Crítica | Creepy (2016), de Kiyoshi Kurosawa

Imagem de divulgação do filme Creepy (2016)

Por: Pedro Acadroli

A imagem limpa e bonita falseia o que ela representa simbolicamente, sua objetividade é apenas uma aparência. Em Creepy, os personagens também falseiam o que se passa em seu interior e em suas vidas particulares, são incapazes de comunicar-se umas com as outras, principalmente o casal protagonista, Takakura e Yasuko. A aparência da imagem cinematográfica é o espaço no qual os personagens evidenciam seu sofrimento, ou melhor, é por meio do poder simbólico por trás da aparência objetiva da imagem que os personagens e seus dramas se tornam reais. Kurosawa simboliza o real e cria uma ficção que se torna realidade por meio da imagem digital.

No decorrer do filme, os personagens tentam esconder sua situação interior por meio das aparências cordiais do dia a dia de que tudo está bem, mas com o desenvolvimento da narrativa são confrontados com seus problemas e não podem mais esconder-se destes. Exemplo maior disso é o relacionamento dos protagonistas, que passa por momentos de negação e incomunicação, até a chegada do vizinho Nishino, que pouco a pouco influencia a relação dos dois, o que culmina na cena final em que Yasuko chora desesperadamente nos braços do marido, externalizando seu sofrimento reprimido durante todo o longa. 

Outro personagem interessante é o já citado Nishino, que representa em maior grau a relação que o filme constrói em torno das falsas aparências dos personagens. Nishino tem comportamentos que variam entre aparentemente estranhos e aparentemente normais, e por meio dessas aparências ele confunde os demais personagens. Porém, o mais absurdo não está relacionado com as atitudes estranhas de Nishino, mas sim com a incomunicabilidade entre os demais personagens que são afetados por ele. Desde suas primeiras interações fica evidente, pelo menos ao espectador, que Nishino pode estar envolvido com atividades suspeitas, mas nenhum dos personagens admite firmemente sua estranheza até que seja tarde demais. 

A incomunicabilidade dos personagens se dá também por conta de um certo individualismo entre estes que se refugiam nos mundos particulares de suas casas. Até mesmo nesse ambiente privado se escondem de seus parceiros, como no caso do casal protagonista. Diversos momentos da narrativa exemplificam isso, mas há uma cena que representa bem essa situação. Em determinado momento do filme a vizinha de Nishino fala abertamente para Takakura que o primeiro se trata de alguém frio e descontrolado, porém não passa disso, ela sabe do perigo, mas continua sua vida normalmente dentro do mundo individual de sua casa, não se preocupa com seu vizinho até que as ações deste a afetem. Nishino coloca fogo na casa da vizinha reclusa, mas já é tarde demais para que algo seja feito por ela ou por qualquer outra pessoa. 

Há também outro momento que evidencia o individualismo dos personagens. Isso ocorre na cena em que Takakura não leva a sério a denúncia de Mio, suposta filha de Nishino, de que a identidade deste é falsa, ele não é seu pai verdadeiro. Inclusive, Mio é a pessoa que demonstra maior coragem dentre os personagens, mas por estar rodeada de adultos omissos e apáticos que deveriam ser responsáveis, ela aceita seu destino, vai à escola normalmente como se nada de errado estivesse acontecendo, ela mantém as aparências perante as pessoas fora de sua casa de que tudo está bem. Além da confissão de Mio, Takakura tampouco percebe o estado de sua esposa que claramente não está bem, mas mente que está. Yasuko também não comunica o que sente verbalmente para seu marido. 

Seguindo a ideia apontada acima, sobre as aparências em torno das relações dos personagens, as casas são construídas no filme como um elemento simbólico importante. A aparência bonita e limpa das fachadas das casas esconde os problemas internos das pessoas que vivem nesses espaços. Por mais que as casas estejam muito próximas umas das outras geograficamente, as pessoas que vivem nelas estão distantes umas das outras em um nível espiritual, cada uma se esconde em seu espaço interior individualizado. Isso é representado principalmente pela casa dos protagonistas, cuja arquitetura bonita esconde os problemas que os dois estão lidando em seu relacionamento. Já a casa de Nishino representa a dualidade deste, ao mesmo tempo que parece uma residência comum, há uma aura estranha desde o início envolvendo o lugar, as cortinas de plásticos na entrada que se movem com o vento indica essa estranheza no primeiro contato com o domicílio. 

Ademais, o interior do lar de Nishino representa os atos vis deste e também a forma como ele evidencia a real situação interior dos demais personagens. A fachada da casa, apesar de enigmática, é normal, mas seu estado interior é escuro e inóspito, o que mostra verdadeiramente o que acontece ali. Diferentemente do interior organizado da casa do casal protagonista que, assim como sua fachada falseia simbolicamente o estado real do relacionamento de ambos, o interior da casa do assassino não esconde sua natureza, pelo contrario, escancara a frieza e bestialidade do personagem e das relações que acontecem ali. Na verdade a casa não é de Nishino, ele tomou posse dela e evidenciou a frieza de sua arquitetura interior, corredores escuros que levam a uma espécie de calabouço moderno, onde suas vítimas ficam em cativeiro. O filme também utiliza de outros espaços como representações simbólicas, como no caso da delegacia policial da sequência inicial que tem um aspecto frio e decadente de uma arquitetura industrial, o que se relaciona com a narrativa do filme e também com as relações humanas distantes entre os personagens. 

Para além dos aspectos já citados, a narrativa também lida com a aparência superficial e o que está por trás de sua construção. A história não é sobre os assassinatos, ou sobre a resolução do mistério de um caso criminal que levará o culpado à prisão, mesmo que o filme utilize esses elementos do gênero de investigação policial, este não se prende às suas convenções. A narrativa trata essencialmente das relações humanas conturbadas desses personagens e como são incapazes de se comunicar uns com os outros. Em um mundo de falsas aparências todos sofrem, pelo menos é isso que acontece em Creepy. Durante o longa, os personagens transitam entre pessoas nas ruas da cidade, pessoas que aparentam viver suas vidas normalmente sem saber dos problemas das relações dos personagens, assim como os personagens não sabem da vida dessas pessoas que vagam pela cidade. A cena em que Takakura interroga a jovem da família desaparecida, Saki, evidencia essa relação da aparência da história contada e sua relação com as pessoas que habitam o mundo onde essa narrativa se constrói. 

Na cena, Takakura conversa com Saki na universidade onde trabalha, em um espaço com janelas de vidro que dão vista para o pátio onde estudantes e professores transitam. Ao passo que no interior da sala se discute um acontecimento sombrio e violento, do lado de fora as pessoas aparentam viver suas vidas normalmente, elas podem ver através do vidro transparente das janelas, mas não podem escutar o que se discute, portanto só captam visualmente o que acontece, são limitadas a perceberem a aparência do que é um acontecimento negativo. Por isso, continuam suas vidas normalmente como se tudo estivesse bem. Interessante notar inclusive, que em determinado momento desta cena a iluminação chapada e clara alterna para uma iluminação escura com sombras, justamente quando Saki acessa sua memória para se lembrar dos acontecimentos que levaram ao desaparecimento de seus familiares. O aparato técnico se ajusta para estilisticamente representar a situação psicológica que se desenvolve na cena, mas articula isso de uma maneira sutil. O importante é notar que quando se atenta apenas a aparência se perde a possível significação simbólica que possui um impacto muito mais profundo no indivíduo. Isso vale tanto para a narrativa do filme, quanto para a própria construção das imagens e o impacto que elas causarão.

O problema em torno da incapacidade de ver além das aparências é representado no longa pelo personagem do protagonista, que se nega, em diversas ocasiões, a aceitar a presença do “mal” na “natureza” de todo ser humano, inclusive nele mesmo. Takakura demora a aceitar a capacidade humana de ferir uns aos outros, por isso na sequência inicial da delegacia ele dá as costas ao assassino que o apunhala e mata a refém em seguida. Nesse momento ele é confrontado por parte da “sombra” humana, o abismo, a capacidade do ser humano de machucar, mas se nega a tomar consciência disso, de que alguém aparentemente normal como ele é capaz de matar seu semelhante. Mais adiante no filme ele é confrontado novamente pela figura de Nishino. O vizinho é a “sombra” olhando para o protagonista mais uma vez, e novamente ele se nega a olhar de volta, até tomar consciência de que também é capaz de se tornar um “monstro”. Isso se evidencia, por exemplo, na maneira como trata Saki e como a relação dos dois vai se tornando cada vez pior. Na cena do interrogatório na universidade, Saki diz a Takakura que ele é como os outros investigadores, trata as vítimas de maneira inumana, uma vez que este tenta tirar informações de alguém que passou por uma situação traumática sem se importar com o que isso pode causar à saúde mental da vítima. A relação dos dois se torna extrema com o decorrer da narrativa e culmina com Takakura indo a casa de Saki e obrigando-a identificar um homem em uma fotografia. O protagonista não aceita que ela não reconheça a fotografia e violentamente encurrala Saki sem sucesso. Takakura, aparentemente, só se concilia com sua “sombra” ao se tornar um assassino, quando mata Nishino na cena final. O personagem principal só se torna “bom” e seu sofrimento cessa quando toma consciência e aceita que é capaz de fazer o mal, assim como os assassinos que prendia.

Ainda sobre a narrativa, vale pontuar como o filme constrói simbolicamente seus personagens, principalmente o vizinho assassino. O personagem de Nishino é tão importante justamente por, através de seus comportamentos estranhos, quebrar a lógica de aparências que permeia as interações sociais dos demais personagens. Na verdade, ele evidencia a estranheza que constitui essas falsas relações em que todos fingem estar bem, mas na verdade estão todos com problemas em seus espaços internos, tanto físicos quanto psicológicos. Além disso, Nishino representa simbolicamente a “sombra” que permeia as relações humanas dos personagens, como uma espécie de droga ele passa de pessoa a pessoa, afetando a vida de cada uma, o que é simbolizado pela injeção que ele aplica em suas vítimas e que as torna tristes e apáticas. Nishino não tem uma identidade verdadeira, nada sabe-se sobre seu passado, ele aparece como uma espécie de entidade que condensa todos os males dos personagens e seus mundos particulares. Inclusive, quando morre, Nishino não sangra e é só após sua morte que Yasuko finalmente consegue comunicar seu sofrimento a seu marido, ela grita e abraça-o expondo as dores reprimidas, como se a presença de Nishino impedisse Yasuko de se comunicar. 

A construção de personagens “símbolo” como Nishino fortalece o vínculo do filme com a ilusão cinematográfica e seu poder de impacto simbólico no espectador. O assassino, assim como o cinema, surge como motivador simbólico que evidencia problemáticas de uma determinada realidade, através da ilusão se cria um lugar passível para construção de um efeito sensorial que resulta na tomada de consciência daqueles que entram em contato com o elemento simbólico. No caso da diegese do filme os personagens tomam consciência de seu sofrimento ao entrar em contato com Nishino. Já no caso do extra fílmico, o espectador é passível de tomar consciência da sua própria condição. Em seu lugar seguro de voyeur, o espectador se vê projetado nos personagens e em seus dramas. A construção simbólica se dá por meio da ilusão, ou seja, o espectador não toma consciência de seu lugar de observador, nem do aparato técnico que rege a obra, o impacto causado se dá primordialmente a nível sensorial, sem que haja a quebra da ilusão cinematográfica e sua consequente intelectualização.

Por mais que lide com a ilusão cinematográfica, o longa se aproxima de sua quebra, ou melhor, sutilmente dialoga com o espectador mantendo a ilusão, mais uma vez por escolhas simbólicas. O filme se direciona indiretamente ao espectador desde seu primeiro plano, no qual o personagem interrogado está virado em direção a câmera como se falasse para esta, apesar de não olhar em sua direção. O plano continua em um movimento de travelling para trás, evidenciando a presença de Takakura que está sentado de costas para a câmera na posição de interrogador. Assim como Takakura neste plano, o espectador está sentado olhando para tela em uma posição de julgador. O filme constrói a relação entre o olhar dos personagens e o olhar do espectador para a imagem cinematográfica.

Há outros momentos em que os personagens se posicionam frontalmente à câmera, como na cena do interrogatório de Saki. Em um dos planos da cena todos os personagens são enquadrados em posição frontal à câmera. Além disso, é nesse plano que Saki revela, em seu diálogo, que era observada por um homem dias antes da tragédia envolvendo o desaparecimento de sua família. Em seu relato ela informa que estava em um posição alta e seu observador em um lugar baixo, Saki diz que foi vista pela janela de seu quarto. Essas informações espaciais remetem a uma sala de cinema em que o espectador fica abaixo e a tela acima, tela esta que funciona como uma janela para o mundo da ficção, no caso o mundo de Creepy. Neste momento de confissão Saki está sendo observada pelo espectador, assim como estava sendo observada pelo seu vizinho em seu relato. Com essas escolhas, o filme cria a sensação no espectador de que as imagens se constroem para que ele as veja, só que faz isso de maneira sutil, apelando justamente para o inconsciente do observador que sente um estranhamento em torno do longa, mas que é incapaz de explicar objetivamente. Isso também contribui para atmosfera sombria e misteriosa presente na obra.

O filme lida sutilmente com as aparências no nível da narrativa e também no nível da imagem, sendo esta construída em uma relação que favorece o impacto sensorial construído pelo poder simbólico. O longa constrói a ideia de que um plano é mais do que a imagem que ele mostra objetivamente. Exemplos disso são encontrados em muitos momentos do filme como no plano em que os protagonistas se abraçam na cena final após a morte de Nishino, ou como na morte do assassino na mesma cena, ou ainda no plano em que Yasuko é disputada por Nishino e Takakura, em que por fim ela caminha em direção a Takakura e se afasta do assassino. Todos esses planos constroem um impacto para além de sua composição objetiva. Por exemplo, na cena em que é “disputada” pelos dois, o ato de Yasuko se afastar de Nishino e ir em direção a Takakura simboliza a tentativa de reatar o relacionamento e sair da posse do estado de sofrimento, simbolizado pelo personagem de Nishino. Interessante que essas escolhas em torno da aparência da imagem se relacionam diretamente com os personagens, uma vez que estes também possuem a dualidade de serem aparências que escondem uma complexidade interior incapaz de ser descrita, apenas sentida. A imagem cinematográfica é o lugar onde o subjetivo se torna visível, apesar de também não ser passível de descrição objetiva por mais que se dê em um lugar aparentemente objetivo. 

O aspecto da imagem é muito importante no trabalho de Kurosawa. Em Cure (1997) e Kairo (2001), a imagem digital se evidencia através do ruído. Nesses dois filmes a imagem ruidosa representa uma incerteza e um temor perante ao mundo digital e suas consequências nas relações humanas, algo que é mais evidente em Kairo por conta de sua narrativa. Mas, pensando especificamente na imagem cinematográfica, os dois longas citados também tratam a imagem digital como uma incerteza em relação ao próprio cinema que nos 2000 passava por uma migração da película em direção ao digital, estando este último ainda um pouco distante da “beleza” da imagem proveniente da película. Já em Creepy, um filme mais recente, a imagem não tem mais ruído, é “limpa” e “higienizada”, o digital já é a norma aceita de “beleza” da imagem. Kurosawa se apropria dessa aparência limpa da imagem digital para construir cinematograficamente a narrativa de falsas aparências dos personagens. Assim como estes, a imagem “bonita” é uma aparência que com o passar da narrativa evidencia o horror dos atos violentos de Nishino. A escolha por essa imagem digital higienizada corrobora com a sutileza do filme e com a representação de um sofrimento mais psicológico que físico. Mesmo com a presença de atos vis não há uma evidência mais direta da violência, como por exemplo na morte de Nishino em que este não sangra.

Através de suas escolhas, Kurosawa cria uma cosmologia que dialoga com o mundo objetivo e o mundo simbólico. O impacto causado está mais ligado ao poder simbólico proveniente de uma representação ficcional de um mundo muito semelhante ao real. O filme é simbólico, mas muito real em suas escolhas de representação, como a narrativa e as atuações que são realistas, além da fotografia que tem um aspecto “limpo” e também realista. Mas o longa também lida com momentos quase oníricos como na cena em que os personagens estão no carro e um plano deles dentro do automóvel rodeado de nuvens falsas se alterna com planos mais realistas da estrada, ou seja de elementos do mundo externo ao carro, há aí mais uma vez a relação da ilusão e do real. Ao lidar com o simbólico em um mundo muito palpável, Kurosawa constrói imagens que carregam um meio termo da representação da consciência e do inconsciente, entre a objetividade aparente e a sutileza da ilusão. 

A imagem do cinema é uma representação muito próxima da psique humana e Kurosawa se apropria dessa característica para construir em Creepy um filme simbólico sobre a realidade japonesa, mas que também se relaciona com cidadãos de outros lugares do mundo globalizado e capitalista do século XXI, em que as relações humanas tem se tornado cada vez mais distantes. Justamente por se atentar ao impacto sensorial da imagem, que o filme é capaz de se comunicar com o inconsciente de pessoas de diversos lugares do planeta. Creepy articula isso através da imagem digital que representa as transformações sociais das últimas décadas que impactaram as relações humanas. Kurosawa evidencia o distanciamento simbólico entre as pessoas por meio da tecnologia causadora do problema, se apropria da imagem digital higienizada e sem alma que povoa as redes sociais para construir um cinema que retoma o diálogo com o simbólico.  

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