
Em um formato de ensaio poema, o curta metragem documental “Lavra Dor” foi dirigido por Paulo Rufino, com Ana Carolina como Co-diretora e lançado em 1968. Utilizando-se de imagens em table-top, cenas de arquivo e de textos poéticos de Mário Chamie, o documentário retrata a situação dos lavradores diante da questão da reforma agrária e o desânimo e o medo provocados pelo golpe militar de 1964, que ameaçava os sindicatos rurais brasileiros. O Filme foi proibido até a Anistia, promulgada em 1979, e foi vencedor de prêmios como: Melhor filme sobre realidade nacional – Festival de Belo Horizonte, Brasil e 2º Prêmio da 1ª Mostra do Cine Latino-Americano, Mérida, Venezuela, ambos em 1968.
O questionamento acerca do próprio gênero documental aparece repetidas vezes ao longo do curta metragem, questionamento esse que é o mesmo que o espectador incauto pode se fazer no fim do filme. Como documentário “Lavra Dor” é filiado na melhor tradição documentarista, coloca-se no limite de algumas questões que aborda: o trabalho rural, o camponês e a reforma agrária. O curta inicia com uma provocação direta ao governo ditatorial: “A insurreição é um recurso legítimo de um povo”, atribuindo a frase ao general Humberto Castelo Branco, o primeiro a assumir na Ditadura, em 1964. Ao longo do curta, outras provocações diretas aparecem, sejam em falas ou em imagens.
Conta com uma montagem fragmentária e descontínua, tanto nas imagens como no tratamento sonoro, e os discursos se intercalam e se posicionam sobre essas questões de diversas maneiras. Dentro dessa multiplicidade de imagens, sons e ideias, o filme proclama a necessidade de um novo espectador, que compreenda as operações realizadas pela obra. Para isso, Rufino retira todo o romantismo ligado, ainda hoje, tanto à reforma agrária (os trabalhadores conscientes de seus direitos) como ao documentário (um filme focado na objetividade e que tem como função captar o real), trazendo, como temática principal não o assunto em si, mas a linguagem poética que envolve esses assuntos.
As fotografias em negativo ou estouradas revelam o grande contraste referenciando o extremos na vida dessas pessoas. É preto no branco porque é fome ou morte, porque é o nada dos trabalhadores ou o muito dos fazendeiros. Em muitos momentos, a fala e a música que acompanham as fotografias, trazem movimento às imagens.
O crítico Jean Claude Bernardet diz que o discurso cinematográfico dessa obra é o seu aspecto mais importante, e, ao mesmo tempo, algo que dificulta a apreensão do real: “o filme não nos encaminha para discutir a reforma agrária, mas para discutir um filme que trata da reforma agrária” (BERNARDET, 1985, p. 77).
O curta intercala frases escritas com letras brancas sobre um fundo preto. e cita fragmentos de versos por meio de letreiros. Além disso, questiona seu próprio formato a partir da repetição da expressão interrogativa “documentário?”, sugerindo a complexidade da realidade e propõe uma espécie de “coreografia” ao mostrar, num quadro fixo, um casebre em torno do qual camponeses passam despropositadamente, enquanto um diálogo estilizado entre trabalhadores rurais é proferido sobre a cena. Durante a narrativa, que não possui uma cronologia, esse questionamento aparece várias vezes até se concluir no final, quando as cores invertem e a afirmação vem: “documentário”.
O filme constitui uma fuga ao modelo predominante dos anos 1960 – assim como, a exemplo de comparação, podemos acrescentar Nelson Cavaquinho (1969), de Leon Hirszman –, por escapar de vozes explicativas, que traziam forte necessidade de diagnosticar e analisar o Brasil. Assim, “Lavra dor” cria uma nova forma de documentar, bem como uma nova maneira de olhar o documentário: a da métrica pela montagem. “A fome fomenta. […] A fome frustra”.Poderia ser Dorothea Lange ou Walker Evans, se eles fossem cineastas. A polifonia das vozes que nunca nenhum verso poderia abarcar. A terra vasta que nenhum poema épico daria conta.
REFERÊNCIAS
BERNARDET, J. C. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
LAVRA DOR. Paulo Rufino, Ana Carolina,1968.