
Por: Nicolas Martins Duarte
Graduando em Imagem e Som, UFSCar
Líder de grupos ativistas e comunista, o diretor norte-americano Boots Riley certamente é familiar ao cenário de greves trabalhistas, e toma uma decisão pertinente ao fazer sua estreia nos cinemas com o longa-metragem Sorry to Bother You (2018). O filme acompanha Cassius Green (Lakeith Stanfield), um jovem anteriormente desempregado que passa a trabalhar em uma empresa de telemarketing, e gradualmente desenvolve uma “persona” na qual se apoia para subir na escada corporativa, onde, ao invés de vender enciclopédias, passa a anunciar trabalho análogo à escravidão. Isso, claro, em detrimento das suas relações com sua namorada e colegas de trabalho, que se unem e organizam para rebelar contra a gerência e exigir condições e salários dignos.
Cash abre mão de sua moral e identidade própria ao se submeter à princípios indecorosos em prol de certos anseios facilmente perceptíveis na psique no personagem: ele acredita desejar obter capital para saciar suas necessidades básicas, o que se prova verdade até certo ponto, visto que quer prover para sua família, ajudando seu tio que está com o aluguel atrasado para evitar que ele assine o contrato de trabalho vitalício na empresa semi-escravista “WorryFree”; mas nota-se o protagonista já possui um carro, mesmo que sucateado, e uma moradia razoável. Revela-se então outro dos seus desejos intrínsecos, uma busca por grandeza, tanto no sentido de se provar habilidoso e memorável, quanto de possuir um poder econômico considerável, algum conforto e luxo para além do básico. Desse desejo, o protagonista parece ter menos ciência. E essa segunda demanda gira em torno de outro tópico abordado no filme: a performance ultra masculina, a busca viril da aprovação e do interesse feminino. Cash diz para sua namorada e para si mesmo, ao tentar se convencer que suas escolhas são justificáveis, que “só aceitou o emprego para se tornar mais interessante para ela”. São essas falhas inerentes do ser humano que alimentam o sistema capitalista, a hierarquia de classes e raças, e o patriarcado debatidos no filme.
As atuações do filme no geral são muito satisfatórias, com uma menção honrosa a Lakeith Stanfield e Steven Yeun, que, como de costume, está muito bem no seu papel de Squeeze, colega de trabalho de Cash e líder do movimento grevista, nos entregando o sarcasmo e a acidez bem equilibrados com a comédia proposta. Tessa Thompson, como Detroit, a artista plástica e namorada de Cash, sustenta seu papel como personagem responsável por trazer leveza às cenas quando necessário, mas também como deuteragonista que o motiva e repreende por suas ações. Armie Hammer como Steve, o CEO da “WorryFree”, tem um ar predatório conhecido, mas é o pilar de algo intitulado capitalismo “amigável” e tardio. Assim como Cash, ele tem sua própria “persona”, mas cujo o objetivo é mascarar a exploração do proletário, assumindo um papel de “cuidador” racional acima dos outros; que se torna mais óbvio ao final do filme com a criação dos Equisapiens, literalmente transformando os trabalhadores em animais de carga. Busca encobrir-se a divisão entre “nós” e “eles”. Não há gerência e funcionários, há uma “família”. Claro que essa caricatura é propositalmente exagerada e não engana sequer os personagens, muito menos a audiência (pelo menos não deveria).
Bom, apesar de ter sido no mínimo verborrágico ao analisar as críticas do filme, digo que devo mudar de forma drástica o meu posicionamento a partir de agora. Nada obstante o uso de conceitos muito cabíveis e pareceres conscientes, ainda creio que o filme se destaca muito mais no seu estilo e linguagem técnica, nos quais me aprofundarei em breve, do que na sua trama e mensagem propriamente ditas. Por muitas vezes, a crítica é rasa e se apresenta de forma muito simples em benefício do andamento do roteiro. Lastimavelmente, sabe-se que na maioria das vezes nem vender-se à uma empresa e abrir mão dos seus valores e dignidade seria o suficiente para que um homem negro em sitação de vulnerabilidade econômica enriquecesse subtamente. Não basta fazer essa escolha; muitos sacrificam esses valores por necessidades muito mais vitais que as do protagonista. A decisão parece descomplicada, existe certo e errado, os protestos representam alguma violência policial, mas não são brutais (e certamente não letais), e as pessoas que estão ali parecem ter pouquíssimo a perder.
Provavelmente com certa influência de La Haine (1995), do francês Mathieu Kassovitz, o filme também procura revelar as tensões de uma juventude às margens, que compartilham de uma urgência política e incidem contra às estruturas de poder. Apesar de caminhos estéticos e tonais distintos, aborda-se a revolta coletiva: enquanto Sorry to Bother You nos mostra a eclosão de uma greve trabalhista contra a exploração corporativa, o seu antecessor se desenvolve e emerge no vácuo de uma greve perante a violência policial e seus desdobramentos. Ambos formas de resistência nascidas da mesma sensação de abandono e injustiça, mas somente um dos dois consegue se aprofundar de maneira satisfatória nessas complicações. Riley também se perde no absurdismo proposital do seu filme e no rumo da narrativa, ao inserir uma cena escandalosa de ciência ficcional no seu clímax. Reitero que a metáfora de animais de carga sendo trazida ao literal poderia ser muito interessante, mas não é bem executada e traz um ar cômico em um dos poucos momentos inoportunos da obra.
Assim sendo, a genialidade e a inovação colossal do longa-metragem estão, na verdade, nos artifícios usados para trazer visibilidade a essa proposta ousada. Ele é uma aula completa de trilha sonora (produzida pelo próprio diretor) e aposta principalmente no uso da música de forma diegética, o que colabora imensamente com a imersão do espectador e, consequentemente, com o impacto causado pela montagem, a melhor parte de Sorry to Bother You. As transições são simplesmente alucinantes. É uma tarefa fatigante tentar pensar em referências que tenham originado este filme, é preciso segurar-se na cadeira (ou na poltrona, para aqueles que tiveram o privilégio de assisti-lo nas grandes telas) ao ser literalmente puxado junto com Cassius, como quem cai de paraquedas e invade a sala de estar, banheiro, trabalho, e onde mais possam estar os clientes (porque a venda certamente será bem-sucedida) do protagonista, um teletransporte fascinante. Temos ainda o sentimento de triunfo e deslumbre que preenche o público quando os objetos da casa de Cash vão se transfigurando na frente dos nossos olhos. Enquanto ele beija sua namorada através dos cômodos, percebemos a passagem do tempo e seu sucesso financeiro.
É impossível não se dar conta imediatamente de que está assistindo um filme diferente de tudo que já foi explorado anteriormente, quando se escuta pela primeira vez o protagonista ser dublado por outro ator durante a cena; é a melhor representação de code-switching (o ato de falar e agir de uma certa maneira, diferente do seu caráter autêntico, para se encaixar em um ambiente) que já presenciei, e encaixa-se perfeitamente na proposta do filme. Assim como o uso do beep, que censura o nome do personagem de Omari Hardwick, completamente dominado por sua “persona” e irreconhecível para os outros e para si mesmo, a ponto de perder seu nome (e a visão do olho esquerdo, ao manter-se alheio aos protestos do grupo ativista “Left Eye” para, assim como Cash, não ser consumido pelo peso das suas ações).
Em síntese, Sorry to Bother You (2018) comete algumas gafes ao tropeçar em certas frivolidades narrativas e abordagens ligeiramente rasas à questões complexas, mas impressionou muito positivamente com sua engenhosidade estética. Com um arsenal de recursos audiovisuais, e cenas que se aventuram até no stop motion rudimentar e grotesco para causar estranhamento, Boots Riley constrói uma experiência cinematográfica que se afasta radicalmente do convencional; uma sátira ferrenha, visceral e cômica, e um exemplar inovador de cinema político contemporâneo.
REFERÊNCIAS:
MAGGIE MAE FISH. Society, Late Capitalism, & Social Scripts | An Analysis of SORRY TO BOTHER YOU. Youtube, 13 de mar. de 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UGnQLgpaupU. Acesso em: 14 de mai. de 2025.
RAMÓN RASMUSEN, Conor. The Equisapien Encounter – Reading Enrique Dussel In Boots Riley’s “Sorry to Bother You”. The New Polis, 2019. Disponível em: https://thenewpolis.com/2019/01/17/the-equisapien-encounter-reading-enrique-dussel-in-boots-rileys-sorry-to-bother-you-part-1-conor-ramon-rasmusen/. Acesso em: 14 de mai. de 2025.