O curta Darluz é baseado em um conto do Marcelino Freire e explora densamente os recursos visuais e sonoros que dialogam com a linguagem e a estrutura do conto. O filme, que à princípio não agradou aos professores da sua banca de TCC, ganhou trinta e oito prêmios em diversos festivais do Brasil. Darluz possui um intenso trabalho com os atores e uma montagem ousada. Confira o curta e uma entrevista exclusiva com o seu diretor, Leadro Goddinho.
Por Fernanda Sales* e Sofia Mussolin**
RUA: Percebe-se uma densa exploração dos recursos visuais e sonoros possíveis, como isso estava posto na obra literária? Quais foram os desafios de adaptação para a linguagem audiovisual?
Leandro Goddinho: O conto DARLUZ, de Marcelino Freire trás a personagem título falando em primeira pessoa. Ela conta e repete várias vezes que dá todos os filhos que tem e não se arrepende disso. A Frase “dei, daria e dou” é repetida diversas vezes na narrativa, trazendo a dubiedade de dar os filhos e ‘dar’ no sentido sexual. A escrita de Marcelino é ritmada e explora bastante os sons e significados das palavras. Na obra literária, a personagem não tem a mesma trajetória do filme, no qual ela é presa e vira uma estrela da mídia. O roteiro foi escrito na época do caso Isabella, quando todos os personagens envolvidos viraram celebridades. E ainda fiz referência ao filme “Assassinos por natureza” (Oliver Stone, 1994) que também trata de foras da lei que ficam famosos. Marcelino é nordestino e tem na sua escrita uma característica muito forte do cordel, utilizando-se de rimas e sons que ajudam a narrativa. Muitos textos ditos no filme são também rimados, embora talvez não seja tão perceptível quanto no conto.
RUA: A montagem exerce um papel particularmente importante tanto para a narrativa quanto para o estimulo de sensações que o filme incita. Ao assistir ao curta, ficamos curiosos sobre como teria sido o trabalho entre diretor e montador, imaginando uma relação de trabalho bastante próxima e em sintonia. Nos créditos, descobrimos que o diretor também assina a montagem do filme. Comente tal processo – de montagem sendo o diretor. Foi difícil, quais foram as questões?
L.G.: A montagem do filme não foi um grande problema. O difícil foi passar pro roteiro as ideias que eu queria para a montagem. Na faculdade a gente só aprende a escrever roteiros clássicos. E DARLUZ não tem uma narrativa/montagem clássica. Por isso várias cenas foram filmadas sem a equipe entender bem pra quê. Porque elas não estavam no papel. “Por que todos os homens tem que ser filmados com orelha de coelho?! Por que as três atrizes são filmadas falando o mesmo texto?!” Depois de editado as pessoas compreenderam melhor o processo de sobreposição e incrustação de imagens e a relação dos narradores que funcionam como um coro teatral para o filme. Darluz foi minha primeira montagem e muita coisa foi criada na hora da edição. Tentei dar pra outras pessoas montarem, mas ninguém entendia e gostava das minhas ideias. Como eu não quis abrir mão das maluquices, resolvi montar eu mesmo. A própria faculdade foi contra o roteiro no pitching que aprovava os projetos de TCC. E no dia da banca fomos MUITO criticados, pra não dizer humilhados. Um os componentes da banca chegou a dizer que o filme era muito ruim e que jamais seria selecionado em algum festival, e o filme acabou ganhando 38 prêmios e foi pra mais de 70 festivais no Brasil e exterior. E fomos aprovados na banca, claro! [Risos] TODAS as críticas eram referentes à montagem exagerada e “teatral do filme”, como se fosse errado fazer cinema dessa maneira. Sou formado em teatro também, fiz Escola de Arte Dramática na ECA/USP. Graças ao teatro não me apeguei às regras chatíssimas que o cinema impõe como corretas.
RUA: A decisão de colocar atrizes falando diretamente para a câmera contribui para uma interação intensificada entre público e enredo. Como foi tal escolha (por que não colocar um narrador over, por exemplo?). Assim como esta, percebe-se outras escolhas que de certa forma incitam um diálogo mais direto com o espectador. Como tal intenção relaciona-se com os assuntos abordados?
L.G: Como disse, no teatro é bastante comum o ator falar diretamente com o público. Depois que vi os filmes do Peter Greenaway na época na faculdade, fiquei vidrado, porque era exatamente daquela forma que eu queria fazer cinema. Uma mistura dos gêneros épico, lírico e dramático. Com atores narradores, que hora estão no jogo da cena e hora se distanciam para contar o que pensam da cena. São várias camadas distintas que se formam quando esse jogo se estabelece. E é muito difícil fazer com que isso seja crível para a platéia. Com o DARLUZ, por exemplo, tem espectador que se recusa a aceitar essa proposta cênica! E no caso dessa história, era imprescindível que os atores falassem com a platéia. Por que o filme não é sobre a DARLUZ, é sobre o que as pessoas pensam da DARLUZ. Então a arma está apontada pro público, não para ela. Eu, como diretor, estou julgando aqueles que julgam. Apedrejando os que apedrejam. Então é com eles que os personagens tinham que falar.
RUA: É perceptível um intenso trabalho com os atores. Gostaríamos de saber como foi a seleção do elenco e o trabalho ao longo do processo.
L.G.: Eu conheço muitos atores, por conta da minha história no teatro. Então o trabalho foi zero. Não fiz teste. Chamei meus amigos da EAD, que são talentosíssimos, ensaiamos e pronto. Sou muito exigente na direção dos atores. Acho que o ator é o elemento mais importante do cinema. E já ouvi grandes atores do cinema e da TV dizendo que no Brasil, mesmo os grandes diretores não sabem lidar com os atores. Na faculdade, mesmo existindo a disciplina de DIREÇAO DE ATORES, não se aprende a dirigi-los. Isso é um problema grave, em minha opinião. Já vi muito diretor jovem tratando o ator como mais um tripé no set, ou ainda chamando o primo ou o vizinho pra atuar nos curtas, achando que qualquer um dá conta da função. Já vi atores mal dirigidos destruindo excelente curtas. E é assim que funciona. Se a foto estiver linda, a direção de arte perfeita, o roteiro incrível, e os atores forem dirigidos como samambaia, simplesmente nada acontece. A Mawusi Tulani, protagonista do DARLUZ, ganhou sete prêmios de melhor atriz.
RUA: Como foi a participação da sua Universidade no processo do curta?
L.G.: Nós tivemos total apoio da Universidade Anhembi Morumbi. Nosso projeto foi selecionado pra ser filmado todo em 16mm e recusei. Só duas cenas foram feitas em 16mm. O resto foi feito em vídeo e câmeras de celular. Rodando os festivais por aí, e mesmo fora do Brasil, percebo que é uma tendência do aluno de cinema reclamar da sua faculdade. Dizer que não consegue câmera, não consegue equipamento, nem estúdio. Todo mundo reclama, o que é natural. Nós também tínhamos as mesmas dificuldades. Mas mesmo com uma infra estrutura pequena dentro do curso, já que sou da primeira turma do curso de cinema da Anhembi, consegui dirigir quatro curtas dentro da faculdade nos anos que estive lá.
RUA: O trabalho sonoro exalta ainda mais o tema que o curta aborda, como foi essa construção? Comente sobre a receptividade do público a partir do tema, assim como o grande número de prêmios recebidos.
L.G.: Eu queria que o filme tivesse esse exagero da ópera, com músicas dramáticas que ajudassem a contar a narrativa. Obviamente o resultado técnico do som do filme não é dos melhores, porque depois não foi feito nem mixagem [Risos]. Mas acho que está dentro da proposta do filme, que também não tem primor técnico nenhum. E tudo bem também. Era o que tinha praquele momento.
A receptividade do curta foi muito além do que eu esperava. Muita gente ama e muita gente odeia o filme. E quando odeia, é com muita propriedade, ninguém tem dó de falar na minha cara que o filme é muito ruim, o que eu adoro! Acho que o curta mexe tanto com o espectador que ele se sente no direito de falar a real depois que assiste. Eu adoro ouvir as pessoas que odeiam o filme. E os trinta e oito prêmios foram uma surpresa ainda maior. Toda a equipe foi contemplada. Ganhou prêmio de melhor atriz, de roteiro, de fotografia, de direção, de montagem… Fui para quase todos os festivais do Brasil com o curta. Ele também passou em vários outros países, em especial na Alemanha, onde já foi exibido em quatro festivais. Fui duas vezes pra lá por conta dele. Tem alguma coisa no filme que as pessoas reconhecem e admiram, que vai além da baixa qualidade técnica. Acho que é a culpa que deveria ser da personagem e joga-se pro espectador que faz com que as pessoas tenham sentimentos tão exaltados a respeito do filme.
*Fernanda Sales é graduanda do curso de Imagem e Som na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Editora Geral da Revista Universitária do Audiovisual (RUA)
**Sofia Mussolin é graduanda do curso de Imagem e Som na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Editora da Seção Curtas.