Embora no cinema, este seja um tema controverso, na literatura há consenso sobre a possibilidade de se fazer a biografia de alguém, mesmo com a não resolução definitiva de todas as questões epistemológicas e filosóficas envolvidas, questões estas que eventualmente turvam este consenso. De todo o modo, as “biografias escritas” existem, pertencem a um gênero literário e têm, assim, seus cânones. A autobiografia, uma derivação das biografias, acabou por se constituir em gênero literário próprio – gênero que, como observa LEJEUNE (2008, p.14), deve estar contido na seguinte definição: “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”. Nesta definição, para ele,
… entram em jogo elementos pertencentes a quatro categorias diferentes:
1. Forma da linguagem:
a) narrativa;
b) em prosa.
2. Assunto tratado: vida individual, história de uma personalidade.
3. Situação do autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa real) e do narrador.
4. Posição do narrador.
a) identidade do narrador e do personagem principal;
b) perspectiva retrospectiva da narrativa. (LEJEUNE, 2008, p. 14)[i].
Da mesma forma com o que acontece com as biografias, admite-se ser possível a escritura de uma autobiografia e, mesmo com todas as ressalvas, especialmente no que diz respeito a uma possível carga ficcional, as autobiografias também existem e encontram seu lugar ao sol.
Uma das questões problemáticas, no que se refere às biografias e, por tabela, às autobiografias – para além das questões éticas envolvidas, como a de seu estatuto de fidelidade – diz respeito ao meio e à forma como elas são produzidas e publicizadas. No caso das biografias literárias, o meio mais comum é o papel, ganhando existência como livro, livrete, jornal, etc. – podendo ser também escrita e/ou publicada em meio eletrônico. A forma é a língua escrita. Como a forma e o meio nas biografias (e autobiografias) não correspondem à forma e ao meio em que acontece a vida mesma, com seu gestual, atos, performances, rituais, interações, modos de vestir e de estar, modos de consumo, etc., cada elemento destes correspondendo, como observa DOUGLAS (1979, pp. 31-45), a um tipo de linguagem – linguagens estas que em interação formam o que podemos chamar uma linguagem da vida – torna-se evidente que qualquer biografia de uma pessoa não corresponderá nunca à vida desta mesma pessoa. O que pode acontecer é um relato literário de partes desta vida, ordenados através de uma certa lógica de sentido, como fala BOURDIEU (1996, pp.184-185), compondo um todo significativo, relato este, que canonicamente é linear, por ter a passagem do tempo como fio condutor e, não raro, que obedece a uma lógica de causa e efeito. Como bem observa BOURDIEU (idem), as descontinuidades da vida e a aleatoriedade dos eventos comumente são elodidos neste tipo de relato.
E estes são apenas alguns dos problemas de apenas uma das dimensões das biografias (e autobiografias) literárias. Neste sentido, como observa Jean-Claude Bernardet, em seu blog, as biografias necessariamente seriam ficções:
… qualquer relato de vida implica em ficção, sim, porque a vida é inenarrável (por não ter a estrutura da linguagem verbal – retomo aqui argumentos medievais de Guilherme de Ockam …). Portanto qualquer relato de história de vida implica moldar a vida conforme a sintaxe, o vocabulário e as estruturas narrativas disponíveis. Neste sentido qualquer autobiografia totalmente verídica e sincera é pura ficção[ii].
O que Bernardet escreve, a meu ver, tende a confundir o que é uma vida com o que é a escrita sobre aquela vida, pois uma vida é narrável, sim. Uma delas é o referente: a vida tal como ela é (ou foi) no mundo físico e histórico em que vivemos. A outra é um relato significativo sobre aquela vida que existe ou existiu e que tem sempre um componente ficcional, pois, como escreveu LEITE (1979, p.25), necessariamente “toda biografia é trabalho de interpretação e, portanto, de imaginação criadora”, acrescentando que nenhuma biografia é definitiva, sendo que diferentes biógrafos poderiam (e provavelmente fariam) duas biografias diferentes sobre o mesmo biografado a partir dos mesmos dados.
Aqui, não vou me estender especificamente sobre as autobiografias ou sobre outras questões (e discussões) que dizem respeito a obras literárias biográficas e ficcionais, pois minha intenção é discutir a possibilidade, ou impossibilidade, de se fazer obras autobiográficas no cinema. Por enquanto, então, basta balizar a seguinte posição: as biografias (e autobiografias) são perfeitamente factíveis como obra escrita, embora NUNCA correspondam nem à vida e nem descrevam rigorosamente como a vida é, com suas descontinuidades, hesitações e aleatoriedades.
Marcada esta posição, vamos à possibilidade ou impossibilidade de uma autobiografia ser filmada, o que será feito sem a profundidade que eu gostaria, tendo em vista o espaço reduzido que este artigo necessariamente tenha que ter.
Voltando à questão: de fato, uma biografia filmada, da qual a autobiografia filmada seria uma possível derivação, traz em si uma série de problemas, alguns (quase todos) comuns à escrita literária de uma biografia, outros específicos deste gênero cinematográfico, a começar pelo estatuto da personagem: não é aquela personagem que está ali projetada nas telas, mas sim uma atriz ou um ator que a representa – e quem incorpora a personagem em geral é muitíssimo diferente daquela que viveu (ou vive) no mundo físico e histórico em que vivemos. Outro problema, tão sério quanto aquele, é o da reconstituição histórica e cenográfica, o que diz respeito ao ambiente histórico-social em que viveu a personagem referente. Em filmes que exigem uma reconstituição histórica, por melhor que seja feita a cenografia, é difícil ela não parecer um tanto artificial, frequentemente certinha demais, arrumadinha demais, o que se estende ao vestuário das personagens[iii]. Aqui também há um pacto: quem assiste um filme destes sabe que as coisas não se passaram bem assim, sabe que há representação e uma boa dose de ficção. Não que a natureza ficcional do cinema seja maior do que a das biografias textuais; apenas é mais explícita e dá muito menos margem a interpretações. Sobre a personagem: por exemplo, se eu ler uma biografia de Trostki, a imagem que terei dele, embora extra-textual, corresponderá à sua imagem física, já vista em fotografias. No cinema, haverá uma personagem, provavelmente não russa (ou melhor: que não é a de um judeu russo). Se eu ler uma biografia do Imperador César, também terei presente (embora de forma extra-textual) uma imagem bastante aproximada dele, pois sua figura foi eternizada em mármore e bronze, o que é bem diferente de ver um César na tela, falando inglês contemporâneo, interpretado por um ator anglo-saxônico, em filmagens feitas em estúdio.
Para testar a possibilidade de um filme ser autobiográfico, como uma primeira aproximação e provisoriamente, vou tomar de empréstimo aquela definição para autobiografia formulada por Lejeune, e já referenciada mais atrás – e que originalmente diz respeito a obras literárias. Relembrando: para uma obra ser autobiográfica tem que cumprir simultaneamente três condições: deve ser uma narrativa retrospectiva em prosa; ter tripla identidade de nome entre autor, narrador e personagem; e cumprir um pacto autobiográfico entre autor e receptor (pacto de veracidade).
Para este teste, escolhi três filmes: 8 & ½, de Federico Fellini, que dizia ser este filme autobiográfico; Santiago, de João Moreira Salles; e Corumbiara, de Vincent Carelli.
O filme 8 & ½, tem Marcello Mastroianni interpretando Fellini em plena crise de criatividade. Foi uma obra toda filmada nos estúdios da cinecittà, em Roma. A Via Veneto, que se vê no filme, foi reconstruída, detalhe por detalhe. Marcello Mastroianni não é Fellini e a atriz que representa a mulher do cineasta em crise não é Giuletta Masina, mulher de Fellini na vida real. Ou seja, tudo absolutamente ficcional, mas as citações ao próprio Fellini abundam, a começar pelos trajes das personagens, todos desenhados por ele, assim como o tom caricatural destas mesmas personagens, maquiadas cada uma sob a supervisão também de Fellini – o que remete a ele próprio, que antes de ser cineasta, foi caricaturista.
De qualquer forma, este filme não satisfaz pelo menos dois dos termos propostos por Lejeune: 1 – tripla identidade entre narrador, autor e personagem; 2 – o “pacto” de veracidade entre autor e a quem é endereçada a narrativa, pois embora as reiteradas afirmações de que é um filme autobiográfico, toda a mimesis do filme contraria esta assertiva, uma vez que visivelmente o que aparece nos filmes é uma realidade fantástica e absolutamente ficcional. Contudo, fica a anotação de que é possível considerar que este filme esteja enquadrado naquilo que Lejeune chama “espaço autobiográfico” (Lejeune, 2008, p.23).
Vamos ao segundo filme que nos propusemos testar, que é Santiago, de João Moreira Salles. Este é um filme documentário, rodado em película P&B 35 mm, um processo que tende a produzir estilizações dramáticas, inevitavelmente incorporadas à narrativa. Lembremos aqui de filmes do “cine noir” ou os filmes de Ozu, o cineasta japonês que é uma influência confessa de João Moreira Salles. Ou seja: embora a analogia com a literatura, neste caso, seja difícil de ser conseguida, vou tentar uma aproximação com as narrativas da literatura clássica chinesa e japonesa[iv], que são corporificadas através de ideogramas – e a escrita ideogramática tem uma afinidade impressionante com a escrita cinematográfica, característica que vários pioneiros do cinema já haviam notado, como Eisenstein e Kulechov – já que a ordem que os planos são montados em um filme é que dão o sentido à narrativa, do mesmo modo que na escrita ideogramática, onde a posição dos ideogramas, uns em relação aos outros, é que dão o sentido, além de outra característica da escrita ideogramática também afim: a forma como o ideograma é desenhado, assim como o tipo de papel (e sua textura), o tipo de tinta utilizada e o tipo de pincel utilizado fazem parte da narrativa, pois dependendo de cada um destes fatores, ela conotará coisas diferentes. No cinema isto também acontece: a cor, as texturas e iluminações dos objetos cênicos, podem conotar coisas bem diferentes em uma mesma cenografia.
Voltando ao filme: ele enfoca a vida de Santiago Badariotti Merlo (1912-1994), ítalo-argentino que trabalhou como mordomo na casa da família Moreira Salles, no alto da Gávea, Rio de Janeiro, durante 30 anos. Começou a ser rodado em 1992, sendo retomado em 2005, finalizado em 2006 e publicizado em 2009. O fio condutor da narrativa é um texto do diretor, João Moreira Salles, lido em voz off por seu irmão Fernando Moreira Salles. Como não poderia deixar de ser, entra na intimidade da poderosa família Moreira Salles, acionista do Banco Unibanco, e fala de um período fundamental da história brasileira, quando o pai de João Moreira Salles tinha participação direta na política brasileira das décadas de cinquenta e sessenta do século passado, tendo sido embaixador e ministro da fazenda de João Belchior Goulart, presidente deposto por um golpe militar de direita em 1º de abril de 1964. Pode-se dizer que é um filme memorialista que, tendo a biografia do mordomo Santiago em primeiro plano, figura, aliás, que coligiu mais de 30 mil biografias em trinta anos, trata de outras biografias e de outras memórias, como as do diretor João Moreira Salles, que aparece em um sucessivo jogo de espelhos, como o de um relato em primeira pessoa de João, o diretor, enunciado na voz do irmão Fernando.
Na complexa trama narrativa desenvolvida pelo filme, que tem um texto em primeira pessoa lido por uma terceira pessoa, além de uma colagem de fotos e filmes familiares, rodados em bitola super 8, aparece uma pessoa (Santiago) que vive o presente como se estivesse no passado, tendo como companheiros as 30 mil biografias que ele cuidadosamente coligiu durante três décadas, a começar pela aristocracia hitita, e a quem leva (as biografias) a passear periodicamente. “Eles estão vivos”, diz Santiago em determinado momento do filme.
Mas, o que mais causou impacto em mim foi o grau de exposição a que se submeteu o diretor do filme, João Moreira Salles, embora apareça apenas de costas em um fugaz fragmento do filme. Aqui, fico apenas nestes aspectos, pois a finalidade não é fazer uma análise mais profunda deste filme, que certamente a merece, mas que demandaria muito espaço. O exposto, contudo, serve para o teste a que me propus, e ele também não corresponde rigorosamente às três condições, embora, paradoxalmente, também corresponda a elas. Ou seja: ele ficaria em uma área fronteiriça, de sombras: a narrativa é de autoria de João Moreira Salles, embora a voz não seja. Mas, se eu ler em voz alta a autobiografia de alguém, ela deixará de ser menos autobiografia deste alguém? De certa forma este é o caso do filme. O que complica, é que se trata de uma narrativa cinematográfica, e a voz em off faz parte do espaço diegético do filme[v]. Ou seja: a voz é componente fundamental do relato cinematográfico e assim, a rigor, a cópia da voz física de João Moreira Salles está representada, não está presente. Portanto, do ponto de vista do relato cinematográfico, a condição de que haja uma tríplice identidade entre autor, narrador e personagem, não é cumprida. Outro complicador é o fato de que João Moreira Salles sempre se coloca de forma indireta. Como já observei, este filme é constituído por um relato muito complexo e embora não chegue a se enquadrar com todo o rigor no que poderia ser uma autobiografia cinematográfica, por outro lado também não é possível afirmar que ele não seja uma autobiografia. Casos como este é que talvez possam servir para mostrar os limites que uma conceituação muito rígida possa ter.
Mas, como estamos trabalhando com esta conceituação, é ela que continuarei a utilizar para colocar à prova o terceiro filme, que é Corumbiara, de Vincent Carelli.
Corumbiara é um filme documentário, com 117 minutos de duração, feito por Vincent Carelli em vídeo entre 1986 e 2006. Trata do massacre de índios isolados, a mando de fazendeiros, na gleba Corumbiara, em Rondônia, nas décadas de 80 e 90 do século passado, e o filme é a narrativa da busca de provas deste massacre.
Nesta busca, os documentaristas encontram uma família de índios isolados: a mãe (sobrevivente de outro massacre, em 1952), um filho, uma filha e uma sobrinha dela. Os antropólogos e indigenistas (que são os documentaristas) ficam surpresos, pois não conseguem identificar a que grupo estes índios pertencem. Com as imagens e as vozes deles, posteriormente, no Museu Goeldi (Belém do Pará), conseguem identificá-los como pertencentes à etnia Canoê, que fala uma língua dada como extinta, já que se conhecia até então apenas poucos anciãos, sobreviventes ao massacre da década de 1950, que a falavam. Um destes anciãos, o Xamã Monuzinho Canoê, é levado até Corumbiara e serve de intérprete na conversa entre a equipe de filmagem e este grupo isolado de canoês.
Carelli é um dos idealizadores do projeto Vídeo nas Aldeias e o início das gravações se deu quase por acaso, quando o indigenista Marcelo Santos, funcionário de campo da FUNAI, procurou Carelli para que este filmasse vestígios de um massacre de índios ordenado por um fazendeiro no final de 1985. Esta primeira filmagem é interrompida quando a pequena equipe de filmagem é expulsa da “propriedade” por Flausino, advogado do fazendeiro, que se faz acompanhar por um grupo de jagunços.
Ela é retomada nove anos depois, em 1995, quando Marcelo Santos é nomeado pela FUNAI chefe da secretaria dos índios isolados em Rondônia. Nesta segunda etapa, eles encontram sobreviventes do massacre de 1985 (os akunsú) e vestígios de um outro sobrevivente, um índio não identificado que a equipe passa a chamar índio do buraco. Alguns anos depois, eles conseguem chegar até ao índio do buraco, que está em uma oca isolada no meio da selva. Ficam seis horas tentando um contato, sem que ele emita uma palavra sequer. Sua única reação foi a de atirar uma flecha na direção do cinegrafista. Outras pessoas estavam muito mais perto dele e muito mais expostas, mas ele tentou acertar o homem com a câmara. Sentiu-se ameaçado pela filmadora, que – ironicamente – era a única chance de sua sobrevivência: eram as imagens de sua existência que faziam um juiz federal emitir sucessivos mandatos que impediam o fazendeiro de destruir aquela única área de mata que ainda existia.
Entre interrupções e recomeços, o filme é concluído em 2006 e tem o corte final feito em 2009, tendo recebido até o momento as seguintes premiações: Premiado no Festival de Gramado de 2010 pelo júri popular e pelo júri oficial como o melhor filme brasileiro da mostra; menção honrosa no festival É Tudo Verdade de 2009; prêmio de melhor filme do 11o Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental.
A partir de agora, farei uma breve descrição da narrativa que compõe o filme para, ao final, fazer o teste proposto.
A narrativa é conduzida, em primeira pessoa, pela voz em off de Carelli, que logo no início do filme se apresenta, fala de suas motivações e introduz algumas das personagens da narrativa que começa a se desenvolver:
“Meu nome é Vincent, sou um indigenista e comecei a fazer documentários em 1986. Neste ano tava justamente realizando a primeira experiência do Vídeo nas Aldeias, que naquela época consistia em filmar os índios e mostrar imediatamente. Este jogo de espelho ia gerando um entusiasmo e, com a possibilidade de se ver na telhinha, levou os Nambiquara a delirar e a gente com eles. De repente, sob a liderança do capitão Pedro Mamendê, eles furaram o lábio de 30 jovens numa cerimônia que eles tinham abandonado há 20 anos. Desta experiência marcante nasceu a “Festa da Moça”, que foi meu primeiro documentário no norte de Mato Grosso. Foi então que o Marcelo Santos, indigenista da FUNAI, me pediu prá registrar os vestígios de um massacre de índios isolados, na gleba Corumbiara, no sul de Rondônia. Eu tava começando e prá mim dar ao vídeo uma função de militância mesmo era o que importava”.
Embora este início aparentemente tenha a estrutura dos documentários clássicos, tipo “voz de Deus”[vi], onde o narrador é onipresente, na verdade se diferencia radicalmente daqueles, pois neles a fala do narrador, em terceira pessoa, se pretende neutra. Neste, não só é um relato em primeira pessoa, como o narrador se posiciona claramente, o que aparece no trecho transcrito acima. Também é importante notar que aqui ele já se coloca no meio da narrativa, como personagem em ação. Em vários outros momentos do filme isto acontece, quando ele fala do que aconteceu em espaços e tempos que não aparecem no filme, quando lembra de dificuldades, quando relata a morte de sua mulher, a antropóloga Virgínia Valadão. Ele, ao narrar o filme em off, está simultaneamente narrando a si próprio; ou por outro: narrando um período de sua vida, a partir de uma empreitada, que é a construção do filme.
Um outro ponto importante a ser ressaltado aqui, diz respeito à ética, que filmes deste tipo têm como quase uma convenção, e aparece na narrativa como um traço estilístico. Este traço, que marca bem esta narrativa como pertencente a uma determinada tradição de filmes documentários, é a ausência de efeitos sonoros: sons, só os do ambiente. Para esta tradição fílmica, este é um sinal de realidade. Nenhum artifício cenográfico ou sonoro é admitido[vii]. Outras marcas características são a “câmara na mão”, algumas tomadas com a medição de luz incorreta. Todos indicadores do que RAMOS (2005) chama de “cicatriz da tomada”, que acabam por lhe conferir uma aura de autenticidade e, simultaneamente, é a garantia por parte do realizador de que o filme correspondeu a algo equivalente ao “pacto” ao qual se refere Lejeune: o que é mostrado é verdade e faz (ou fez) parte da realidade física e histórica em que estamos todos mergulhados – ou pelo menos são registros de fragmentos autênticos desta realidade, capturados por um dispositivo de gravação eletro-mecânico automático.
O filme, por outro lado, fornece todos os elementos para que se possa afirmar que, na verdade, aquela narrativa se confunde com a própria narrativa da vida de Carelli nestes vinte anos de gravação. Como na vida, os acontecimentos são aleatórios, fragmentados, sem um final, sem início muito definido (ou com início nebuloso), “um filme sem fim”, como fala Carelli em certo momento: Lígia Galvão, a mulher de Carelli, morre. Os quatro canoês aparecem e somem, ao sabor do fluxo da vida. Piamoi, a anciã canoê, e Oboró, sua sobrinha, morrem. Restam só dois canoês, Temarantú, a filha mulher, e Kurá, seu irmão. Kurá quer casar com a menina akunsú – e leva anos nesta espera, até que Konibu, chefe dos akunsú, dê sua permissão. Temarantú acaba por ter um filho com Konibu. Um novo começo? A língua canoê, afinal, escapará da extinção e os dois irmãos terão outros com quem conversar?
No filme, os anos passam para frente e para trás. Quando vão para trás é em busca de uma identidade que só se esclarece no presente. Todas as personagens têm nome, exceto o índio do buraco. O velho canoê, um dos dois únicos falantes conhecidos do canoê, língua dada como extinta pelo Museu Goeldi, se emociona ao descobrir que ainda há mais quatro canoês em Corumbiara, local onde os seus sofreram um massacre, tendo os poucos que restaram sido retirados à força de lá na década de cinquenta do século vinte – e se alvoroça em busca de um fragmento perdido de sua vida. Será que é seu irmão, do qual nunca encontraram o corpo? Os acontecimentos são aleatórios, acontecem de forma fragmentada e a memória serve como fio ordenador. De certa forma, como a vida acontece.
Por outro lado, embora seja a voz de Vincent a que prevaleça, neste filme há a presença de várias vozes: a de Temarantú, a dos akunsú, a de um dos dois últimos canoês, sobreviventes de um massacre na década de 1950, a do advogado de fazendeiros, a de representantes da FUNAI. A narrativa dá voltas: de 1986 passa para 2006. Volta para 1995 e passa por 2000. Vai até 1952 e dá um pulo para as décadas de 1960 e 1970, na época do regime militar. O que puxa a narrativa é a memória e um episódio lembrado leva a outro, com uma distância no tempo de décadas entre um e outro, criando uma narrativa tão complexa quanto a realidade que lhe serve de referente, uma narrativa onde a linearidade da narrativa naturalista é quebrada pelo surgimento de tempos desconexos, que só tomam sentido pela voz em off de Vincent, que é uma voz que tenta dar voz a quem não consegue sequer falar, como é caso do índio do buraco. Mas também é uma voz que procura dar um sentido ao caos e à babilônia – e à própria vida do enunciador.
Embora, em certo sentido, o filme mimetize a vida, ele não é a vida – e Temarantú, como quase todos os outros que aparecem no filme, tinha consciência de que estava sendo filmada: Carelli sempre mostra a todos o resultado das filmagens, “em um jogo de espelhos”, como diz ele. Ou seja: provavelmente ela estava representando[viii], mas representando ela própria! Temarantú não é uma ficção, embora seja uma personagem de um documentário e tivesse consciência de que estava sendo filmada. O índio do buraco também tinha consciência da filmadora, tanto que agrediu exatamente quem a portava. Ele não queria participar daquele relato, embora tenha participado a contragosto: sua recusa deve ser entendida como a reivindicação de um direito à invisibilidade que, paradoxalmente, era a única coisa que ele deveria abrir mão para poder sobreviver. Neste sentido, seu negaceio não deixou de ser uma espécie de fala.
Vincent Carelli também não é um personagem de ficção e, no caso dele, a relação com a forma (isto é: a personagem) como aparece no filme é mais complexa ainda, pois a personagem e o indivíduo se confundem completamente, bem mais do que as outras personagens filmadas por ele. Esta fronteira muito borrada, se é que existe no caso dele, entre personagem e pessoa, se deve a vários fatores, a começar que ele não se representa no filme; ou melhor, a personagem que ele encarna no filme coincide exatamente com a personagem que ele vive no dia-a-dia,
Acredito que esta breve descrição de como é construída a narrativa neste filme – descrição que talvez tenha ficado pouco metódica, já que tentou trazer ao texto uma parte da subjetividade que emerge daquela narrativa – sirva para o teste aqui proposto e, no caso de Corumbiara, tenho a convicção de que preenche as três condições necessárias para uma narrativa ser considerada uma autobiografia, na visada de Lejeune, pois ela é: uma narrativa em prosa; autor, narrador e uma personagem são a mesma pessoa; como filme documentário que se propõe a mostrar apenas a realidade (ou pelo menos a realidade que consegue mostrar), participa do pacto de veracidade (entre autor e receptor). Portanto, e levando em conta todas as dimensões da linguagem cinematográfica, que são a imagem em movimento ou parada (incluídas aí fotografias de arquivo, imagens iconográficas e textuais) e de som (incluindo trilha sonora, como ruídos de ambiente, voz em off, etc.), Corumbiara também pode ser considerado um filme autobiográfico, a não ser que se queira que as imagens projetadas na tela tenham sido feitas pelo olhos do autor, como uma câmera subjetiva aprimoradíssima. Ou seja: com imagens “em primeira pessoa”. Isto, com o que se tem disponível hoje em termos de recursos, é impossível, e alguém que utilize este argumento, como faz Guilherme Sarmiento da Silva, em artigo que publicou na revista eletrônica contracampo[ix], para tentar demonstrar a impossibilidade de um cinema em primeira pessoa, está levando em conta apenas UM dos componentes da narrativa cinematográfica, que é a imagem em movimento captada por um dispositivo (a filmadora) que sempre estaria na posição de um observador; isto é: na posição de uma terceira pessoa. Mas, como já observado, a narrativa cinematográfica é feita de outras dimensões que não apenas a imagem em movimento.
Portanto, tendo mostrado que Corumbiara é também um filme autobiográfico, fica constada a possibilidade de uma autobiografia ser cinegrafada.
Henrique Finco é professor do curso de Cinema e Artes da Universidade Federal de Santa Catarina
[i] Aqui irei esta definição e estas condições, embora com o passar dos anos, Lejeune tenha ampliado este conceito, admitindo, inclusive, a autobiografia versificada. Contudo, permaneço com esta exatamente por ser mais restritiva, o que será útil ao colocar em teste uma obra para ver se ela se encaixa neste gênero, o que aqui também é uma das pretensões.
[ii] Encontrável em: http://jcbernardet.blog.uol.com.br
[iii] Em alguns filmes, todavia, isto chega a ser muito bem resolvido, como é o caso de Aguirre, a cólera dos deuses (1972), de Werner Herzog, ou O Quatrilho (1994), de Fábio Barreto.
[iv] Sobre como é produzida a escrita ideogramática, e como a forma influencia na narrativa da escrita ideogramática, ver FENOLLOSA (1963, pp. 116-141) e OSBORNE (1978, pp. 95-117).
[v] Considerando que a dimensão auditiva também é parte constituinte da diegese do filme. Utilizo “diegese” e “diegético” conforme Aumont (1995) e Metz (2004).
[vi] Como se referem aos documentários tipo clássicos, da escola inglesa, os pesquisadores DA-RIN (2004), LABAKI (2005), RAMOS (2001, 2005), TEIXEIRA (2004), BARTOLOMEU (1999), entre outros.
[vii] Conforme DA-RIN (2004), LABAKI (2005), RAMOS (2001, 2005), TEIXEIRA (2004), BARTOLOMEU (1999), NICHOLS (1991, 2008), ODIN (2005), CARROL (2005), GAUTHIER (1995).
[viii] Sobre isto, Eduardo Coutinho diz que as personagens de filmes documentários “se fabulam”, in LINS (2004).
[ix] O artigo em questão, intitulado Spider: o cinema em primeira pessoa, foi publicado nas edições 49, 50 e 51 da revista contracampo (www.contracampo.com.br).
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Filmografia:
8 & ½ – Direção de Federico Fellini – Produzido e distribuído por INTRAMOVIES S.R.L. – Roma, Italia (1963).
Amarcord – Direção de Federico Fellini – Produzido e distribuído por INTRAMOVIES S.R.L. – Roma, Italia (1973).
Corumbiara – Direção de Vincent Carelli – Produzido por Vídeo nas Aldeias – Olinda, Pernambuco (2009).
Santiago – Direção de João Moreira Salles – Produzido e distribuído por Cinevideo – Rio de Janeiro (2009).
Achei interessante a analogia entre a escrita cinematográfica e a escrita ideogramática. Acho que é algo que poderia ser melhor desenvolvido.