itália, França e Alemanha. Com isso, e com as precárias condições da época, o cinema e a arte como um todo foram se movimentando lentamente. Ainda assim, são feitas tentativas para estabelecer uma produção sistemática e comercial. Josef Pech fundou em 1908 a firma Película Kinofa, que produziu até 1914, quando, devido à guerra, fechou. As outras tentativas existentes no período da Primeira Guerra Mundial também congelaram. Aliás, esta característica é muito peculiar desta região, amplamente afetada em vários momentos pela vigilância e castração de invasores, que anexaram partes de seu território. Esta falta de autonomia e liberdade artística atrasou o surgimento de suas pesquisas e produções cinematográficas.
Depois da queda do regime monárquico e a formação da República independente da Tchecoslováquia, o país pôde dar mais vazão para tentativas de criação. Porém, com a notável diferença entre as suas baratas produções e as dos EUA e de países chamarizes da Europa, a concorrência era desmedida. Isto estimulou ainda mais a gana por uma movimentação no campo cinematográfico regional. Apesar das condições, grupos em prol de uma movimentação artística começam a agir, formando sociedades – como, por exemplo, a sociedade A-B – e realizando pesquisas e testes na área. A migração de técnicos, diretores e atores estrangeiros proporcionou um novo respiro para a Tchecoslováquia, além das trocas. Com o tempo, as produções tchecas começaram a ser notadas e ganhar certa credibilidade pelo olhar certeiro de alguns diretores. Tanto é que a Tchecoslováquia é conhecida por ser o primeiro centro produtor da Europa Central.
Mas, é importante ressaltar que, da década de 20 a 30, os conteúdos dos filmes ainda eram basicamente de cunho histórico, no sentido de levarem para a cena os “grandes heróis da história” como personagens que enalteciam as tradições populares, os costumes camponeses e o folclore tcheco através de um enredo mais bucólico e ornamental sobre representações de tempos longínquos. Dentre estas produções, – e das costumeiras comédias, da precoce ficção científica, documentários e filmes de divulgação científica – também havia aquelas mais voltadas às questões do tempo presente. Os dois nomes que marcam os anos 30 são: Martin Fric e Gustav Machaty. Mesmo com o surgimento do cinema sonoro, as produções cinematográficas continuam, até mais ou menos, o início da Segunda Guerra Mundial. Em 1938, é concedida parte da Tchecoslováquia a Hitler, através do acordo de Munique. Já no ano seguinte, o exército ocupou o país, dividindo-o em protetorados.
Goebbles, ministro da propaganda do Reich, realizou mudanças. Os alemães ali se instalaram e fundaram a “Prag Film” na Boêmia, produzindo filmes convenientes com o regime nazista, como era de se esperar, além de cercear novas experimentações na área. Por causa das deportações de cineastas e da fiscalização, as produções estagnam significativamente durante este período. Na Eslováquia, sob o controle do governador fascista Josef Tiso, também há a pretensiosa criação de um cinema “nacional” através do “Narsup”, organismo que produziu alguns filmes alemães com conteúdo dogmático, reforçando a fidelidade de seus protetorados e anexos territoriais.
Paralelo a este contexto, existia clandestinamente um movimento do Comitê Nacional de Cinema. Nos últimos meses de guerra houve um levante pela nacionalização do cinema, gerando um fortalecimento no grupo e uma alteração do seu estatuto para Sindicato. Por conta da perda de influências na guerra, o governo da Frente Nacional cedeu aos pedidos dos militantes, ocasionando a tão esperada nacionalização do cinema e a derrocada dos alemães na guerra em 1945. Com a retirada do domínio alemão, o território tcheco se encontrou novamente em meio a novas possibilidades. Os formandos da Faculdade Cinematográfica da Academia de Arte de Praga (FAMU) são importantes e estão no meio da nova geração dos cineastas, trazendo novas tendências e também sendo retroalimentados pelos ideais estéticos e ideológicos dos veteranos.

Depoimentos – Kadar: A geração que começou logo depois da guerra já havia, na verdade, se iniciado com o documentário que tendia para o filme de ficção. Naquele tempo não havia escola. Hoje passam por uma escola. Nós não; nós somos a geração que começou com a curta-metragem de ficção. Foi um bom caminho, pelo qual muitos chegaram a ser criadores independentes. Depois da guerra, agrupou-se junto a Klos a jovem geração que tinha ambição mas não tinha possibilidades. (BERNARDET, 1966, p. 37)

Os filmes deste período retratam, principalmente, sobre a Segunda Guerra Mundial e a ocupação nazista, greves locais, o levante em 1944 na Tchecoslováquia, a crise econômica de 30, dentre outros temas.
Concomitante a estes temas, o filme histórico, documental e biografias continuam em voga, porém, não despertam o interesse do público por conta de seu conteúdo superficial e dogmático, em alguns casos. Os anos 40/50 vivem uma espécie de “monumentalismo” no ramo cinematográfico, isto porque eram despendidos mais esforços técnicos em detalhes estéticos, na esperança de criar grandes produções. Com isso, a produção diminuiu o seu número. A comunicação entre os diversos polos da região e do exterior deu um contorno um pouco mais nítido a respeito da peculiaridade tcheca.
Já no final da década de 50 e início de 60, observa-se uma renovação no que diz respeito à técnica e conteúdo. O naturalismo e o realismo vão sendo substituídos gradualmente pelos recursos do neo-realismo e do expressionismo. Com a pesquisa formal e as experimentações tecnológicas, deu-se origem ao Poli-Ecrane ao Teatro Lanterna Magika, existentes até hoje na República Tcheca e reformulados em outros locais. Filmes de ficção também, com o auxílio do expressionismo.
O desenvolvimento industrial na região e a vida dos proletários também são acolhidos nesta nova leva temática. A nudez volta à tona e se reconstrói nas telas. Os problemas atuais passam a ser dissecados e representados com mais ênfase, além da atenção redobrada no aspecto psicológico das personagens, ao contrário do discurso ufanista de outrora. Além disso, o cinema de animação tcheco ganha referência mundial, através dos principais produtores: Trnka, Zeman, Hofman e Pojar.
A segunda metade dos anos 60 é considerada como um ponto de mudança estrutural do cinema que existia até então, por isso foi cunhado o termo “Nouvelle Vague Tcheca” (ou Nova Vlná) para designar o cinema insurgente neste período. Esta “nova onda” tcheca possui as características mais comuns às correntes dos anos 60, como o uso do improviso, de atores amadores, técnicas e jogos de câmera diferentes do padrão, o caráter revolucionário e original, dentre outros aspectos. No entanto, não é necessariamente uma extensão da Nouvelle Vague francesa.
A geração da NV Tcheca foi fortemente influenciada pelo Teatro do Absurdo, pela estética surreal-anarquista advinda dos artistas plásticos do século XX, por escritores tchecos e também pelos escritos de Kafka, publicados em língua tcheca nos anos 60. Os filmes têm em comum o uso da ironia, sarcasmo e também o absurdo, a fim de provocar o espectador. Apesar de parecer apenas uma sucessão sem sentido de imagens e sons para alguns, as figuras de linguagens são usadas como um instrumento para transmitir suas ideologias e críticas sócio-políticas.

Por outro lado, afirmar a possibilidade de recuperar o “não visível” através do “visível” é contraditório, já que essa análise vê a obra cinematográfica como portadora de dois níveis de significado independentes, perdendo de vista o caráter polissêmico da imagem. Este raciocínio só tem sentido para aqueles que, ao analisarem um filme, separam da obra um enredo, um “conteúdo”, que caminha paralelamente às combinações entre imagem e som, ou seja, aos procedimentos especificamente cinematográficos. Pelo contrário, afirmamos que um filme pode abrigar leituras opostas acerca de um determinado fato, fazendo desta tensão um dado intrínseco à sua própria estrutura interna. A percepção desse movimento deriva do conhecimento específico do meio, o que nos permite encontrar os pontos de adesão ou de rejeição existentes entre o projeto ideológico-estético de um determinado grupo social e a sua formatação em imagem. (MORETTIN, 2007, p.5)

Com a tomada da Tchecoslováquia pelas tropas soviéticas em 1968, a liberdade dos artistas diminuía cada vez mais. A vigilância e a censura eram intensas, dificultando a aprovação dos filmes, que tinham que ser alterados, cortados, reformulados, ou vedados. Suas técnicas e estéticas são usadas na contramão do Social-Realismo e almejam denunciar o sistema social em que estão inseridos. Neste caso, questionam a repressão sofrida pelas tropas soviéticas, além do controle nas várias esferas da vida dos tchecoslovacos, carentes de autonomia e identidade. Esta só poderia ser alcançada através da consciência dos cidadãos e sua união para um autogerenciamento. Apesar de clássico e utilizado como ponto de referência por muitos, o cinema francês não é necessariamente uma antessala da NV tcheca. Muitos beberam na fonte do cinema francês e italiano deste período e é inegável a sua contribuição, porém, a nova onda tcheca difere em muitos pontos e tem as suas peculiaridades.
Enquanto o cinema francês usa majoritariamente a linguagem do realismo, os diretores tchecos pendem mais para o lado do surrealismo, niilismo, dadaísmo e o existencialismo. Normalmente o surrealismo só é compreendido e visualizado no período entre guerras, mas é preciso saber que ele extrapola esta periodização, já que ressurge dos anos 60 em diante, e se reconstrói de acordo com o novo contexto. É neste cenário em que o veterano grupo surrealista se une aos novos artistas saídos da FAMU. As ambições destes grupos se mesclam, gerando diversas linhas dentro da categoria “surrealista”. Os artistas do período conseguiram externar esta ânsia por meio da abertura política e cultural desencadeada pelo movimento reformista da Primavera de Praga. Apesar de ter sido sufocado com a invasão das tropas soviéticas, aquele espírito estimulado naquele movimento permaneceu em stand-by até a nova possibilidade de abertura no país.
A partir do afrouxamento da ditadura socialista e da nacionalização da indústria cinematográfica, o que havia sido sufocado por um longo período começou a se materializar, principalmente no final da década de 80 e início de 90. O discurso da Nouvelle Vague Tcheca tem uma relação intensa com a política, porém, não devemos cair no fatalismo de pensar que todo e qualquer filme desta geração é um mero reflexo conjuntural ou então, de oposição ao regime. A via é de mão dupla. Outro fator importante é a necessidade de busca de identidade, de reforçar os valores e ambições do povo tcheco, neste momento de formação e transformação constante. Com isso, a crise do período foi sentida e representada diversamente pelos vários cineastas, literatos e poetas do período.

Pois o que permanece valioso ainda hoje no vasto catálogo da NV Tcheca e justamente o esforço dos cineastas em tentar compreender de que forma viver num momento de novas perspectivas, ou seja, num estado de crise dentro de uma sociedade socialista que buscava um caminho alternativo a via única pautada pelos soviéticos – tudo isso aliado a urgência pela invenção (narrativa, estética ou comportamental, às vezes tudo ao mesmo tempo) que remonta, na lavoura cinematográfica, a vanguarda da década de 1930 do mesmo pais. Os filmes da NV Tcheca – tanto os convulsivos quanto os nebulosos – são mais do que resultados de uma crise, são filmes sobre estar em crise: dão forma a busca por uma real identidade num momento de transição em que tudo esta em condição extremamente movediça. A equação entre procurar a verdade e entender o transitório nos leva a grande incógnita que o cinema tcheco dos anos 1960 sustenta até hoje (…) (LINCK; BOMFIM, 2014, p.25)

Dentro deste caleidoscópio cultural, o diretor escolhido para o recorte desta pesquisa é Jan Svankmajer. Integrou o movimento surrealista tcheco em 1963, envolvido nas experimentações do Teatro Lanterna Magika e atuando como cenógrafo no Teatro Negro e no Teatro de Máscaras Praga, que existem até os dias atuais. Cursou no Departamento de Desenho de Cenários da Faculdade de Artes Aplicadas de Praga e no Departamento de Marionetes da Academia Nacional de Artes de Praga. Seu primeiro filme data de 1963, mas, com a invasão das tropas soviéticas na Tchecoslováquia em 1968, passou por um momento de censura, proibido de produzir e divulgar suas obras até o início da década de 80.
Em decorrência do mecanismo moralizante dos censores, vários artistas tiveram a sua liberdade castrada. Jan Svankmajer, um dos diretores vedados por conta de seu trabalho de cunho subversivo, só voltou a trabalhar normalmente após a retirada dos socialistas, com o período de redemocratização e abertura política. Seus feitos tiveram pouca repercussão mundo afora de início, mas seu trabalho começou a ser realmente conhecido na década de 80, através de reconhecimento e prêmios internacionais. Seu estilo, técnica e filosofia, influenciaram diversos cineastas e animadores, inclusive Tim Burton, Stephen e Timothy Quay e Terry Giliam. A mescla entre expressões do teatro e do cinema se fez muito presente na República Tcheca. O póli-ecran é um exemplo desta interação entre imagens já gravadas e incorporadas ao movimento espontâneo dos atores no palco em tempo real.
Ele não poupa recursos. Realiza uma espécie de bricolagem, utilizando para compor a sua obra (nunca inacabada) objetos dos mais variados tipos: utensílios caseiros, argila, recortes, stop-motion, alimentos, colagens de revistas e atores de carne e osso (ou não). As marionetes utilizadas na filmagem não são ideias originais deste diretor, já que seu uso é recorrente na história deste país. Esta arte tchecoslovaca é cultuada, preservada e reelaborada por muitos nesta região. Tanto é que, assim como várias crianças tchecas, Svankmajer ganhou uma casinha de espetáculo de marionetes na infância. A partir disso, começou a sua experimentação. A forma como Jan se apropria das marionetes é o que esboça a sua particularidade e visão de mundo. O objeto só deixa de sê-lo pura e simplesmente quando é manipulado de uma determinada forma. E a criatividade deste diretor em questão, é assombrosa – em diversos sentidos.
Os seus longas e curta-metragens têm um ar sinistro e surreal. A aura que permeia os seus vídeos causa um impacto visual muito grande, já que nos transmitem imagens não habituais, forjadas através do diálogo entre os vários materiais selecionados. A escolha dos sons também é um fator muito importante. Há pouco diálogo em seus vídeos, porém, a comunicação consegue ir além.
Sem desmerecer o caráter universal destes filmes, ter otimismo vivendo sob as rédeas de um Regime Socialista era algo que realmente só parecia possível com uma boa dose da fantasia (Valerie e Sua Semana de Deslumbramentos) ou, em certa medida, autoengano (Os Amores de Uma Loira). Era essa, inclusive, a arma dos cineastas para fazer com que suas obras passassem pelo crivo do Governo. Contos de fadas, parábolas e enredos fragmentados e poéticos eram munições de praxe em busca da aprovação oficial, erguidas contra a censura em uma “luta de veludo” para que os filmes pudessem seguir seu caminho em direção aos festivais do ocidente. (LINCK; BOMFIM, 2014, pg. 16)

As marionetes podem ser apropriadas e ressignificadas de várias maneiras: como forma de manutenção e nostalgia ao antigo regime; com o sentido de relembrar fatos políticos e sociais que marcam a história do país; ou, ao contrário, numa mescla entre marionetes que remontam ao período medieval, usá-las para falar – também – sobre o tempo presente, ou seja, fazer uma inter-relação entre passado e presente. Svankmajer parece se situar na última estratégia: sua preocupação é “permitir” que elas falem o que precisa ser dito, com autonomia para que sejam atores da própria história. Mas os autômatos estão sempre nos relembrando que as cordas e os mecanismos ainda estão presentes em nossas vidas. Sutis, mas estão.
É evidente em seus vídeos a sua preocupação em dar um sopro de vida para coisas que não são humanas. Por isso o estranhamento em quem assiste: objetos corriqueiros exercendo funções alheias, pessoas sendo dissimuladas por objetos zombeteiros, uma raiz de árvore que ganha vida e começa a se alimentar das pessoas ao redor por conta de seu apetite insaciável.
Outro ponto recorrente em seus filmes é o uso da carne e do sangue nos vídeos. Línguas desmembradas rastejam pelo chão; bifes ganham vida, dançam tango e se amam à milanesa até a combustão, após serem cortados de uma peça bovina. Esta referência à intensidade, ao instintivo e ao carnal, é uma das formas que Jan se utiliza para dar uma injeção de ânimo a quem assiste, para que consigam ser mais do que meros espectadores passivos.
Através do estranhamento é possível se pensar no novo. O surreal é um dos mecanismos de estímulo para revalidar a própria existência. Normalmente, o que chega para a população são os filmes produzidos nos EUA e em lugares bem específicos e seletos da Europa, através das mídias tradicionalmente veiculadas. Com isso, produções independentes costumam ter pouco acesso, como as do Leste Europeu.
É notável a escassez de fontes em português a respeito do assunto, portanto, é importante dissertar sobre e estimular novos pesquisadores a ampliar esta temática, que não se esgota. Algumas mostras de cinema foram realizadas no Brasil, no entanto, normalmente acabam se restringindo ao eixo Rio-São Paulo. A Tchecoslováquia não pôde dar vazão às suas potencialidades devido à repressão e pela falta de recursos financeiros, meios de produção e apoio estatal. Aliás, este é um ponto importante do panorama da então Tchecoslováquia e da atual República Tcheca, no que diz respeito ao provincianismo ali presente e das crises políticas.
Há também o outro extremo deste dilema: tentar compreender além do superficial, ou seja, o porquê das imagens surrealistas e qual é o propósito das representações e do imaginário criado. Jan Svankmajer é conhecido por alguns por ser uma mistura entre Walt Disney e Buñuel, de acordo com o fantástico e o surreal presente em seus filmes. No entanto, o seu estilo é bem diferente de outras produções ocidentais mais comerciais, como os filmes da Disney. A estrutura de seus vídeos não é linear e visa despertar o potencial e a criticidade inerente a todos.
Pululou entre diversos grupos, esteve envolvido no movimento surrealista, considerado por muitos como um dos representantes da Nouvelle Vague Tcheque, e ao mesmo tempo, não se considera um cineasta, e sim, um agente em favor da poesia. A forma como manipula objetos tradicionais, no caso as marionetes, de forma totalmente inusitada, fomenta a análise das referências ao velho/novo e tradição/modernidade presentes em sua arte táctil.
Outra problemática a respeito do tema na República Tcheca, é a não polarização das animações em relação a classificação indicativa por idade. Svankmajer, Jiri Trnka e muitos outros, faziam animações com marionetes que serviam tanto para crianças quanto para adultos. Esta noção serve para flexibilizar a idéia maniqueísta que permeia tantas categorias do nosso cotidiano.

Aqueles que erguem uma barreira entre a infância e a idade adulta, trabalham, sem sabê-lo, para a puerilidade dos adultos, cuja decrepitude exclui qualquer cumplicidade entre uma geração e outra (…) Disney, repetindo que não quer crescer, recusando-se a trabalhar para maiores de doze anos (idade mental incluída), só se priva, a meu ver, de uma juventude primordial, aquela da arte. Ao contrário, Jiri Trnka, que inventa para todas as idades, representa para mim, a virilidade sem condescendência aquela que encanta os mirins até a adoração (…) A Tchecoslováquia é o ninho europeu das marionetes. (…) Trnka nunca escolheu a facilidade de uma vulgarização da forma: não procurou um meio cômodo de expressar-se, mas sim uma expressão que fosse mágica… (BERNARDET, 1966, p. 43)

Tim Burton, por exemplo, foi influenciado por seu estilo. Mas até qual nível? Como é a relação entre os modos de produção dos filmes de Svankmajer e as animações de Tim Burton em parceria com os estúdios da Disney? Em que se assemelham e se diferenciam?
Outro ponto é sobre as correntes artísticas e a sua elasticidade. Nenhuma categoria é fechada em si, por isso, é preciso analisar como se davam as relações e as trocas entre o grupo surrealista e os cineastas que abraçaram a ideologia do grupo, por conta das proximidades filosóficas e políticas. O movimento surrealista dos anos 20 não é o mesmo que ressurgiu nos anos 50/60 juntamente com o cinema novo tcheco (Nova Vlná). As reformulações são constantes, já que não existe nenhum grupo totalmente coeso e fiel às suas propostas.
Os elementos surrealistas presentes nas obras de Svankmajer têm um propósito claro: mexer com as pessoas. Fazer com que reflitam sobre coisas impensadas e reconstruam os paradigmas, desconstruindo, com isso, conceitos e estigmas. A sátira, ironia, e a hipérbole ou letargia de algumas ações, são utilizadas também com o intuito de passar pela vigilância estatal e podem ser instrumentos de militância.
É através da catarse pela arte que podemos nos posicionar melhor a respeito de nossa particularidade em relação com o coletivo.
A busca de identidade – em meio a tantas bandeiras, mandos e desmandos – incitou os artistas da época a construir formas alternativas de ativismo, cada qual com suas intenções, arsenais e objetivos ideológicos em meio ao processo histórico existente na República Tcheca do período.
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