*Felipe Carrelli
Não costumo ler muitas informações sobre um filme antes de assisti-lo, no máximo uma sinopse. No caso de Biutiful (direção de Alejandro González Iñarritu) a única informação que sabia antes de entrar na sessão era a filmografia do diretor: 21 gramas, Amores Brutos, Babel. Gostei da trilogia e, portanto, comprei o ingresso.
O fato é que na primeira meia hora do filme eu tive certeza que o filme se passava em Buenos Aires. Aquele sotaque castelhano, quase portenho; garotos jogando futebol nas vielas sujas; uma miséria escura do mundo subdesenvolvido, contrabando, pirataria, sistema de semi escravidão e exploração dos trabalhadores chineses. Sem dúvida, só poderia ser Buenos Aires, algum bairro perto de Boca ou no máximo Montevidéu. Então, um plano mudou tudo.
Uxbal (Javier Bardem) é um atravessador por profissão e médium nas horas vagas, depois de mais um dia de intensa negociação com imigrantes africanos ilegais, policiais corruptos, chineses exploradores, seu irmão trambiqueiro e sua ex-esposa bipolar, ele observa o por do sol laranja, empoeirado e entrecortado pela precária fiação dos postes. Bem ao fundo, a revelação: O Templo Expiatório da Sagrada Família. O principal símbolo turístico de Barcelona. A principal obra de Antoni Gaudí. Catedral cuja construção começou em 1883, ainda não está terminada. A exuberância que relata o desperdício e a luxúria espanhola. Cabe aqui então uma pequena, porém pertinente, digressão.
Nesse mês de fevereiro, o ex-prefeito de Curitiba por três vezes, e ex-governador do Paraná por duas, Jaime Lerner foi o entrevistado do programa Roda Viva na TV Cultura. O arquiteto e urbanista é uma das principais referências mundiais em planejamento urbano e defende que as cidades devem tornar-se sustentáveis. Em sua entrevista, Lerner comentou de passagem que a Espanha possuía três aeroportos imensos na região das ilhas canárias, dois deles aeroportos internacionais em Tenerife. Segundo ele, apenas um seria suficiente para a demanda local, e que por essas e outras a Espanha estaria colhendo os frutos podres da crise econômica mundial.
Esse desperdício não é retratado no filme, também não é o tema direto. Vemos dois planos da catedral Sagrada Família em construção. Na primeira vez, aparece ao longe e também divide espaço com os enormes guindastes que constroem suas torres, inconfundíveis mesmo a essa distância. No segundo, logo depois, um plano mais abstrato, fechado em uma das torres, mas que está focado em um cabo elétrico que corta o quadro na diagonal. Para o mundo de Uxbal e os outros personagens, a igreja é só uma paisagem longínqua e desfocada de sua realidade. Mas talvez as conseqüências (desta crise) sejam bem mais palpáveis. A pobreza e a luta pela sobrevivência em meio ao desemprego que assola mais de 20% da população espanhola (final de 2010) são relatadas de forma impecável no filme.
A contradição de Barcelona é a contradição de seu personagem principal. Uxbal parece ser como Barcelona em vários momentos. Biutiful conta a historia de um homem que caminha para o fundo do poço. Seus esforços em busca da redenção aumentam ainda mais seu inferno astral. Um herói trágico: mercenário solidário, pai dedicado, mas nem um pouco delicado com seus filhos, um médium oportunista. Para cuidar de seus dois filhos pequenos, Mateo e Ana, Uxbal se desdobra entre as oportunidades que a pobreza revela. A narrativa, apesar de seguir um personagem, apresenta um esquema parecido com os filmes anteriores do diretor.
Uxbal está com câncer terminal e tem apenas dois meses de vida para ajeitar suas pendências. Sua amiga e conselheira (que também possui o dom de conversar com os mortos) parece ser a única personagem ainda não afetada pela miséria psicológica que assola a comunidade Tentando arrumar sua vida, Uxbal entra cada vez mais em um labirinto sem volta. Sofre com sua ex-esposa bipolar Marambra. Seu amor em relação a ela também é bipolar, variando entre a afeição do passado e o ódio das diversas recaídas de Marambra que insiste em não tomar os medicamentos. Ela já esteve internada, mas saiu da clínica e agora tenta recuperar a confiança do marido. No entanto, suas recaídas são constantes e levam a atos de auto flagelação, tendo inclusive relações com o irmão de Uxbal, Tito. Este é um aproveitador, como seu irmão, mas difere daquele, pois já não tem escrúpulos nenhum. Sua vida consiste em drogas, dinheiro, traição e sexo. Sua relação com o irmão é meramente comercial, e ambos estão envolvidos com a exploração de trabalho imigrantes ilegais para a construção civil. Seu único elo familiar com Uxbal é o túmulo de seu pai, que será vendido a uma empreiteira para a construção de uma área comercial. Uxbal, por sua vez, tem uma relação próxima a seu pai, morto no México aos 20 anos de idade quando fugiu da ditadura que Franco impunha a Espanha. Sua única lembrança do pai nunca conhecido é uma foto antiga. Após descobrir seu câncer de próstata, Uxbal tem medo que seus filhos esqueçam seu rosto.
O personagem de Javier Bardem (papel que o premiou como o melhor ator em Cannes 2010) tem uma relação muito próxima com imigrantes ilegais. Uma relação contraditória, que mescla ganância e afeição. Em um momento, chega a ser preso por tentar evitar que seu companheiro africano fosse espancado por policiais. Em outro momento, porém, economiza ao comprar aquecedores a gás (o mais barato da loja) para aos imigrantes chineses que trabalham e dormem sob o frio em um porão escondido. A situação social impõe uma relação de ganância e egoísmo enquanto que os valores humanos de cada personagem se esforçam para aparecer perante tantas dificuldades. A direção de fotografia consegue dar o tom das cenas com muita propriedade. Na única cena em que existe uma relação mais amena e na qual o tom de felicidade e paz se emprega é quando Uxbal, sua mulher e seus filhos estão à mesa comendo sorvete com as mãos. Eles se divertem, sonham com o futuro e projetam uma viagem. Contam também sobre o passado, e como haviam se conhecido. Ao fundo, o por do sol tinge a cena com um laranja forte, quase dourado. Temos então um contraponto com o restante da cor do filme, sempre pálido, escuro e com pouquíssimas cores quentes.
Biutiful é um filme muito comovente. Entramos no universo do personagem principal. O diretor consegue reproduzir as angustias e tristezas com pequenas sutilezas. Uma obra muito interessante e atual, retratando uma situação contemporânea que a comunidade européia não estava disposta a enfrentar tão cedo .
*Felipe Carrelli é graduado em Imagem e Som pela UFSCar.