Crítica | Pobres Criaturas (2023), Yorgos Lanthimos

Por: Gabriel Pinheiro

O cineasta grego Yorgos Lanthimos consolidou-se nos últimos anos como um dos mais imaginativos diretores de sua geração. Este reconhecimento deve-se, em parte, à peculiaridade presente nas narrativas que Lanthimos concebe, caracterizada por um constante sentimento de estranhamento. O elemento distintivo desse estranhamento, evidenciado na filmografia dele, notável por obras como Dente Canino (2009), O Lagosta (2015), O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) e A Favorita (2018), reside, predominantemente, na utilização de elementos com um alto grau de um caráter sintético. Tais elementos abrangem desde a concepção de cenários elaborados de forma minimalista e extremamente assépticos até a movimentação da câmera que emprega movimentos como o zoom para além de conferir novos significados à experiência visual, reforça presença da máquina no espaço da cena. 

Possivelmente, o componente que mais destaca a natureza “sintética” da filmografia de Yorgos Lanthimos, e consequentemente constitui a principal fonte de estranhamento presente em seus filmes, é a representação dos personagens. Estes, por meio de reações pouco convencionais e desprovidas de rodeios, distanciam-se consideravelmente da verossimilhança com seres humanos reais. Em Pobres Criaturas (2023), o cineasta grego aprofunda a sua exploração dos seres humanos sintéticos, buscando inspiração em nada mais nada menos que na figura icônica do monstro de Frankenstein.

Sem entrar muito em detalhes da trama, Pobres Criaturas é baseado no livro homônimo de Alasdair Gray, que faz referência ao clássico Frankenstein da escritora Mary Shelley, obra pioneira de 1818 e uma das mais importantes na história da ficção científica. Com direção de Lanthimos e produção de Emma Stone, a história se desenrola em em uma Era Vitoriana impressionista e segue Bella Baxter (interpretada por Emma Stone), trazida de volta à vida pelo cientista Dr. Godwin Baxter (interpretado por Willem Dafoe). Com o desejo de experimentar mais do mundo, ela foge na companhia de um advogado (Mark Ruffalo) e embarca em uma jornada pelos continentes. Livre dos preconceitos de sua época, Bella busca igualdade e libertação.

O diretor nos posiciona imediatamente em um ambiente desconfortável, introduzindo o estranho através de uma trilha sonora bombástica repleta de dissonâncias e sons incongruentes, com o intuito de desorientar o espectador e prepará-lo para tudo que se desdobrará a seguir. O peculiar, o bizarro, o sem sentido e o absurdo, elementos que já são marcas distintivas do cineasta grego, atingem seu ápice aqui com um mundo imaginário que, apesar de se assemelhar vagamente ao nosso, possui suas próprias regras. É nesse cenário surreal e de sonho febril que Lanthimos nos imerge, demonstrando completo domínio de sua arte ao explorar os espaços que elaborou de todas as formas possíveis e comandar de maneira exemplar todos os acontecimentos em cena.

Esse filme explora a descoberta do “eu” por parte de Bella, ao mesmo tempo em que ela descobre o mundo pela primeira vez. Um conto rousseauiano, que instiga a reflexão sobre a premissa de Jean-Jacques Rousseau de que o ser humano nasceria intrinsecamente bom, suscitando a questão crucial de como a influência do mundo ao redor dele pode eventualmente corromper essa natureza original. E afinal, qual parte de nós nos faz quem somos? Discussões profundas, como essa sobre a relação entre corpo e mente, carne e consciência, são colocadas na mesa de cirurgia da forma mais elegante possível em um desenrolar que não abre mão, em nenhum momento, do tom perversamente cômico que o filme mantém do início ao fim. 

Dafoe e Ruffalo estão ótimos em seus papéis, cada um deles se jogou no abismo da mente perturbada de Lanthimos e entregou performances que podem ser lidas em diversas camadas. Mas essa jornada de descoberta tem uma estrela, e que interpretação espetacular. Emma Stone nos faz questionar se, em algum momento da história do cinema, uma atriz se divertiu tanto em cena como ela o fez aqui. Stone abraça o cômico e o absurdo, mergulhando de cabeça neles e deixando todos encantados e desconcertados com tamanha entrega que ela dedicou ao papel de Bella. Mesmo quando o filme toca em aspectos mais sérios da personagem, como, por exemplo, o modo como ela é constantemente tolhida por todos à sua volta, Stone consegue fazer disso um show dela mesma, tamanha compreensão da psique da personagem.

Como já fez inúmeras vezes, Yorgos Lanthimos nos conduz pela mão e nos transporta para um lugar desconfortável em um espaço estranho, conquistando-nos pelo domínio que ele tem da narrativa, completamente descompromissada com a realidade. Seus universos, meticulosamente pensados e plenamente explorados por ele, geralmente nos apresentam realidades com regras que em nada se assemelham ao nosso mundo. Constantemente, nos vemos questionando por que aqueles personagens tão esquisitos não desafiam as regras do universo em que vivem, ou o motivo daquelas regras e leis universais pré-estabelecidas pelo filme existirem. Aqui reside a genialidade que permeia toda a filmografia do diretor grego: Ao nos apresentar um mundo onde os personagens são submetidos a leis e regras absurdas, refletimos sobre quais convenções sociais nós também seguimos sem nem ao menos questionar.

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