As Representações da História no Cinema da Retomada

Sandro Luiz Cardoso Santana é graduado em Comunicação Social pela Facom/ Universidade Federal da Bahia e Mestre em Cultura e Sociedade pela mesma instituição.

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Resumo: O artigo analisa o tema da reconstituição da História no Cinema da Retomada na encruzilhada multidisciplinar entre os estudos da teoria e crítica do cinema e da história do cinema brasileiro com as áreas das Ciências Sociais e História. Partindo da idéia de que “todo filme é um documento dos seus meios de produção”,[1] a investigação articula a recriação da História nos filmes brasileiros com o sistema de financiamento que propiciou a sua realização e as matizes sociais e econômicas que delinearam um novo perfil do público das salas de cinema. O objetivo é empreender uma análise de como o tema da reconstituição da História foi abordado pelo Cinema da Retomada, tendo em vista as implicações que o modelo de financiamento baseado em leis de incentivo e a necessidade dos  realizadores em dialogar com o presente influenciaram na recriação de episódios e biografias de personagens marcantes da História do Brasil.

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Na década de 90, o cinema brasileiro sofre um dos maiores golpes da sua história com o fim da Embrafilme e do Concine no governo Collor de Mello. A produção despenca e é decretado o fim de mais um ciclo na conturbada história de “mortes e renascimentos” do cinema nacional.[2] Ainda no governo Itamar Franco são criadas as leis de incentivo à cultura, no caso do cinema, mais específicamente, a Lei do Audiovisual, em 1993. No entanto, é no governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2001) que as leis de incentivo assumem o primeiro plano da política cultural brasileira e tornam-se praticamente o veículo exclusivo de financiamento do cinema nacional.

Este mecanismo, que permite às empresas o abatimento integral do valor investido na aquisição das cotas e o lançamento do valor investido como despesa  operacional, reduzindo, indiretamente, mais impostos[3], está intimamente ligado ao cinema brasileiro dos anos 90 e ao programa neo-liberal implantado por FHC, que na área cultural elegeu o Cinema da Retomada como bandeira.[4]

O estudo proposto justifica-se também pelo papel central que tem hoje o cinema brasileiro enquanto meio de comunicação de massa e enquanto linguagem, o que lhe confere a condição de veículo disseminador de leituras da sociedade brasileira e de agente estratégico para a análise das relações entre corpo social brasileiro e campo simbólico.

Um artigo que tem como proposta a análise de como o tema da reconstituição da História foi abordado pelo Cinema da Retomada demanda  aparelhos conceituais capazes de estabelecer conexões entre as motivações que influenciaram na escolha de  determinados eventos históricos, a “presentificação” destes eventos, o seu diálogo com outros momentos do cinema brasileiro e a disputa simbólica na qual se vê envolvido o realizador. Na leitura de Miriam Rossini, doutora em História pela UFRG, essa “disputa simbólica” decorre do fato do cineasta encontrar-se inserido

(…) no próprio âmbito da identidade de um país, de como ele se vê e se representa, e também de como ele quer ser visto. Daí que a escolha do que representar, além de estar ligada aos interesses pessoais do cineasta, também revela as discussões teoricamente predominantes no momento em que o filme é feito, bem como o imaginário do grupo social retratado.[5]

Essa representação imagética de fatos históricos e o seu papel na construção da identidade cultural de um povo só tem  amplificado nas últimas décadas. Como ilustra bem o pensamento de Nicholas Mirzoeff: “no redemoinho de imagens, ver é muito mais do que acreditar. Não é apenas uma parte do cotidiano. É o cotidiano.”[6]

No que concerne às relações entre imagem e história, o cinema ocupa uma posição de destaque não apenas por tratar-se de um veículo de comunicação de massa que movimenta cifras astronômicas, como também pelo fato de ser um artífice do capital simbólico de uma cultura que se encontra cada vez mais globalizada. Daí, o seu papel estratégico enquanto arma de ataque e defesa (ou contra-ataque) nas lutas antiimperialistas e de construção e afirmação de uma identidade cultural.

O conceito de Cinema e História desenvolvido por Marc Ferro nos aponta como pontos norteadores três perspectivas: a imagem como agente da história; a imagem como testemunho do presente e a imagem como modalidade de discursos sobre o passado.[7] Segundo Ferro, um pioneiro na assimilação do cinema enquanto fonte para o entendimento da História, um filme pode ser utilizado como documento porque o seu resultado vai além das intenções dos seus realizadores, refletindo, ainda que de forma inconsciente, o espírito de uma época.

Resta estudar o filme, associá-lo ao mundo que o produz. A hipótese? Que o filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História; o postulado? Que aquilo que não se realizou, as crenças, as intenções, o imaginário do homem, é tanto a história quanto a História.[8]

Dessa análise de Ferro pode-se apreender  que o filme possibilita tensões dentro de um projeto ideológico  e estético que trazem à tona diferentes reflexões acerca da realidade que  os seus realizadores querem representar na tela. Tomando de empréstimo as palavras de Ferro, “seus pontos de ajustamento, os das concordâncias e discordâncias com a ideologia, ajudam a descobrir o latente por trás do aparente, o não-visível através do visível”.[9]

Para os propósitos deste artigo, se faz necessário contextualizar a escolha dos temas, as exigências da engenharia financeira e os modos de produção que possibilitaram a retomada da produção cinematográfica no Brasil e os seus imbricamentos com as transformações sócio-culturais daquele momento.

Na década de 90 as teorias pós-coloniais de autores como Homi Bhabha, Stuart Hall, Edward Said e Nestor Canclini[10] valorizam o ex-cêntrico, o periférico e o marginal e propõem uma releitura da cultura e das suas formas estéticas enquanto parte da relação entre cultura e império e da experiência histórica. Esta tendência mundial rearticula o diálogo entre tradição e modernidade, fazendo emergir em diversos campos artísticos e culturais uma filosofia da diferença, como chamou atenção Angela Prysthon,  marcada pela “recuperação, reciclagem e retomada da tradição, da história, do já-visto em oposição ao gosto pelo estrangeiro, pelo cosmopolitismo tradicional, pelo importado do pós-modernismo brasileiro da década anterior”.[11]

Além dos fatores supracitados, que já seriam suficientes para legitimarem a  eleição da busca da identidade e da representação imagética da história no cinema como chancela do valor cultural, um filme foi fundamental para que o Brasil ressurgisse nas telas como tema e justificativa da retomada do cinema nacional: Carlota Joaquina, a princesa do Brazil (1995).

Após a decepção com o governo Collor vivia-se um clima de desilusão, falência de projetos e desencanto ideológico. Além disso, como observou Regina Horta Duarte, mesmo com a passagem do governo Collor para a gestão Itamar Franco, o Brasil ainda vivia um clima de denúncias de corrupção e de descrença da sociedade em relação às elites que dirigiam os destinos do país.[12] Ainda que o presidente tenha deixado de ser o alvo  das acusações de corrupção, Itamar Franco, com o seu característico topete em desalinho, se envolveu em diversas trapalhadas. A mais famosa delas foi o episódio ocorrido no sambódromo carioca, durante o carnaval de 1994, quando o presidente deixou-se fotografar ao lado da modelo Lílian Ramos, que na ocasião trajava apenas uma camiseta. A foto da modelo sem calcinha ao lado do presidente ganhou manchetes dos principais jornais do Brasil e teve grande repercussão no exterior, causando reações de indignação dos setores mais conservadores e reforçando a imagem caricatural de Itamar.

Para o crítico e pesquisador Pedro Butcher, o distanciamento da história oficial e o artifício de roteiro, utilizando um personagem escocês como o tio que conta à sua sobrinha a história de uma princesa espanhola que em 1808 desembarca no Brasil ao lado do seu marido, o rei de Portugal D. João VI, para escapar da invasão das tropas de Napoleão, possibilita o riso da caricatura do próprio país. Nada mais adequado para o momento em que o filme estreou:

Carlota Joaquina estreou no momento em que o Brasil saía de uma série de episódios políticos conturbados e traumáticos. Depois de 20 anos de ditadura militar, aquele que seria o primeiro presidente civil em anos, Tancredo Neves, morreu pouco antes da posse. E a passagem pelo poder do primeiro presidente civil (Fernando Collor de Mello) foi um desastre absoluto. Vivia-se um período de baixa auto-estima, marcado por um sentimento generalizado de desgosto e desprezo pelo país, algo que é fielmente traduzido por Carla Camurati, ao mesmo tempo em que é jogado em um confortável tempo mítico do passado.[13]

É possível perceber a atmosfera pessimista da primeira metade da década de 90 em diversas expressões artísticas. Na música, desde os anos 80 que uma nova geração de artistas demonstrava  um misto de escárnio e desencanto em relação ao destino mítico do “país do futuro”. Canções que marcaram uma geração e se tornaram clássicos, como Inútil, do Ultraje a Rigor, Que país é este?, da Legião Urbana, e Brasil, de Cazuza, são bons exemplos. O psicanalista italiano radicado no Brasil, Contardo Calligaris, transformou em livro, em 1991, o seu espanto ao ouvir em diversas partes do Brasil a frase “Este país não presta”.[14] Para Calligaris é impensável alguém se referir desta forma ao próprio país.

Esse País não presta! Um europeu poderia afirmar que um governo não presta, que a situação econômica não presta, ou mesmo que o povo não presta, mas dificilmente diria que seu país não presta. Deve haver alguma razão que coloca os brasileiros com respeito à própria identidade nacional, em uma curiosa exclusão interna, que permite articular a frase que me interpela.[15]

Em grande parte, o êxito de Carlota Joaquina se deve ao fato de proporcionar a principal camada da população que vai ao cinema no Brasil, no caso a classe média, o riso e o escárnio dos personagens que ajudaram a construir o Brasil moderno e a constatação de que o país não tem remédio (esse país não presta) e o melhor é rir dele e do seu DNA através de um discurso estereotípico. Como tão bem atentou o crítico Luiz Zanin Oricchio, o bovarismo da classe média chega ao ápice na década de 90 e a sua voz se articula sob a forma de chacota num país onde esta classe projeta para si uma auto-imagem onde os seus membros são os únicos que trabalham, pagam seus impostos, dão duro para criar os filhos e não gozam sequer de segurança para andar na rua.

O que diz o filme? Que o Brasil moderno foi forjado naquele momento, o da transferência da família real para o Rio, mas o que se poderia esperar de um país construído por aquele tipo de personagens, um rei glutão e manso, uma rainha ninfomaníaca e sem escrúpulos, um príncipe priápico e doidivanas? [16]

Para Oricchio, a carnavalização da história em Carlota Joaquina mais reforça o discurso de um país que está fadado a não dar certo do que desmistifica um episódio histórico narrado oficialmente de forma edulcorada e ufanista.[17] Ainda que não tenha sido esta a intenção da diretora, que vê o cinema enquanto poderosa ferramenta pedagógica que pode aliar entretenimento e conhecimento.

Como podemos perceber no depoimento transcrito abaixo, Carla Camurati credita ao seu filme, ao menos esta foi a sua idéia ao realizá-lo, a possibilidade de afirmação de uma perspectiva histórica através da narrativa cinematográfica – “o grande romance da humanidade” – que pode diluir as fronteiras entre ficção e História.

Meu objetivo com Carlota Joaquina foi mostrar que dá para fazer cinema no Brasil. Que tem público, sim, e que os filmes se pagam, sim. Escolhi um tema histórico porque sempre fui apaixonada pela História. E o cinema é uma linguagem forte, que pode trazer, além de entretenimento, também conhecimento. Acredito que a História é a ficção do Homem. É o grande romance da humanidade. Ela nos diz que tudo está em movimento e que o que importa não é um homem, personalidade histórica, ou um grupo de pessoas. O que é importante é o Homem – isso a História nos diz e pode ensinar mais efetivamente por meio do cinema. Os homens morrem, o Homem não. Um povo só pode compreender o seu presente a partir do conhecimento do que foi o seu passado. Com essa idéia na cabeça realizei Carlota Joaquina – Princesa do Brazil.[18]

Durante o lançamento de Carlota Joaquina criou-se uma celeuma em torno da ridicularização de personagens históricos, algo que a diretora habilmente soube aproveitar para alavancar ainda mais a bilheteria do filme. Consultados por jornais e entrevistados em programas televisivos, historiadores e especialistas criticaram a superficialidade da abordagem.

Para o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ronaldo Vainfas, uma caricatura é uma amplificação de traços críticos, às vezes ligados à História, outras à memória, e credita a D. João VI um importante papel frente à invasão das tropas napoleônicas em Portugal. “A caricatura distorce a sua importância, ele conseguiu manter o Estado português e a unidade territorial no Brasil”.[19] afirma o historiador e encontra eco na fala da pesquisadora da USP, Mary del Priore: “D. João fez muito pelo País: criou a Imprensa Régia, o Banco do Brasil e trouxe a missão francesa que promoveu uma série de mudanças no campo das artes”.[20] No artigo “Carlota: caricatura da história”, Vainfas afirma que “o filme de Carla Camurati tem verdadeira obsessão em divulgar estereótipos sobre a história do Brasil e sobre o Brasil”  e analisa o papel de D. João VI:

D. João, caricato no filme, foi na história do Brasil o mentor da Independência, que manteve unido o território da América portuguesa, quase um milagre, através da corte que se estabeleceu no Rio e do filho D. Pedro que ficou, com Dia do Fico ou sem ele. [21]

Para a professora de História da UFRJ e autora de Carlota Joaquina na Corte do Brasil, Francisca Nogueira de Azevedo, a imagem criada para Carlota Joaquina é decorrente do fato de que tanto na literatura como nos romances, nas artes e nas produções historiográficas dois estereótipos maniqueístas são recorrentes na passagem do século XVIII ao século XIX: as santas e as bruxas.[22] Para Azevedo, os biógrafos de Carlota Joaquina “incorreram em análises de juízo de valor demonstrando abordagens centradas no preconceito da atuação pública de uma mulher”.[23] Segundo a historiadora, a “lenda negra” em torno da princesa decorre em parte do fato dela ter se rebelado contra a cultura humanista da sua época e os “preceitos da educação feminina que recebeu”, que relegavam a mulher a objeto estético  e a submissão aos homens.[24]

No caso de nossa personagem, a questão da mulher considerada pelo prisma de uma trajetória de vida é a forma de perceber o profundo da fragmentação da existência feminina vivida no cenário cultural ibérico no período da passagem de século XIII para o XIX, marcado pela contradição de uma modernidade inibida pela forte pressão do pensamento religioso, confrontando-se como num duelo entre os ideais do Iluminismo e os da filosofia da escolástica. [25]

Além de Carlota Joaquina, dois filmes merecem ser observados mais atentamente tendo em vista os objetivos do presente estudo: Guerra de Canudos (1997) e Mauá, o Imperador e o Rei (1998), ambos de Sérgio Rezende. Menos por valores intrínsecos às obras, mais por se tratarem de modelos exemplares de um cinema épico, que reconstrói episódios históricos com orçamentos impensáveis para o cinema brasileiro, mas que a sua maneira nos ajuda a compreender o período em que foi realizado.

Com a produção de Guerra de Canudos e de Mauá, o Imperador e o Rei, Sérgio Rezende passou a ocupar uma posição especial dentro do Cinema da Retomada. Não só pelas somas que os orçamentos destes filmes movimentaram, mas, sobretudo, pela representação da ideologia neoliberal que o país vivia.  Guerra de Canudos causou polêmicas que vão além de inverossimilhanças históricas (nem sempre comprovadas), como o vestido usado por Luzia, personagem vivida por Cláudia Abreu,[26] ou detalhes, como o fato de Antonio Conselheiro ter ou não uma Bíblia, ou o volume das águas do rio Vaza-Barris, como foi levantado por historiadores.[27]

Para a pesquisadora e professora da UFRJ, Ivana Bentes, Guerra de Canudos transforma um importante fato histórico numa história de amor com pano de fundo histórico ao deslocar a narrativa para o olhar de Luzia, “uma espécie de Scarlet O’Hara  sertaneja, lúcida e ambiciosa”,[28] seguindo a grande lição ensinada pelo filme americano de sucesso, copiada pela televisão e pelo cinema empresarial brasileiro.[29] Ivana Bentes defende que Sérgio Rezende, ao obedecer à risca os mandamentos de um “cinema histórico-espetacular”,  transforma o filme  Guerra de Canudos num palco e museu onde o sertão, a pobreza e os seus personagens são apresentados como peças de um “museu da História”.

Guerra de Canudos representou um momento de euforia no cinema brasileiro e de otimismo na economia do país com a paridade entre o real e o dólar.  Ruy Gardnier, da revista eletrônica Contracampo,[30] assim como Oricchio e Ivana Bentes nos artigos supracitados, já haviam observado a sintonia dos discursos dos filmes Guerra de Canudos e Mauá, o Imperador e o Rei, ambos dirigidos por Sérgio Rezende, com a política do governo FHC. Gardnier chega a chamá-lo de “cineasta oficial do regime”.[31]

Se Guerra de Canudos era o perfeito equivalente fílmico do Governo FHC1, com aquele conservadorismo covarde disfarçado de valente, Mauá é o perfeito FHC2, com o elogio do dinheiro externo e dos valores liberais contra a força do Estado.[32]

Excessos à parte, Sérgio Rezende, cineasta egresso dos anos 80, quando já ensaiava sua aproximação com a cinebiografia espetacularizada de personagens controversos da história do Brasil, com o Homem da capa preta (1986), sobre Tenório Cavalcanti, sempre afirmou o desejo de “conquistar o público”, ideal comum no Cinema da Retomada.  Com Guerra de Canudos, Rezende reinaugura o épico no cinema brasileiro e com isso traz à tona todas as implicações que uma produção dessa envergadura carrega consigo.[33]

Guerra de Canudos e Mauá trazem consigo marcas evidentes do período em que foram realizados. O elogio ao individualismo cético  e descrente em movimentos sociais –  presente em Luíza, heroína de Canudos –  a louvação à entrada do capital estrangeiro e ao livre mercado em Mauá, não distante do imaginário do período histórico da sua realização. Como ilustra bem o comentário do roteirista Jean-Claude Carriére:

Cada estágio na vida do cinema impôs sua própria moda à era histórica que retratava. Essas modas vão e vêm. A Roma antiga dos anos 20 não é nem de perto a mesma Roma dos anos 50. O presente modifica o passado, no cinema como em outros lugares, mas no cinema ele modifica o passado em alta velocidade. [34]

Na história do Brasil nunca se investiu tanto na produção cinematográfica. Enquanto em 2002, talvez o ano mais prolífico da Retomada (1995-2002), foram lançados 35 filmes, em 2008,  81 filmes brasileiros estrearam nas salas de cinema. No entanto, grande parte desses filmes ficam restritos aos seus guetos de exibição, como Mostras, Festivais e circuitos de salas de arte. Num país onde menos de 20% da população freqüenta salas de exibição, o cinema é um reflexo do apartheid social, um abismo que exclui a maior parte da população, seja pelo alto preços dos ingressos ou mesmo pela concentração de salas em shoppings ou áreas nobres. Além disso, apesar de a principal  fonte de financiamento ter como origem os recursos estatais, via leis de incentivo e abatimento fiscal, o poder de decisão  sobre a liberação de tais recursos está nas mãos de grandes empresas. Mas o que é que a análise proposta tem a ver com isso? Tudo.

As representações de personagens e/ou fatos históricos estão intimamente arraigados ao momento da sua produção. Na década de 70, com o recrudescimento da censura após o AI-5, muitos cineastas utilizaram a alegoria como forma de expressão. Para isso, a biografia de personagens históricos e a adaptação literária foram os principais instrumentos não só no cinema, onde Os Inconfidentes (1972), de Joaquim Pedro de Andrade, é um exemplo emblemático. Do outro lado da moeda, em consonância com os interesses do regime militar e a efeméride do sesquicentenário da Independência, Independência ou Morte (1972), de Carlos Coimbra, traz consigo marcas evidentes do período em que foi realizado, como o projeto de nação tendo como alicerce o ufanismo, em um momento em que o país enfrentava o auge repressivo da ditadura civil-militar.

Na década de 90, o filme histórico serviu também como chancela de valor cultural para uma atividade que se encontrava desacreditada e com a sua estrutura de produção esfacelada. No entanto, ávida em dialogar com o público e se reafirmar enquanto produto cultural capaz de render dividendos, as representações da Historia no cinema brasileiro, com raras exceções, eliminou a contradição. Entre o modelo televisivo e a narrativa hollywoodiana, este cinema colocou em primeiro plano a fábula, a compreensão simplória dos fatos e relegou ao papel de figurante no canto da tela a compreensão do momento histórico que retrata e quais as conseqüências destes no processo histórico.


[1] Frase do importante crítico de cinema Serge Daney, figura de destaque no Cahiers du Cinema nas décadas de 70 e 80. Apud  AVELLAR, José Carlos. “Filmes em ligação direta“. Folha de São Paulo, Caderno Mais, no dia 18/12/2005.

[2] Após chegar a ocupar 35% do mercado  na década de 80, com o desmonte das estruturas governamentais de apoio ao cinema, em 1992 os filmes nacionais respondem por apenas 0,05%  do mercado de exibição no Brasil, sendo que neste ano apenas três filmes nacionais foram lançados. FONTE: Secretaria do Audiovisual e Filme B (http://www.filmeb.com.br).

[3] A Lei do Audiovisual permite aos contribuintes o desconto de 100% do valor investido em projetos audiovisuais previamente aprovados pelo Ministério da Cultura, até o limite de 3% do Imposto de Renda a pagar, mediante a aquisição de cotas representativas de direitos de comercialização sobre as referidas obras, desde que estes investimentos sejam realizados no mercado de capitais, em ativos previstos em lei e autorizados pela Comissão de Valores Mobiliários. Além da renúncia fiscal, as empresas que investirem na produção audiovisual brasileira podem reduzir o valor total investido como despesa operacional, caso seja tributada com base no lucro real, e ainda fazem uso de um dos instrumentos mais eficientes de divulgação, o marketing cultural proporcionado pela associação da marca ao filme. O investidor ainda pode receber uma fatia dos lucros proporcional à quantidade de certificados adquiridos, obviamente, se o filme obtiver lucro.

[4] Entre os anos de 1994 e 2002 foram investidos US$ 421.023.728,00 através das leis de incentivo, o que dá uma média de investimento anual superior a US$ 46 milhões, superando em muito os valores investidos nos anos 80, quando o aporte financeiro estatal ficou na casa do US$ 13 milhões e o market share do filme nacional atingiu a marca histórica de 36%, em 1982, e se manteve na casa dos 30% até 1984.

[5] ROSSINI, Miriam de Souza. “O Cinema da Busca: discursos sobre identidades culturais no cinema brasileiro dos anos 90”. In: Revista Famecos. Porto Alegre, quadrimestral,  nº 27, ago. de  2005, p. 27.

[6] MIRZOEFF, Nicholas. An Introduction to Visual Culture. London, Routledge, 1999, p. 1.

[7] A historiadora Cristiane Nova sistematiza seis pontos ao analisar trabalhos que relacionam  imagem e história  produzidos nas três últimas décadas do século XX: 1. a história da imagem; 2. a imagem como agente da história. 3. a imagem como testemunho do presente. 4. a imagem como modalidade de discursos sobre o passado. 5. a produção de discursos audiovisuais como meio de expressão do historiador. 6. a utilização das imagens no ensino da história. Ver NOVA, Cristiane. “A ‘História’ diante dos desafios imagéticos”. In: Projeto História – História e Imagem.PUC/SP, Departamento de História, nº 21, novembro, São Paulo, EDUC/FAPESP, 2000,  p. 144-145.

[8] FERRO, Marc. “O filme: uma contra-análise da sociedade?”. In: FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1992, pp 70-115, p. 86.

[9] Idem, p. 88.

[10] Ver BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG,  2005. SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. Tradução: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e Cidadãos. 4 ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1999. HALL, Stuart. Identidades Culturais na Pós-modernidade. Rio de Janeiro:DP&A Editora, 1997.

[11] PRYSTHON, Angela. “Rearticulando a tradição: rápido panorama do audiovisual brasileiro nos anos 90”. Revista Contracampo. Niterói, n. 7, 2002, p. 65 – 78. p. 67.

[12] Ver DUARTE, Regina Horta et al. “Imagens do Brasil: o cinema nacional e o tema da Independência”. Lócus, Revista de História, Juiz de Fora, Núcleo de História Regional / Departamento de História / Arquivo Histórico / EDUFJF, 2000. v. 6, n. 1. pp. 99-115.

[13] BUTCHER, Pedro. Cinema brasileiro hoje. Publifolha, São Paulo: 2005, p.26.

[14] Ver o artigo “Este país não presta”. CALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil!: Notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. São Paulo, Ed. Escuta, 1991 pp-13-15.

[15] Idem, p. 14.

[16] ORICCHIO, Luiz Zanin. Op. Cit., 2003, p.40.

[17] Ver Idem, p. 41.

[18] Depoimento de Carla Camurati: “Carla Camurati: Motivo da indicação”. Acesso online em 23 de jun de 200. In: http://premioclaudia.abril.com.br/1996/camurati.html., 1996).

[19] Ver site do Observatório da Imprensa.  In: <http://www.observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/ artigos/asp0602200295.htm>. Acesso em 22 de dez de 2006.

[20] Idem.

[21] VAINFAS, Ronaldo. “Carlota: caricatura da história”. In: SOARES, Mariza de Carvalho & FERREIRA, Jorge (Orgs). A História vai ao cinema.  Rio de Janeiro: Ed. Record, 2001 apud ORICCHIO, Luiz Zanin. Op. Cit., 2003,

p 40-1.

[22] Ver ZIMMERMANN, Tânia Regina, e MEDEIRO, Márcia Maria de. “Biografia e Gênero: repensando o feminino”. In: Revista de História Regional (1): 31-44 , Verão 2004, p. 39.

[23] A autora se refere aos trabalhos biográficos de perfil acadêmico, como as obras de Julia M. Rubio, João P. Calógeras, Manuel de Oliveira Lima, Marcus Cheke e Pedro Calmon. In: AZEVEDO, Francisca L. N. de. “Biografia e Gênero”. In. GUAZELLI, César A.B.; PETERSEN, S.R.F, SCHMIDT, B.B.; XAVIER; R.C. (org.)  Questões de Teoria e Metodologia. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000, p. 144.

[24] AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de. Carlota Joaquina na corte do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 155.

[25] AZEVEDO, Francisca L. N de. Op. Cit., 2000, p. 136.

[26] Ver depoimento de Sérgio Rezende  in: NAGIB, Lúcia. O Cinema da Retomada: Depoimentos de 90 Cineastas dos Anos 90. São Paulo: Editora 34, 2002., p. 383.

[27] Ver ORICCHIO, Luiz Zanin. Op. Cit., 2003, p. 53.

[28] BENTES, Ivana. “Cosmética da fome”. Artigo publicado no Jornal do Brasil em 08 de julho de 2001, Caderno B, p. 4.

[29] BENTES, Ivana. “Cinema empresarial chapa-branca”. Jornal do Brasil. 29 de jul. de 2001. Rio de Janeiro. Caderno B, p.10. Tréplica ao artigo resposta assinado por Marisa Leão, produtora e esposa de Sérgio Rezende, em resposta ao artigo “Cosmética da Fome”.

[30] Ver Revista Contracampo, ed. 59, acesso online: <http://www.contracampo.com.br/59/ondeandavoce.htm>.

[31] Idem.

[32] Ver artigo de GARDNIER, Ruy. “Nada sobre Mauá”. Acesso online em  <http://www.geocities.com/contracampo/mauaoimperadoreorei.html>.

[33] Para saber mais sobre o filme épico no cinema brasileiro ver PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. “Épico, esse transparente objeto do desejo”. In: O Futuro do Pretérito: As representações da história em filmes brasileiros produzidos durante a ditadura militar. Disponível online: <http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0310328_05_cap_02.pdf>.

[34] CARRIÈRE, Jean-Claude, A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995, p. 127.

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Este post tem 3 comentários

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    Jorge Nóvoa

    Oi Sandro,

    Você é aquele rapaz que conheci na FFCH parente de Santabárbara? Em sendo ou não dê uma lida nos artigos que publicamos e se inscreva no nosso Simpósio Temático de Cinema-História, número 46 da ANPUH (www.anpuh.org). Está simplesmente delicioso.

    Prazer.

    Abraço,

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