A abertura política do Brasil nas décadas de 80 e 90 evidenciou a crise econômica que o país já estava presenciando graças à dívida externa criada durante o período de ditadura. Quebrado financeiramente e com corrupção latente em alguns órgãos estatais, o governo resolveu dissolvê-los a fim de cortar gastos.
Extinguiram-se fundações de um dia para o outro. Motivo era a corrupção e o nepotismo. A centralização e a transição feita de gerações para gerações produzia falta de conhecimento de acesso. Com o fim da Embrafilmes, durante o governo de Fernando Collor como resultado do arrojo salarial e de gastos governamentais, o governo criou leis para suprir a falta desse órgão que antes era responsável pelo cinema brasileiro, e cultura em geral.
A Lei 8.313, popularmente conhecida pelo nome do então ministro da Cultura Sérgio Paulo Rouanet de 1991 e a Lei do Audiovisual de 1992 (lei 8401), modificada em 1993, foram criadas durante o período do Governo Collor.
A abertura de mercado, o processo de privatização e a remodelação do setor público (recuando a intervenção, promovendo a descentralização) para uma sociedade auto-gestora, formavam o contexto da política econômica em que a Lei Rouanet foi criada.
Como reflexo dessa descentralização governamental e consequente transposição da responsabilidade para o empresariado, o setor cultural ficou enfraquecido e a criação da Lei Rouanet tinha objetivo de resguardar as consequências da avalanche cultural importada que estaria por vir com o neoliberalismo implantado.
Três mecanismos foram criados com a Lei Rouanet: O Fundo Nacional de Cultura, Mecenato e PRONAC. Inspirado no modelo americano de renúncia do imposto de renda (taxada), ao invés de se pagar o governo, paga-se a cultura diretamente.
Na renuncia fiscal (Mecenato), o dinheiro, em si, não vai mais para o governo e posteriormente é desviado para cultura como acontecia durante a Embrafilmes: a mobilização é feita através do próprio setor a partir de captação dos recursos das empresas privadas. Com isso, novas profissões são criadas como os captadores de recursos, gestores cultural, produtores cultural, que tem como papel, após a aprovação do projeto pela Lei, ir atrás de empresas interessadas em investir em seu projeto, tendo elas o abate nos impostos de renda e com a contrapartida de utilizar a sua marca na parte destinada a patrocínios. Nasce assim o marketing cultural.
O marketing cultural é justamente a ideia de pegar o dinheiro que iria para o governo em forma de imposto e investir diretamente em cultura, tendo ainda assim sua marca vinculada ao projeto. O papel do produtor cultural é justamente entrar em contato com o setor de marketing, contador, ou diretoria das empresas e apresentar como funciona o mecanismo. Para o empresariado, a vantagem é de patrocinar “gratuitamente” (no caso do audiovisual investimento é 100% ressarcido), utilizando a logomarca como difusão direta. Dinheiro que ia receber, o governo de certa forma redireciona indiretamente para um projeto cultural. Porém é válido dizer que na maioria das vezes o público não tem esse conhecimento e assume que o investimento é completo da empresa, quando na verdade é público, ou seja, porcentagem de imposto da empresa em questão.
O investimento, no entanto é feito antes e somente depois é ressarcido pelo governo, por isso a recusa de algumas empresas. Do mesmo modo, pessoas físicas podem abater de seu imposto 4% destinando a projetos culturais. O mecanismo funciona da seguinte maneira:
Se uma empresa tem R$ 1000,00 de lucro e paga 10% de imposto ao governo (10% de 1000,00 = 100,00 R$) , pode direcionar 3% desse imposto (no caso de pessoa física esse valor é de 5%) para projetos culturais, sendo 100% ressarcido, no caso de audiovisual ( podendo ser de 80% para projetos de outras áreas). Ou seja: 3% de R$ 100,00 = R$3,00
Para se beneficiar do mecanismo, o projeto precisa ser aprovado pelo Ministério da Cultura, tendo a partir daí somente a captação, de acordo com tal mecanismo, autorizada. Para escrever e consequentemente aprovar um projeto cultural é preciso ter em mente quais são as diretrizes e objetivos específicos da lei.
A Lei nº. 8.313 de 1991, mais conhecida como Lei Rouanet, instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), que canaliza recursos para o desenvolvimento do setor cultural, com as finalidades de: estimular a produção, a distribuição e o acesso aos produtos culturais (CDs, DVDs, espetáculos musicais, teatrais, de dança, filmes e outras produções na área Audiovisual, exposições, livros nas áreas de Ciências Humanas, Artes, jornais, revistas, cursos e oficinas na área cultural, etc); proteger e conservar o patrimônio histórico e artístico; estimular a difusão da cultura brasileira e a diversidade regional e étnico-cultural, entre outras.
O PRONAC funciona por meio dos seguintes mecanismos de apoio:
– Fundo Nacional de Cultura (FNC) – Com os recursos do FNC o Ministério da Cultura pode realizar uma série de ações, tais como: concessão de prêmios; apoio para a realização de intercâmbios culturais e outros programas divulgados por edital; apoio para propostas que não se enquadram em programas específicos, mas que tem afinidade com as políticas públicas e relevância para o contexto no qual irão se realizar (demanda espontânea), entre outras.
– Incentivos fiscais – por meio deste mecanismo, titulares de iniciativas que não se enquadram nos programas do Ministério da Cultura e nas políticas públicas traçadas em determinado período, mas que tem consistência e relevância para competir no mercado, podem buscar apoio junto a pessoas físicas pagadoras de Imposto de Renda (IR) e empresas tributadas com base no lucro real, que por sua vez terão benefícios fiscais sobre o valor incentivado.
Quando criada, a lei buscava uma política de maior acesso: facilitar o acesso e a operalização através de oficinas e maior divulgação. A Lei Rouanet não visa ao lucro, mas sim ao valor cultural da obra em questão. Já a lei do audiovisual visava lucro, com mecanismos mais complexos e de difícil entendimento. A Rouanet é pensada para ser acessível ao público, para a produção independente e buscando a descentralização cultural.
O direito patrimonial, no caso da Rouanet, é do proponente, ou seja, todo lucro gerado no projeto vai para o próprio projeto. Esse lucro, no entanto, não é o produto buscado, e sim apenas uma sustentabilidade. Também define que uma produção independente seria, no Brasil, qualquer pessoa jurídica que não seja ligada a produção das empresas de radio difusão e cabo difusão. No entanto essas mesmas empresas criam subterfúgios para o aproveitamento dos mecanismos da lei, como a Globo filmes, uma produtora independente segundo a lei, que na prática, pode-se inferir, é um braço da Rede Globo de Televisões. Aproveitam-se assim a lei e o mercado promissor abandonado para monopolizar os meios de comunicação: jornal, TV, rádio, internet, cinema. Vale dizer que o proponente pode vender o produto (no caso de um filme) depois, mas não pode trabalhar em co-produção (proponente deve ter 100% dos direitos patrimoniais sobre a obra).
No Fundo Nacional de Cultura o proponente ganha o dinheiro do governo (não é preciso captar). A prestação de contas é muito mais complexa e fiscalizada; não há patrocinador, portanto, não há marketing cultural. Os proponentes são contemplados através de Editais. Eles são diferenciados do proponente dos projetos que usam a isenção fiscal no sentido de serem instituição, ONG, ou algum grupo que já tenha um projeto social em andamento.
Conforme o artigo 27 do Decreto 5.761/2006, as propostas culturais a se beneficiarem pelo PRONAC devem conter estratégias claras para promover a ampliação do acesso aos produtos culturais delas resultantes e promover o fortalecimento das cadeias produtivas locais. O Pronac prioriza: o acesso a cultura, a diversidade, produção, restauração e preservação. Deseja agir na sociedade, por isso pensa público.
Tais estratégias visam garantir a acessibilidade, intervenções que tem o objetivo de proporcionar a pessoas com mobilidade reduzida ou deficiência física, sensorial ou cognitiva e a idosos, condição para utilizar, com segurança e autonomia, de espaços onde se realizam atividades culturais ou espetáculos artísticos, e também a compreensão e fruição de bens, produtos e serviços culturais. Além disso, visa-se à democratização do acesso, por ações que promovam igualdade de oportunidades, fruição de bens, produtos e serviços culturais, bem como ao exercício de atividades profissionais. Pressupõem-se, logo, atenção com camadas da população menos assistidas ou excluídas do exercício de seus direitos culturais por sua condição social, etnia, deficiência, gênero, faixa etária, domicílio, ocupação.
Atualmente são discutidas alterações na lei. São propostas de mudanças drásticas, pois quando criada, a lei seguia os rumos do mercado, mas com os desdobramentos da crise, acontece uma inversão com a qual o governo volta a ter uma maior autonomia e influência. Isso causa um embate entre os defensores das mudanças e os profissionais já consolidados à antiga lei.
No momento, o Governo Federal propõe uma nova reforma, para ampliar a capacidade de fomento à cultura e aumentar as formas como o produtor pode acessar os recursos. Algumas das mudanças propostas:
– FNC: O Fundo Nacional de Cultura já existe na atual Rouanet, mas permite apenas doação de 80% do valor do projeto, com 20% de contrapartida. Com a Nova Rouanet, o FNC poderá fazer empréstimos, associar-se a projetos culturais e fazer repasse para fundos municipais e estaduais. Isso permitirá que o Fundo Nacional de Cultura se torne mais atrativo para produtores culturais e se transforme, verdadeiramente, numa alternativa para aqueles que não conseguem captar financiamento via renúncia.
-Renúncia fiscal: O mecanismo continua existindo, assim como a CNIC (Comissão Nacional de Incentivo à Cultura), que analisa os projetos. A única mudança é que, em vez de apenas ter duas faixas – de 30% e 100% – passa a ter mais quatro – 60%, 70%, 80% e 90%. A lei vai definir quais os critérios serão usados pela CNIC, que, além de analisar aspectos orçamentários do projeto, vai analisar em qual faixa ele se encaixa. O objetivo da mudança é permitir uma maior contribuição das empresas – hoje, de cada R$ 10 investidos pela Rouanet, R$ 9 são públicos – e permitir que projetos com menor atratividade de investimento tenham faixa de renúncia maior.
– Ficart: O Fundo de Investimento Cultural e Artístico também já existe. No entanto, nunca saiu do papel, por falta de interesse das empresas. A Nova Rouanet vai aumentar a atratividade, com maior dedução fiscal, para que seja uma alternativa atrativa para projetos com grandes chances de retorno financeiro.
– Vale Cultura: Funcionaria assim como outro vale, como o de alimentação dado ao trabalhador, no entanto, obviamente, relaciona-se com o “consumo” cultural. É a grande novidade do projeto, o vale de R$ 50 para trabalhadores vai, além de facilitar o consumo de bens culturais para 12 milhões de trabalhadores, injetar, pelo menos, R$ 7,2 bilhões por ano, o que é mais de seis vezes o montante atual da Rouanet.
Felipe Carrelli Sá Silva é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Esclarecedor
Ótimo texto, era o que procurava para entender, de uma vez por toda, a Lei Rouanet. Bem esclarecedor mesmo. Grata.
Tentei aprovação de um projeto que visava à publicação de livro de minha autoria que utilizo no projeto de apoio psicológico aos pais, no sentido de promover uma psicologia preventiva e não obtive êxito. O pessoal do PRONAC se limita a dizer que meu projeto não tem cunho cultural.
O que será então de cunho cultural?
A intenção do texto é boa, mas tem muita informação errada neste texto.
Gostaria de informações sobre o “modus operandi” desta lei, alguém pode ajudar, por favor?
VAleu
junecask8@hotmail.com
abraço
Juneca
Parabéns pelo texto!
Poderia apontar quais informações erradas por favor? Vi o texto como esclarecedor, mas por não conhecer tão bem sobre a lei não tenho informações para questiona-la.
Grato.
Existe uma cartilha ou livro (PDF) de como operar, funcionamento da Lei Rouanet?
rfr.arte@hotmail:disqus .com
Otimo texto, obrigado Deus abençõe.