Por: Nicolas Martins Duarte
Graduando em Imagem e Som, UFSCar
Para a maioria, uma década pode parecer uma espera desmesurada. No entanto, A Substância (2024) nos prova que às vezes a delonga vale a pena. Coralie Fargeat, diretora e roteirista francesa, lança em 2014 seu curta-metragem Reality+, obra que agora podemos visualizar como um projeto bruto do que, dez anos depois, se tornaria um longa-metragem digno de aclamação. O curta, situado em um futuro próximo, apresenta o conceito de um chip que, ao inserido em você, lhe permite ver a si mesmo e aos outros (que também o possuam) com a aparência “ideal” que desejarem. Agora, precisamente 10 anos depois, Fargeat nos presenteia com uma premissa similar, porém lapidada com uma maestria grotesca e extraordinária.
A Substância (2024) nos conta a história da atriz “has-been” Elisabeth Sparkle (Demi Moore); uma vez renomada e ganhadora de diversos prêmios, agora com seus 50 anos e completamente desvalorizada pela indústria cinematográfica, graças ao seu envelhecimento. Novamente, o filme nos apresenta uma solução milagrosa para o infortúnio: uma substância capaz de liberar uma nova versão de você mesmo, mais nova, mais atraente, mais perfeita; com apenas uma injeção. Os termos e condições são simples: 7 dias com o seu “eu original”, e 7 dias com o “o outro eu” aprimorado. O equilíbrio deve ser respeitado. E não se esqueça: Vocês. São. Um só.
A premissa de uma melhoria de vida fascinante, que é oferecida ao protagonista sob certas ressalvas e abusada além de seus limites, se mostrando nociva com o descuido, não é necessariamente inovadora, mas é árduo se pensar em uma produção que tenha melhor explorado a proposta. E que prodigiosa exploração, diga-se de passagem. A divisão de personalidades entre Elisabeth e Sue (Margaret Qualley) evoluindo de forma gradual diante dos olhos do espectador transmite uma sensação de impotência desmedida; o desejo que se cria é de entrar na tela para impedir essa transformação psicológica catastrófica em duas pessoas distintas.
Ademais, é evidente e até redundante dizer que a obra tem como base da sua premissa uma crítica escancarada aos padrões de beleza absurdos da sociedade moderna. Dito isso, é sim interessante citar a maneira nada trivial com a qual o filme a faz. Desde as primeiras aparições de Sue, versão “aprimorada” de Elisabeth, ele nos expõe a personagem como um produto a ser consumido. A câmera é maliciosa e predatória ao mostrar ambas as atrizes, transmitindo culpa ao público, como se o transformasse em cúmplice desta indústria doentia. Além de perturbador e crítico, se trata também de um filme profundamente melancólico. Observar a crueldade e desumanidade da protagonista consigo mesma se desenvolvendo é excruciante e causa tanto embrulho no estômago quanto as múltiplas cenas de body horror.
Ainda acerca da narrativa do filme, avançarei para a análise do arco final, que lastimavelmente não segue a mesma tendência do restante da obra. No decorrer do filme, desenrolam-se uma sequência de eventos e reviravoltas onde o seguinte é sempre menos grotesco do que o precedente, não permitindo que aquele que o assiste baixe a guarda por um segundo sequer; um verdadeiro triunfo no gênero do terror. Entretanto, ele parece se perder, não necessariamente na sua ideia, mas na execução da mesma aos 45’ do segundo tempo. A cena situada no programa de ano novo é tristemente eficaz em tirar o espectador da imersão profunda à qual estava sujeito nas duas horas antecedentes. Tudo de repente se torna teatral, e não no sentido proveitoso da palavra. Em compensação, a diretora parece recuperar sua convicção nos minutos, de fato, finais. A destruição do Monstro, seguida da cena derradeira, é carregada de significado mas, principalmente, de repugnância e desconforto. Agora sim, com muita eficácia e choque.
É crucial também dar os créditos ao talentosíssimo elenco do filme, a começar por Demi Moore que sai completamente de sua zona de conforto (e certamente arranca o público à força também) com um dos papéis mais marcantes da sua carreira. É preciso muita coragem para se entregar de maneira tão visceral e vulnerável à um personagem, e mais ainda para dividí-lo. Felizmente, ela o faz com outra atriz de aptidão surpreendente: Margaret Qualley, que vêm ganhando seu espaço na indústria com suas aparições em Tipos de Gentileza (2024) e Era Uma Vez em… Hollywood (2019) e demonstra seu profissionalismo esplêndido aqui também; além de, claro, Dennis Quaid que também nos entrega (não pela primeira, nem segunda vez) um personagem coadjuvante extremamente cômico e satírico.
Finalmente, a fotografia, como já citado, não fica para trás em relação aos outros aspectos do filme, e é de se aplaudir de pé. Desde o uso das cores, ora extremamente saturadas e cítricas, ora completamente insossas e cadavéricas; até os planos detalhe belíssimos e claustrofóbicos, que com certeza se tornarão referência entre a cinefilia, o trabalho de câmera neste longa é incomparável. A comida é representada e comparada as visceras, enquanto o corpo se transforma em carne através das lentes, assim como as imagens são distorcidas com o uso da grande angular. O longa é extremamente visual, muitas vezes optando por planos longos sem nenhuma fala se quer, e por isso depende tanto da maestria da equipe de som, diegeticamente ou não, para cumprir seu papel ao complementar os arrepios na espinha e nós na garganta com sons distorcidos e ruídos estridentes, além da trilha sonora frenética e energizante, que deixa o espectador submerso no desconforto constantemente.
Bem, torna-se claro que a competência da equipe como um todo transforma o filme em uma obra cinematográfica intrépida e arrebatadora, tomando, sem qualquer receio, o posto de filme de terror mais horripilante do ano, tão recentemente ocupado por Longlegs (2024), segundo a crítica. E, no meu ponto de vista, de maneira merecidíssima. É certamente uma das obras mais perturbadoras e competentes do subgênero body horror já vistas nas telas de cinema, e será, sem dúvidas, citada e referenciada por muitos anos.
Referências Bibliográficas:
A Substância. Direção: Coralie Fargeat. Produção: Working Title Films. Reino Unido, Estados Unidos e França: MUBI e Metropolitan Filmexport, 2024.
YAMATO, Jen. The scariest movie of the year (so far) is ‘Longlegs,’ by a mile. The Washington Post, 10 de Jul. 2024. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/entertainment/movies/2024/07/10/longlegs-monroe-cage-review/. Acesso em: 25 de set. de 2024.