Helena Zoneti Rodrigues
Redação RUA
É magistral e primorosa a maneira com que Ceylan mescla as estações e o ambiente natural da Turquia à psicologia de seus personagens. É neste sentido, por exemplo, que a trama se amplia com profundidade as multifacetas do que é o ser humano, escapando às mãos do audiente o dualismo superficial em que o espectadores se tornam juízes de valor dos personagens. No caso das obras de Ceylan, e principalmente nesta, surge talvez como demanda principal ao espectador o exercício empático e de diferenciação à complexidade de sentimentos, experimentação que, não obstante, o personagem principal se encontra.
Ainda tratando da fusão entre natureza e humano empreendida na tela, e como Ceylan reforça isso no longa, ao agregar, por exemplo, imagens fotográficas dos membros da aldeia em seu ambiente, e como estes são unidos à natureza em simbiótica dependência, tal amálgama alquímica rememora a conexão entre ambiente externo e indivíduo, e como a identidade se erige a partir da convivência e compreensão do entorno pela tomada de consciência daquilo que é comum a todos, inclusive sentimentos humanos básicos: tais como o ciúmes, inveja, vingança e manipulação. Empreendimento tal como a do filósofo Espinosa em seu livro Ética, (1667), cuja finalidade maior é a compreensão da natureza finita do ser humano, parte de um todo social e ambiental. É neste ponto que a direção de Ceylan une humano e natureza, constituindo um único plano de imanência, extremamente realista.
Acompanhamos a trajetória de um professor que deseja lecionar na cosmopolita Istambul, Samet (Deniz Celiloğlu), e lida com as dificuldades de lecionar e conviver num ambiente distinto da sua zona de conforto: uma pequena aldeia precária, que enfrenta um rigoroso inverno. No primeiro momento do filme, observamos sua relação próxima com a aluna Sevim (Ece Bağcı), onde a presenteia com um espelho, produto da metrópole, símbolo um tanto interessante se olharmos a história do Brasil, por exemplo, em que os espelhos eram produto de “troca” dados pelos colonizadores, estes vistos como “civilizados”. Samet reforça assim, como em vários momentos de relações de poder (por exemplo, a sala de aula), sua superioridade ética, civilizatória e moral frente aos moradores da aldeia.
Sua estadia obrigatória na “tediosa” aldeia, em que seus alunos serão apenas “plantadores de batatas”, em suas palavras, o direciona a relações em que observamos seu olhar de desprezo mascarado sendo confrontado. Uma das melhores cenas do longa, cuja fotografia é impecável, é a interlocução entre Samet e sua amiga Nuray, papel maravilhosamente representado pela atriz Merve Dizdar que neste momento do longa, dentre outros, desmonta e dissolve o preconceito misantropo do personagem principal, enquanto o mesmo lida com situações e problemas que emergem na escola. Lentamente, o espectador mergulha neste personagem complexo, não apenas mau, não somente bom, mas relativo às circunstâncias de seu entorno; o espectador adentra numa experiência de legitimar o humano em seu todo.
A fala do poeta romano Terêncio citada resume e amplia o longa: Nihil humanum, a me alienum puto (“Sou homem, e nada do que é humano considero que me seja estranho”). Quando finda o inverno, o personagem se vê num monte da região, agora repleto de gramas secas, e se dá conta de sua inconsciência em relação à aldeia (cujo os moradores conhecem com intimidade). Seu limiar artificial dado ao seu entorno é abolido para entrada de outro ponto de vista, assim como a entrada da próxima estação, mais quente e acolhedora. Assim como o espectador se vê íntimo dos sentimentos e afetos universais do personagem principal, o personagem principal “desgela” seus preconceitos e passa a ver certa riqueza na simplicidade da vida na aldeia.