ENSAIO | O retrato da Guerra do Vietnã no cinema

O Franco Atirador (1978)

Por Daniela Canhête Brandão

Graduanda em Engenharia de Computação, UFG

Em Diante da Dor dos Outros (2003), da filósofa estadunidense Susan Sontag, é estudado o efeito da constante exposição ao sofrimento alheio na sociedade contemporânea, principalmente no que tange às guerras. No livro, a autora pontua como a Guerra do Vietnã, a primeira a ser testemunhada diariamente pela mídia, revolucionou a forma como lidamos com a morte e com a destruição. Nesse contexto, podemos explorar ainda a “sociedade do espetáculo”, conceito defendido por Guy Debord em seu livro homônimo (1967), em que o espetáculo “não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”. É no meio dessa guerrilha imagética que o cinema, em uma verdadeira maiêutica, dá vida às mais belas obras de guerra.

Evidentemente, filmes de guerra não nasceram com a Guerra do Vietnã – clássicos como O Nascimento de uma Nação (1915), de D. W. Griffith, ou Asas (1927), de William A. Wellman, já faziam história retratando a Guerra Civil Americana e a Primeira Guerra Mundial, respectivamente. Mas é indubitável como a Guerra de Resistência contra a América (como os vietnamitas a chamavam), nas mãos de grandes diretores como Oliver Stone e Stanley Kubrick, se transformou em matéria-prima para grandes clássicos do cinema.

Uma das primeiras grandes produções sobre a Guerra do Vietnã foi O Franco Atirador (1978), de Michael Cimino, com grandes nomes como Robert De Niro e Christopher Walken. Em 3 horas de projeção, o diretor cria uma narrativa concisa ao

redor de três amigos que lidam com os horrores da guerra – incluindo o sádico jogo de roleta russa ao qual são submetidos pelos vietnamitas. Apesar das representações um tanto distorcidas dos vietcongues, o filme ganhou 5 premiações no Oscar, incluindo de melhor filme, e logo se tornou um clássico.

Um ano após o lançamento de O Franco Atirador, foi a vez de Francis Ford Coppola estrear Apocalypse Now (1979). O filme de Coppola, considerado por muitos como o melhor filme que retrata a Guerra do Vietnã, é com certeza a mais profunda experiência sinestésica de como a guerra deve ser transmitida nas telonas. Por começar com sua trilha sonora arrebatadora, com clássicos como The End, do grupo The Doors, e Cavalgada das Valquírias, de Richard Wagner, acompanhada por uma sonoplastia maravilhosa composta por tiros, explosões e hélices de helicópteros – em poucos minutos, já nos encontramos na ponta da cadeira, tensos com o que está por vir. Ao adentrar a selva vietnamita (o filme, na verdade, foi filmado nas Filipinas), nossos olhos mergulham nas cores que dominam a tela: o verde da natureza, o vermelho do fogo, o laranja do pôr do sol. O espectador, assim, vê e ouve a selva, sente o calor das cores, ouve a sinfonia da destruição e se transporta para um lugar muito além da sala de cinema – seu espaço-tempo, agora, é o Vietnã de 1969.

Coppola não só é cirúrgico nos aspectos estritamente audiovisuais, mas também na manipulação do enredo, baseado na obra de Joseph Conrad Coração das Trevas (1899). Com suavidade e tensão, acompanhamos a história do Capitão Benjamin Willard, interpretado por Martin Sheen¹, em missão para matar o Coronel Walter E. Kurtz, interpretado triunfalmente por Marlon Brando. Kurtz, completamente enlouquecido, torna-se autoridade de seu próprio exército, sobre o qual exerce autoridade máxima. Embebidos nessa narrativa, somos levados pelos tortuosos rios da antiga Indochina, por onde as lentes nos revelam os limites do ser humano quando defronte à guerra.

Não bastando grandes nomes como os já mencionados, o diretor Stanley Kubrick também se envolve com a narrativa em Nascido para Matar (1987). Kubrick, um verdadeiro polímata quando se fala em cinema, explorou não só a Guerra do Vietnã, mas também a Guerra Fria (Dr. Fantástico, 1964), o terror (O Iluminado, 1980), a ficção-científica (2001: Uma Odisseia no Espaço, 1968), a distopia (Laranja

Mecânica, 1972) e até o (polêmico) romance (Lolita, 1962), entre vários outros temas. Com tamanha bagagem cinematográfica, não é de surpreender que o diretor foi capaz de, mais uma vez, tornar o filme de guerra em um verdadeiro clássico.

Sobre Nascido para Matar, é comumente discutida a divisão do filme em duas metades. A primeira parte do filme lida com os recém-convocados “Joker” e “Pyle” (como viriam a ser apelidados J. T. Davis e Leonard Lawrence) sob o comando do carrancudo Sargento Hartman no campo de treinamento. Já sua segunda metade lida diretamente com a guerra, em que “Joker” se vê frente a dilemas morais que testam suas virtudes como um bom soldado americano. Kubrick também adota uma postura crítica e bastante precisa frente à Guerra do Vietnã, escancarando a postituição, a alienação e os mais variados crimes de guerra cometidos contra civis vietnamitas. Diante de tudo isso, é inquestionável como Mickey Mouse Song, acompanhada da marcha dos soldados em tela, pontuam o verdadeiro espírito do que foi a Guerra do Vietnã – o imperialismo americano encoberto pela luta contra o comunismo.

Essas três obras servem apenas de amostra para o número surpreendente de clássicos derivados de um mesmo tema, podendo ser mencionado também: Platoon (1986), de Oliver Stone, Rambo: First Blood (1982), de Ted Kotcheff, e Nascido em 4 de Julho, também de Oliver Stone. Dessa forma, nos é mostrado como a guerra, transformada em espetáculo pelas mãos de grandes diretores, deu origem aos maiores clássicos do cinema contemporâneo.

¹ Seu filho, Charlie Sheen, logo viria a interpretar Chris em Platoon (1986), do renomado Oliver Stone, também sobre a Guerra do Vietnã.

REFERÊNCIAS (seguindo norma ABNT):

SONTAG, Susan. Diante da Dor dos Outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

NASCIMENTO de uma nação. Direção de D. W. Griffith. Produção: David W. Griffith Corp. Estados Unidos: Epoch Producing Co., 1915.

ASAS. Direção de William A. Wellman. Produção: Lucien Hubbard. Estados Unidos: Paramount Pictures, 1927.

FRANCO Atirador. Direção de Michael Cimino. Produção: EMI Films. Estados Unidos: Universal Pictures, 1978.

APOCALYPSE Now. Direção de Francis Ford Coppola. Produção: Francis Coppola. Estados Unidos: United Artists, 1979.

CONRAD, Joseph. O Coração das Trevas. Edição Bilíngue. São Paulo: Landmark, 2011.

PLATOON. Direção de Oliver Stone. Produção: Arnold Kopelson. Estados Unidos: Orion Pictures, 1986.

NASCIDO para Matar. Direção de Stanley Kubrick. Produção: Stanley Kubrick. Estados Unidos e Reino Unido: Warner Bros. e Columbia-Cannon-Warner, 1987.

DR. Fantástico. Direção de Stanley Kubrick. Produção: Stanley Kubrick. Estados Unidos e Reino Unido: Columbia Pictures Corp., 1964.

O ILUMINADO. Direção de Stanley Kubrick. Produção: Stanley Kubrick. Estados Unidos e Reino Unido: Warner Bros., 1980.

2001: UMA Odisseia no Espaço. Direção de Stanley Kubrick. Produção: Stanley Kubrick. Estados Unidos e Reino Unido: MGM, 1968.

LARANJA Mecânica. Direção de Stanley Kubrick. Produção: Stanley Kubrick. Estados Unidos e Reino Unido: Warner Bros, 1971.

LOLITA. Direção de Stanley Kubrick. Produção: James B. Harris. Estados Unidos e Reino Unido: MGM, 1962.

RAMBO: First Blood. Direção de Ted Kotcheff. Produção: Buzz Feitshans. Estados Unidos: Orion Pictures, 1982.

NASCIDO em 4 de Julho. Direção de Oliver Stone. Produção: A. Kitman Ho e Oliver Stone. Estados Unidos: Universal Pictures, 1989.

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