A obra de Chris Marker pode ser facilmente lida a partir da lógica do trabalho “engajado”, seja por alguns temas que interessam ao autor, seja pela contundência e paixão com que Marker assume algumas questões políticas em seu trabalho. Neste artigo pretendo analisar alguns caminhos de Marker em sua construção, os procedimentos de compreensão dos movimentos sociais do seu tempo, sua leitura desses movimentos sociais, o lugar que o autor assume para filmar esses movimentos e sua relação com a história.
Ainda neste início é necessário inquietar esta idéia do político que atribuem a Marker, e que ele mesmo toma a fala aqui para fazê-lo:
Esta é uma boa oportunidade para eu me livrar deste rótulo. Muita gente acha que “engajado” significa “político”, e a política, a arte do compromisso (que é o que deveria ser porque se não há compromisso, existe apenas a força bruta, da qual temos tantos exemplos atualmente), me entedia profundamente. O que me interessa é a história. A política me interessa apenas na medida que carrega a marca da história no presente. Com uma curiosidade obsessiva (que eu identifico com alguns dos personagens de Kipling, com o Elephant-boy de “Just-so stories”, por sua curiosidade insaciável), eu continuo a perguntar: como as pessoas conseguem viver neste mundo? E vem daí a minha mania, de ver como as coisas são neste lugar ou naquele. Por muito tempo, aqueles que eram melhor posicionados para “ver o que estava acontecendo”, não tinham acesso aos meios para dar formas às suas percepções, e a percepção sem forma é enfadonha. Agora, de súbito, esses meios estão acessíveis. [1]
As questões que interessam a Chris Marker me orientam nessa tentativa de discutir sua relação com os movimentos sociais e essa postura de assumir um lugar de entendimento. Chris Marker busca compreender as experiências das pessoas em lugares diferentes e em momentos diferentes da história, e felizmente o seu trabalho parece entender a complexidade de debruçar-se sobre experiências de vida, experiências de luta, e demonstra isso com uma grande filmografia dedicada a isso. Aqui me concentro em uma pequena parte dessa filmografia que toca de forma variada na questão dos movimentos sociais e das experiências de homens e mulheres nesses movimentos.
No filme “2084”, de 1984, Chris Marker filma o centenário da lei que promoveu o movimento sindical francês. Em um pequeno laboratório, Marker registra a recepção de um filme vindo do futuro, em que um robô diz sobre o bicentenário dessa lei. Com isso, o autor dá cor ao seu projeto, quando coloca seus personagens e o espectador diante do centenário da lei, e das possibilidades do bicentenário, faz com que seja preciso fazer uma balanço do presente e dos ecos da experiência sindical para a contemporaneidade e para o futuro.
O filme tem como mote este trânsito entre passado, presente e futuro, mas para entender e fazer um balanço do vivido, o autor nos questiona: “O que você ama? O que você odeia?” Ou em outras palavras, a partir das próprias palavras dele para o jornal Liberation: “Como conseguimos viver no mundo em 1884, em 1984 ou como viveremos em 2084?”
Sim, Chris Marker se interessa pela História, no que ela nos informa sobre mudança, sobre continuidade, e sobre seu emaranhado de rupturas e permanências. E no seu cinema, Marker trabalha a linguagem para lançar esse olhar sobre o outro, sobre si, sobre o individual que movimenta o coletivo e contribui aqui nesta análise de sua relação com os movimentos sociais, que quer dizer também essa sua relação com a História.
Junto com aqueles que recebem o filme que anuncia o futuro, Chris Marker faz um balanço do presente, se pergunta junto aos personagens sem nome sobre o que temos feito. A provocação vem feita a partir destas perguntas desconcertantemente simples. Esse é o ponto de partida de Marker para ler a experiência sindical e seus ecos, e que acredito ser também uma leitura dos ecos das experiências de mobilização social que em outros momentos Marker já filmou e dialogam como este filme feito também dos seus outros.
A partir das perguntas feitas no filme o autor propõe algumas hipóteses para entender como vivemos a partir de alguns quereres e a partir de algumas rejeições. Quais os caminhos de mudança e continuidade diriam sobre nós naquele tempo? As hipóteses que Chris Marker formula dizem sobre uma certa desorientação na compreensão do presente. Uma das hipóteses diz de uma crise, de uma crise de valores e de interesses. E a partir dessas respostas Marker envereda para uma leitura da experiência sindical. A intenção de Marker parece ser de entender como os sindicatos reivindicam esses quereres, que lugares assumem? O autor refere-se a eles na obra como “organizações poderosas que não inventam uma outra sociedade”, mas que se constituem e se constroem ao se localizarem diante dos poderes estabelecidos. Algo que não parece constante para Marker vendo que o sindicato, segundo o filme, teria se perdido de interesse e de foco. Teria em algum momento da história e hoje em dia perdido “a confiança de classe em que já foram maioria”. Marker critica a forma como o sindicato, ou a experiência francesa do sindicato, tenha sido constituída de uma fragmentação.
Com essas observações Marker segue na sua costura imperfeita de uma provocação sobre o vivido, e também sobre o futuro. A partir da segunda questão “O que você odeia?” Chris Marker discute em “2084” as possibilidades futuras desse ódio: “Facismo? Stalinismo?”
Como os conhecemos são perigosos, é previsível, ou o que é menos é que a técnica substituiu a ideologia.
A tecnologia: Quem deve controlá-la? Quem a possui? – As grandes perguntas do final do século XX ao não tê-lo entendido. Temos deixado o governo do futuro nas mãos de uma nova espécie: Os tecnototalitários. Temos pago um alto preço, recordemos as grandes revoltas operárias dos anos 80 e 90 e sua repressão.
Apesar de reconhecer a crise, Marker traz à tona um discurso de esperança a partir do que a tecnologia oferece no presente e no futuro anunciado. Em “2084” a narração nos diz que apesar de ao longo dos anos virmos deixando o poder na mão do novo grupo que se forma, dos “tecnototalitários”, a tecnologia ainda pode ser considerada um lugar de esperança, isso porque para ele “a tecnologia não é para os que esperam uma forma nova e retorcida de poder. É uma fabulosa força de transformação do mundo”. E com isso o autor já sinaliza para aqueles que viriam a ser os movimentos sociais que se baseiam e se localizam no mundo digital, ou no ciberespaço, na luta por mais liberdade através da tecnologia para de alguma forma impedir que ela seja uma ferramenta dos totalitários, mas sim uma ferramenta de transformação social. O filme “2084” é feito da compreensão inquieta de um tempo, com a possibilidade de um futuro anunciado pelo robô no filme. Chris Marker argumenta que apesar daquele ser um futuro anunciado, e do robô ter sido programado para falar do bicentenário, o que ainda vai e pode ser vivido não está programado: “Ainda temos cem anos pela frente”.
Quanto a esta preocupação de Chris Marker Robert Grélier no provoca:
A sua preocupação seria mais a de dar uma atenção particular à evolução das pessoas que acompanha e do mundo em que vive. Isto para projetar se necessário desejos de mudanças. Mesmo se as promessas de “futuro radioso” se substituíram às desilusões e angústias, às dúvidas. Inevitáveis destinos ou fortuitos encontros com a História?[2]
Esses fortuitos encontros com a História parecem inevitáveis e desejados por Marker, não só a partir de sua fala sobre isso, mas sobre a forma como sua obra se alimenta da História e a inquieta, principalmente quando reflete sobre a memória para pensar a História e as experiências que ele deseja entender e mostrar.
Quando Marker faz esse movimento de partir do presente para reinventar o passado e desenhar um futuro ele encontra o ofício de historiador com suas imagens e diz sobre seu tempo de uma forma muito particular. Ou como intitula Robert Grélier um de seus textos sobre ele, trabalha em um “futuro do passado”, movimento muito característico dele que remete ao anjo da história de que um dia nos falou Walter Benjamin: que tem o rosto virado para o passado, mas que devido a uma tempestade é impelido para o futuro com as ruínas e estilhaços do passado presos as suas asas[3]. Esse parece ser o movimento de Marker, esse deve ser o “futuro do passado” a que se referiu Robert Grélier, esse desejo de sacudir o presente e o futuro com as marcas e experiências do passado.
Esta leitura de seu tempo e do futuro seguido dos estilhaços do passado em suas asas está presente também em “Le fond l’air est rouge – Grin without a cat” de 1976. Neste filme Marker se inscreve mais uma vez no debate sobre os movimentos sociais, e os acompanha em partes diversas do mundo enfocando nos movimentos de 1968. Chris Marker traz imagens dos movimentos desde a revolução cubana, às “mãos frágeis” que reivindicavam o fim da violência e covardia que representava a Guerra do Vietnã. Marker monta seu filme também com imagens truculentas desses eventos, como o depoimento do soldado americano que naturaliza o ato de jogar uma bomba de napalm em solo vietnamita.
Enquanto “Grin without a cat” tem a marca de um cineasta firmemente enraizado na história da esquerda, e de uma geração profundamente marcada pelo stalinismo, o filme emerge também das práticas sociais em que Marker estava envolvivo, juntamente com qualquer número de coletivos e individuais de militantes de projetos cinematográficos mais na década anterior. Uma das grandes realizações de “A Grin without a cat” é levar essas práticas sociais e torná-los como estratégias formais.[4]
O período dizia sobre o ressignificar de algumas destas questões de mobilização e representação, Marker está inscrito no debate e nos movimentos sociais daquele período. Participa, e também escreve a história dos movimentos sociais daquele período. À medida que inquieta questões daquele tempo, Chris Marker faz com que elas sejam revistas, repensadas, e pensadas através do que as imagens tem a dizer sobre elas. Qual o lugar da militância naquele período? De que se constituem os desejos destes que levantam suas mãos frágeis no pedido de paz e de justiça social? Ou ainda como nos questiona Paul Grant ao falar de “Le fond”: “A questão que “Le fond de l’air est rouge nos deixa está relacionada a docilidade do objeto: Como podemos fazer dessa cacofonia poliocular o que nós queremos?”[5] . Algo que diz sobre as possibilidades de dizer e significar esse território de tão variados desejos que são os movimentos sociais e os impulsos individuais unidos no coletivo. A imagem da “cacofonia poliocular” de Grant parece necessária para falar desta obra de Marker, e do apanhado de vozes e desejos que ela deseja mostrar.
Algumas das imagens mostradas e montadas em “Le fond” são filmadas por Chris Marker, mas ele toma para si também imagens de outros na sua construção. Com isso traz questões sobre o uso da imagem, e a questão da autoria ao subverter os usos delas neste e em outros trabalhos. Essa desobediência do uso da imagem encontra o que naquele período também viria a defender Michel de Certeau sobre os usos da imagem, e sobre as possibilidades dos usuários de ressignificá-la, como faz Marker. Dá às imagens de arquivo um outro caráter ao apropriá-las para a sua construção. Certeau nos diz ainda sobre isso:
A presença e a circulação de uma representação não indicam de modo algum o que ela é para os seus usuários. É ainda necessário analisar a sua manipulação pelos praticantes que não a fabricam. Só então é que se pode apreciar a diferença ou a semelhança entre a produção da imagem e a produção secundária que se esconde no processo de sua utilização.[6]
A obra de Marker demonstra o seu interesse em desconstruir esses lugares assegurados de autoria. A apropriação que faz das imagens é para ele uma apropriação da realidade a partir do lugar de onde ele fala e das questões que deseja discutir. A imagem para Marker é uma ferramenta de desassossego do estabelecido e uma ferramenta de escrita da “história à contrapelo”[7], como nos propôs um dia Walter Benjamin.
Isso nos leva a obra de 1968 chamada “À bientôt, j’espere” em que Marker traz à tona a experiência de trabalhadores da fábrica de Rodhiaceta em Besançon, na França, e a forma como se constituem como movimento sindical. À primeira vista seria uma documentário formal sobre a experiência trabalhadora durante a Greve de Rhodia na França, mas Chris Marker construiu seu filme com imagens feitas por ele e imagens feitas pelos próprios trabalhadores a partir de suas reivindicações de melhores condições de trabalho e dessa formação como grupo, e como movimento. E o resultado é um registro emocionante do fazer-se, como disse um dia E.P. Thompson, daqueles trabalhadores, de um constituir-se que a câmera de Marker e a câmera dos próprios trabalhadores registra sensivelmente. Câmera essa daqueles que sabem que a contundência daquelas experiências é difícil de abarcar, que não basta ir somente às fábricas, ou ir somente às greves para entender essas experiências. No filme vamos às casas desses trabalhadores, ouvimos as experiências das mulheres naquele momento, vemos suas crianças e com isso nos aproximamos do sentido daquelas experiências, das expectativas, dos receios, da confusão e insegurança no período.
Depois da feitura desse filme, estimulados por Marker, e cientes da necessidade de significar seu cotidiano, os trabalhadores montaram grupos de cinema em que passaram a filmar suas impressões e experiências como trabalhadores naquela região, os chamados Grupos Medvedkine.
Acredito que para entender o trabalho de Chris Marker em suas diversas possibilidades é preciso reconhecer seus procedimentos e seu projeto de cinema muito pessoal que se desloca em relação ao coletivo, algo que diz principalmente sobre o seu cinema voltado para os movimentos sociais. Chris Marker se esconde, se camufla, inventa codinomes mas ao mesmo tempo se despe e se escancara ao falar tão pessoalmente sobre aspectos do cotidiano e sobre questões da vida coletiva. Ou como diz Paul Grant em seu texto sobre “Le fond l’air est rouge”, que Marker “opera certas estratégias como modo de representação a partir de uma dialética entre o singular e o coletivo”. Sua forma de se esconder parece ser sinal para dar lugar a essas outras tantas vidas que cruzam seu caminho e de que ele quer contar, dar voz, ou dar um olhar.
Em 2009 Chris Marker fotografou o movimento de primeiro de maio em Paris, e sob o codinome de Sandor Krasna dispôs as fotos em uma página de compartilhamento na internet. Nesta coleção ele fotografa as pessoas quase sempre de perto, seus rostos, expressões variadas, sérias, sorridentes, grupos de manifestantes, e mais uma vez demonstra que seu desejo de registrar essas mobilizações persiste. Marker ainda se mostra um interessado por esses rostos, olhares e expectativas únicas que sua câmera jamais irá abarcar, mas mesmo assim, de alguma forma, ele com ela busca e partilha. E acerta. Seus filmes, suas fotografias não são uma tese, nem um tratado, são uma compreensão.
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo. Brasiliense, 1985.
GRANT, PAUL. A Grin Without a Cat/Le Fond de l’air est rouge in: Senses of Cinema. Disponível em:< http://www.sensesofcinema.com/2009/52/a-grin-without-a-cat-le-fond-de-lair-est-rouge/> Acessado em 11/01/10.
Grélier, R. Langman, U.; et alii. O Bestiário de Chris Marker. Lisboa: Horizonte, 198
FILMOGRAFIA
MARKER, Chris. 1984. 2084: Centenaire du Syndicalisme. Video-Clip pour une reflexión syndicale et pour le plaisir. França. cor. 11 min..
MARKER, Chris. 1968 À bientôt j’espere. França. cor. 45 min..
MARKER, Chris. 1977 Le fond l’air est rouge. França. cor. 177 min..
Tainah Negreiros é historiadora. Tem trabalhos voltados para a leitura histórica de obras cinematográficas e de literatura. Possui experiência em projetos educacionais e produções independentes que dialogam com a memória, o tempo e a afetividade. Graduada em História pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).
[1] MARKER, Chris. Entrevista. Liberátion. Publicada pelo jornal O Globo online. Disponível no endereço: <http://oglobo.globo.com/blogs/ny/post.asp?cod_Post=76215>. Acessado em Julho de 2009.
[2] GRÉLIER, Robert. in. Bestiário de Chris Marker. Lisboa. Horizonte. 1986. p.16
[3] BENJAMIN. Walter. Sobre o conceito de História. in. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo. Brasiliense, 1985. p. 225.
[4] GRANT, PAUL. A Grin Without a Cat/Le Fond de l’air est rouge in: Senses of Cinema. Disponível em: < http://www.sensesofcinema.com/2009/52/a-grin-without-a-cat-le-fond-de-lair-est-rouge/> Acessado em 11/01/10.
[5] Idem 4.
[6] CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano.
[7] BENJAMIN. Walter. Sobre o conceito de História. in. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo. Brasiliense, 1985. p. 225.
Muito belo este texto, parabéns Tainah! Fiquei na expectativa e curiosidade de acompanhar o olhar de Chris Marker sobre estes movimentos, tão caros para a história em seus caminhos.