Por: Felipe Tavares
Redação RUA
RESUMO
O presente ensaio visa abordar o jogo eletrônico Death Stranding (2019),
desenvolvido pela Kojima Productions, através da perspectiva da solidão,
tangenciando sua influência no universo construído pela obra e a maneira em que
conceitos como isolamento, conexão, relações humanas, corda e bastão são
retratados e refletidos narrativamente, direcionando o olhar para alguns pontos e
personagens específicos da trama, com destaque para o protagonista Sam Porter
Bridges.
Palavras-chave: Death Stranding, jogo eletrônico, solidão, isolamento, conexão
INTRODUÇÃO
Lançado em 8 de novembro de 2019, Death Stranding é um jogo eletrônico
de ação e aventura desenvolvido pela Kojima Productions e publicado pela Sony
Interactive Entertainment.
A história da obra se passa em um mundo pós-apocalíptico, no qual um
evento catastrófico com o mesmo nome do jogo devastou o planeta e conectou o
mundo dos vivos e mortos através de uma dimensão paralela conhecida como “A
Praia”. Partindo disso, o protagonista Sam Porter Bridges, interpretado por Norman
Reedus, recebe a função de conectar os moradores das Cidades Unidas da América
(antes Estados Unidos da América) através da rede quiral, uma espécie de internet
desenvolvida através do material quiralium, que se encontrou em abundância no
mundo após os eventos trágicos mencionados anteriormente.
A jornada de Sam tem início após a morte de sua mãe, Bridget Strand, que
em seu leito de morte convenceu o filho a dar sequência ao projeto de reconstrução
da América, assim como assumir a missão de resgatar sua irmã Amelie, capturada
por um grupo separatista chamado Homo Demens, que visa impedir a
reestruturação da nação. A fim de concluir tais objetivos, o protagonista percorre o
país realizando entregas de recursos e suprimentos contando com o auxílio de um
Bebê Bridge (ou BB), sendo um feto prematuro que se encontra entre a vida e a
morte utilizado como ferramenta para a detecção de EP’s (Entidades Praianas). Em
relação a elas, se tratam de entidades de outro plano que estão “presas” ao mundo
dos vivos e não podem ser vistas por pessoas sem DOOM’s (condição que torna o
indivíduo mais próximo à Praia, resultando em dons sobrenaturais), se tornando
mais um obstáculo para a missão de Sam e promovendo diversas dinâmicas
interessantes em termos de jogabilidade e narrativa.
Sendo assim, Death Stranding propõe a criação de um universo complexo,
abordando diversos conceitos pautados no sobrenatural e ficção científica enquanto
desenvolve sua história que, dentre alguns temas, trata da solidão e como pode se
tornar a maior ameaça em meio a tantos perigos que aquele mundo apresenta.
Solidão e isolamento
No universo do jogo, os sobreviventes vivem em abrigos a fim de manter
isolamento físico das ameaças externas, assim como emocional por conta do receio
de estabelecer laços novamente.
Leandro Karnal em seu livro “O Dilema do Porco Espinho: Como encarar a
solidão” discorre sobre o homônimo dilema proposto pelo filósofo alemão Arthur
Schopenhauer, que promove uma analogia entre as relações humanas e porcos-
espinhos no inverno, uma vez que precisam se esquentar, mas ao mesmo tempo se
machucam ao se aproximarem, questão que discute sobre a dificuldade de
estabelecer relações e mantê-las mesmo com os inevitáveis incômodos. O
historiador e pensador brasileiro observa tal dilema através de diferentes
perspectivas, mas mantém a ideia de que as pessoas sempre buscam uma forma de
lidar com a solidão, do mesmo modo que ela pode se fazer presente através de
diversos cenários. Transpondo tais pensamentos para Death Stranding, nota-se que
alguns personagens importantes para a trama vivenciam tal sentimento de acordo
com suas particularidades. Mama, vivida por Margaret Qualley, perdeu o contato
com a irmã gêmea após um evento trágico que afetou as duas e, ainda que tenha a
presença de uma EP consigo, a personagem segue em um estado de melancolia e
lida com isso através de seu trabalho e pesquisas. Já a solidão de Deadman
(Guillermo del Toro/Jesse Corti) se manifesta por conta de uma condição que o
diferencia das outras pessoas, de modo que, mesmo sendo um membro da Bridges
e conversando frequentemente com outras pessoas, não possui a real sensação de
pertencimento àquele lugar. Fragile (Léa Seydoux) é tratada praticamente como uma
exilada por conta de uma tragédia provocada por outra pessoa, carregando um
sentimento “injusto” de culpa que a priva de se relacionar profundamente com os
outros. Heartman (Nicolas Winding Refn/Darren Jacobs) lida com a solidão tentando
revertê-la a qualquer custo, visto que perdeu a esposa e filha, e tenta recuperá-las
acessando a Praia constantemente ao provocar paradas cardíacas que o “matam”
temporariamente. Até mesmo os antagonistas Higgs (Troy Baker) e Cliff (Mads
Mikkelsen) são personagens solitários pois, mesmo estando cercados de soldados e
entidades, seus objetivos partem de tragédias do passado que os tornaram “vazios”
emocionalmente.
Observa-se que, mesmo se manifestando em pessoas totalmente diferentes,
a solidão possui um agente em comum: o trauma. Cristina Horta de Almeida (2022)
propõe reflexões em torno da influência do trauma na condução narrativa do jogo,
com destaque para a situação de Sam. A tese desenvolvida pela autora direciona o
olhar para a maneira com que o protagonista parte de suas próprias tragédias, ponto
que impulsiona sua fobia ao toque, à medida que compartilha dos problemas de
outras pessoas, fazendo com que a morte e a dor se tornem pontos fundamentais
em Death Stranding, assim como “justificativas” para a promoção do isolamento em
todos os aspectos.
Sendo assim, as experiências traumáticas vivenciadas pelos personagens
potencializam suas individualidades ao ponto de perderem o apego pela figura do
“outro”, assim como a capacidade de desenvolver laços em sociedade.
Conexão como contraponto
Mesmo com as questões citadas anteriormente, o objetivo de Sam ainda é
conectar o país novamente, ainda que precise passar por diversos obstáculos para
atingi-lo. E é justamente nessa perseverança que Death Stranding desenvolve a
mensagem de esperança em meio ao caos.
Diogo Serafim, em texto publicado no site “multiplot!” em 2020, discute sobre
o filme Kairo (2001), de Kiyoshi Kurosawa, tratando da maneira com que a solidão
age no contexto apocalíptico do longa metragem. Diogo promove algumas ideias
interessantes em torno do fim do mundo e da desconexão do “Eu” com o mesmo,
assim como a interpretação dos fantasmas não serem figuras propositalmente
assustadoras e perigosas, mas seres que se encontram sozinhos, onde o autor
afirma que “[…] o maior medo que se pode ter é continuar sozinho mesmo após a
morte”. Atribuindo esse pensamento ao universo do jogo, tem-se que as EP’s
também se mostram figuras presas a um plano ao qual não pertencem, como se
abraçar de vez a outra dimensão causasse o receio de abandonar as próprias
memórias. Tal questão é reforçada no jogo pois, a partir de determinado momento
da história, Sam tem a habilidade de cortar o cordão que conecta as entidades entre
os planos, em uma ação que se assemelha muito mais a um processo de libertação
do que a um exorcismo.
Abordando o tema do apego à vida, Serafim comenta que “É preciso afirmar
estar vivo, a vida não é uma propriedade passiva, e sim um enfrentamento ativo face
às forças erosivas da existência”. Com isso em mente, Death Stranding se torna um
exemplo de “estímulo” à vida, sendo que os personagens, em um primeiro momento,
se isolam por conta de seus traumas, mas aprendem a lidar com eles e retomar
relações com outras pessoas. O porco-espinho recusa-se a morrer de frio no inverno
e arruma formas de romper a barreira da dor para se manter aquecido ao lado de
um companheiro. Algo semelhante pode ser observado em Evangelion: 3.0 + 1.0
Thrice Upon a Time (Anno; Nakayama; Maeda, Tsurumaki, 2021), que apresenta
uma visão surpreendentemente positiva em meio ao caos apresentado pelo filme, na
qual os personagens optam por tentar seguir com a vida e valorizar as relações
humanas, reforçando a ideia de que o cenário apocalíptico pode causar
afastamentos em um primeiro momento, mas a reconstrução dos laços é algo
intrínseco aos seres humanos, ponto que Karnal (2018) também aborda ao afirmar
que a humanidade é composta por seres gregários que possuem a característica da
coletividade em sua natureza. Um exemplo simples que ilustra bem o reflexo desse
pensamento pode ser visto em uma das missões do jogo, na qual Sam realiza
entregas entre dois abrigos distantes com a intenção de “reatar” o relacionamento de
um casal que há muito tempo não se via, chegando ao ponto de levar uma pessoa à
outra como se fosse uma encomenda a fim de finalmente restabelecerem suas
conexões.
Outro ponto que aborda a mensagem da obra se encontra na trilha sonora,
que traz algumas canções melancólicas que ecoam pelas paisagens nas quais Sam
se torna apenas um detalhe, ao mesmo tempo que determinadas composições
indicam que as figuras solitárias estão passando por um algo temporário e que
mudanças vão chegar, sendo possível observar tal ideia no próprio nome de
músicas como “Alone We Have No Future” (Sozinhos Não Temos Futuro) e “The
Face of Our New Hope” (O Rosto da Nossa Nova Esperança), ambas compostas por
Ludvig Forssell.
Corda e bastão
Em entrevista ao IGN EUA em 2016, o diretor do jogo Hideo Kojima afirmou
ter se inspirado no conto “A Corda” (1960), de Kobo Abe, para a criação dos
conceitos de Death Stranding. Um dos trechos do texto presente nos créditos iniciais
do jogo é “A ‘corda’, assim como O ‘bastão’, são as ferramentas mais antigas da
humanidade. O bastão para manter o mal distante, a corda para trazer o bem para
nós. Eles foram nossos primeiros amigos, da nossa própria invenção. Onde quer
que houvesse pessoas, havia a corda e o bastão.”
Além da influência na jogabilidade, tais “ferramentas” também afetam
aspectos da narrativa. A fobia do protagonista se torna seu bastão, impedindo-o de
manter proximidade com as outras pessoas, como se o mal a ser afastado fosse
representado através da ideia de estar perto de alguém física e emocionalmente.
Por outro lado, são justamente essas pessoas afastadas que se tornam a corda de
Sam, pois mesmo com a aparente indiferença dele em relação à elas e praticamente
tudo que acontece ao seu redor, é fornecido apoio constante à sua missão.
Deadman busca de diversas formas facilitar os trajetos do protagonista através do
desenvolvimento de novas ferramentas e realização de ajustes. Fragile vai além do
âmbito profissional e o impacta emocionalmente, pois também possui um passado
trágico e compreende suas particularidades, fornecendo suporte às suas
vulnerabilidades. No entanto, a principal corda de Sam é Lou, seu BB. Por estar
presente ao lado do personagem durante quase toda a história, o feto acaba se
tornando um grande companheiro, ao ponto de ganhar um nome, o que é incomum
para algo que deveria ser apenas uma “ferramenta”. O apego de Sam acaba sendo
uma das formas de lidar com a solidão, visto que o BB exige que ele seja mais
cauteloso, utilize os momentos de descanso para “conversar” e passe a cuidar de
outra vida como se fosse a sua.
Destarte, o projeto liderado por Hideo Kojima utiliza o impacto da solidão
como ponto de partida para desenvolver uma mensagem positiva em torno das
relações humanas, indicando que as tragédias e traumas causadas pelo Death
Stranding podem ser revertidas pelo sentimento inerente aos humanos de apego
pela vida e pelo “outro”, demonstrando que o porco-espinho é capaz de sobreviver
aos invernos e que a dor pode ser contornada pelo afeto.
REFERÊNCIAS
KOJIMA PRODUCTIONS. Death Stranding. [S.I.]: Sony Interactive Entertainment,
- Jogo eletrônico.
Kairo. Kiyoshi Kurosawa. Japão, 2001, 119 min., son., cor.
Evangelion: 3.0 + 1.0 Thrice Upon a Time. Hideaki Anno, Katsuichi Nakayama,
Mahiro Maeda, Kazuya Tsurumaki. Japão, 2021, 155 min., son., cor.
KARNAL, Leandro. O dilema do porco espinho: como encarar a solidão. São Paulo:
Planeta do Brasil, 2018. Disponível em: https://pdfcoffee.com/o-dilema-do-porco-
espinho-pdf-free.html . Acesso em: 25 set. 2024.
ALMEIDA, Cristina Horta de. Jogos eletrônicos e a memória do trauma: reflexões
sobre Death Stranding e The Last of Us Part II. 2022. Artes, Poéticas Tecnológicas.
Escola de Belas Artes da UFMG, Belo Horizonte, 2022. Disponível em:
https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/50280/1/Cristina%20Horta%20de%20Alme
ida%20-%20Jogos%20Eletronicos%20e%20as%20Memorias%20do%20Trauma.pdf
. Acesso em: 25 set. 2024.
OLIVEIRA, Murilo. Entenda as principais terminologias de ‘Death Stranding’. O Vício,
- Disponível em: https://ovicio.com.br/entenda-as-principais-terminologias-de-
death-stranding/ . Acesso em 26 set. 2024.
RAD, Chloi. E3 2016: Kojima dá mais detalhes sobre Death Stranding. IGN Brasil, - Disponível em: https://br.ign.com/death-stranding-directors-
cut/28755/news/e3-2016-kojima-da-mais-detalhes-sobre-death-stranding . Acesso
em 26 set. 2024.
SERAFIM, Diogo. Circuitos ao vento: a solidão no fim do mundo de Kairo (2001), de
Kiyoshi Kurosawa. Multiplot!, 2020. Disponível em:
https://multiplotcinema.com.br/2020/04/circuitos-ao-vento-a-solidao-no-fim-do-
mundo-de-kairo-2001-de-kiyoshi-kurosawa/ . Acesso em: 26 set. 2024.
ABE, Kobo. A Corda. In: SOARES, Gustavo (trad.). Medium, 2020. Disponível em:
https://medium.com/@ogustavosoares/nawa-a-corda-de-kobo-abe-44fe1ec5fc2f .
Acesso em: 26 set. 2024.
FORSELL, Ludvig. Death Stranding: Original Score. Spotify, 2019. Disponível em:
https://open.spotify.com/intl-
pt/album/5e4LO7QzLLN6sSs9RlaawU?si=d7xPoi1ARrGJ2vjHX1bMww . Acesso em:
26 set. 2024.