Por: Pedro Dugaich
Graduando em Ciências Sociais na Universidade Federal de São Carlos
Lançado em 1995, na passagem de um século repleto de grandes processos nem tão prazerosos à determinadas parcelas da humanidade, o filme La Haine (1995), dirigido por Mathieu Kassovitz, é retomado na forma de espetáculo musical em 2024. O longa, atemporal como o sentimento de ódio, continua a enclausurar nossos esforços de refletir o indizível signo da violência no corpo e na consciência. São 98 minutos de cenas discorrendo sobre as implicações de um mundo no projeto existencial de sujeitos descendentes das culturas sepultadas pelo colonialismo.
Os primeiros segundos propõem uma imersão realista ao exibir imagens em sequência de uma manifestação em resposta ao caso Makomé M’Bokole — jovem negro morto brutalmente por um policial com um tiro na cabeça durante interrogatório. As cenas são concomitantes à eterna voz de liberdade de Bob Marley em Burnin’ and Lootin’, complementando a atmosfera caótica quase espontânea à violência que embasa o filme. O refrão — “queimando e bagunçando esta noite / queimando toda poluição hoje a noite / queimando toda ilusão esta noite” — reitera a característica reativa dos sujeitos que manifestaram seu ódio naquela noite.
Desse modo, Mathieu Kassovitz introduz o enredo entre a linguagem documental e a ficção realista, sugerindo a constante tensão filme-realidade. Disso surge uma narrativa envolvente na direção de devaneios surrealistas que se realizam na experiência de três jovens residentes das banlieues — Hubert (descendente de africanos), Vinz (descendente de judeus) e Saïd (descendente de árabes). O trio é amigo de Abdel Ichaha, um jovem árabe sequestrado pela polícia durante as manifestações e também espancado gravemente em um interrogatório. Ao encontrar uma arma perdida pela polícia, Vinz decide usá-la para matar um policial, prometendo vingança, caso Abdel morra. Desse modo, o filme exibe as próximas 24 horas desses três jovens no dia seguinte às ocorrências.
Por coincidência ou consequências políticas da história, os protagonistas têm e representam origens étnica-raciais distintas presentes no interior do estado-nacional da França. No entanto, ao mesmo tempo que são diferentes, detém um denominador comum: a descontinuidade de seus pertencimentos culturais autênticos gerados pelas garras do colonialismo.
O apelo ao p&b demarca essa interface histórica que incita os problemas dados na trama. Este recurso transfere o público para um universo, que mesmo sem cor, persiste em representar seus contrastes capitais; se tudo está em p&b, por que ainda é possível perceber simbolicamente desigualdades e tensões tão marcantes quanto o vermelho do sangue? Nesta perspectiva, La Haine estabelece um diálogo com Frantz Fanon (2022), acerca da ideia de que o mundo moderno (leia-se colonial) é fechado em binarismos hierárquicos e antagônicos construídos pelo Branco — preto/branco, civilizado/primitivo, cultural/natural, moderno/tradicional, centro/margem, humano/não-humano. Ou seja, é um mundo cindido na impossibilidade da diferença e estabelecido na hierarquização.
Assim sendo, a violência aparece no filme não só como consequência, mas também como causa, raiz e motor fundante das relações sociais, tendo em vista que todo processo de colonização implica numa brutal desumanização do colonizado. Isso fica ainda mais evidente com os constantes choques do trio com as instituições da sociedade. Seja a família, o bairro, o centro da cidade, a polícia, a imprensa, o hospital ou a própria afetividade entre eles; todas relações estão marcadas pela tensão de algo que resultará na ação violenta.
Essa discussão é brilhantemente desenvolvida pelos embates entre Hubert e Vinz. Enquanto vagam pela cidade armados, Hubert, atravessado pela experiência do crime local e com fortes tendências a querer abandonar a periferia, tende a uma solução existencial via ódio reconstrutivo. Em todo embate, ele aponta seu discurso para a busca de outra realidade, talvez por meio do esporte, do estudo ou da migração, o ódio seria somente um impulso diário para reconstruir uma nova vida. Por outro lado, Vinz acreditava no potencial destrutivo do ódio. Para ele, a reação desmanteladora manteria a disputa com os responsáveis pelo sofrimento dos “seus”; essa posição tenderia a abrir caminhos para a destruição deste mundo irreconciliável e sem solução, tendendo a um impulso autodestrutivo, segundo suas palavras, a política de “não dar a outra face”.
Já Saïd, representa o desafogo entre os extremos de Hubert e Vinz e o motivo de várias reconsiderações impulsivas feitas pelos dois, seja por ser o mais novo ou por seu irmão ser um dos líderes paralelos locais. O jovem árabe se desenvolve na frequente frustração entre expectativa e realização do desejo; em quase todos os momentos que teve de lidar com possibilidades interativas, passou pela experiência de negação e pelo desejo não consumado. Essas situações são ilustradas quando ele vai até a cidade receber 50 francos e por uma confusão causada pelo Vinz, não consegue ter o dinheiro; ou quando tenta se aproximar de duas garotas em um museu e acaba sendo acusado de agressivo e violento. Ao mesmo tempo que é negado, Saïd busca transgredir essas convenções sociais violentas por meio da ironia, dando sentido à sua complexa personalidade que frequentemente recorre à piada e à contação de histórias, como se fosse uma espécie de fuga cotidiana.
La Haine materializa audiovisualmente a tese fanoniana de que todos esses valores ocidentais desumanizantes resultam em diárias tensões musculares e psicológicas no colonizado (Fanon, 2022; 2020). A violação da subjetividade internaliza as marcas da agressão colonial no corpo do colonizado, urgindo a necessidade de liberá-las periodicamente. A presença da dança de rua, da luta, as corridas incessantes da polícia, os gritos contra o público racista do museu, ou a cena imensurável de Vinz lutando com sua própria sombra em frente às televisões na moderna estação de trem, representam o momento em que a violência é muscularmente externalizada. O ritmo da vida é dotado pela reação eterna aos processos de interrupção da humanidade e, portanto, uma ação: seria um curador de arte mais “civilizado” do que um corpo tomado pelo ódio provocado pelo racismo, colonização e violência?
Por fim, a anedota “jusqu’ici tout va bien” (até aqui tudo bem) nos convida para entender a mensagem metafórica de La Haine. Ela é recitada dramaticamente pela voz de Hubert três vezes durante a exibição. O compasso da frase dita o ritmo da trama aludindo a uma bomba relógio; esse ritmo é representado nas transições de um ambiente para o outro, marcado pelo som de tiro. A bomba explode na última cena da obra, quando Vinz é assassinado da mesma maneira que Makomé; nesse momento, Hubert e Saïd são recolocados no problema fundamental da anedota: “o que importa não é a queda, é a aterrissagem”, contudo, como aterrissar nesse mundo de violentas interrupções da humanidade?
A anedota soa como a moral de uma fábula que retém os significados totais do filme, tanto para o indivíduo, quanto para sociedade. A queda é contingente e não uma escolha; é a condição de existência posta aos sujeitos racializados. Todavia, há uma chave criativa de leitura para o futuro, podendo projetar não somente a colisão, mas também a aterrissagem, isto é, a continuidade para a criação de um novo amanhã. Enquanto é possível aterrissar, continua sendo quase impossível projetar a maneira que isso deve ser feito, em termos psíquicos e estruturais; no caso de Hubert e Saïd, como aterrissar ao ver seu amigo baleado? Desta forma, La Haine sugere uma reflexão existencial ambígua de agência, na qual, a queda, e por conseguinte, a destruição, é simultânea a possibilidade de continuidade em resposta ao processo de interrupção da autenticidade subjetiva ou da própria existência fisiológica. O ponto e vírgula é posto no horizonte de expectativa daqueles que têm/tiveram seu passado e futuro sequestrado, ao lado do ponto final. Neste mundo não existe bom e mau, apenas o ódio consumido pelo desejo de um amanhã diferente do hoje.
REFERÊNCIAS
De Assis, Ryan Brandão Barbosa Reinh. Cinéma beur e Banlieue-film: reflexões a partir de Le Thé au harém d’Archiméde e La Haine. 2016. Dissertação (Mestrado em Artes, Cultura e Linguagens) – Instituto de Artes e Design da Universidade de Juiz de Fora.
De Lima, Francisco Toledo Dayrell. Por entre as Fissuras do Modelo Republicano Francês: Análise Fílmica de O Ódio (1995) de Mathieu Kassovitz. Humanidades em diálogo, v. 1, n. 1, p. 199-214, 2007.
Fanon, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2022.
Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: UBU Editora, 2020.
Makomé foi morto na frente de testemunhas. No julgamento de Pascal Compain, dois inspetores contaram a cena. –Libertação
Vincendeau, Ginette. La Haine (Mathieu Kassovitz, 1995). Londres: I.B. Tauris & Co. Ltd, 2005.