Entrevista com a Profa. Dra. Mirian Tavares

Por Priscila Lourenção, Thiago Jacot e Estela Andrade*

Para começar, nos conte um pouco da sua formação, onde se formou e a sua trajetória acadêmica.

Eu sou formada em Jornalismo na Universidade Federal do Espírito Santo. Depois fiz mestrado em São Paulo na PUC em Semiótica, mas sempre trabalhei com Cinema. E fiz o doutorado na FACOM, e parte lá em Portugal e estou em Portugal desde 1997. Desde 2002 dou aulas na Universidade do Algarve, na área da Estética e do Cinema, sempre trabalhando com essa confluência do Cinema com as outras artes.

O que você tem achado da SOCINE até agora, como você vê um evento como a SOCINE, não como uma simples ampliação do debate ou das discussões sobre cinema, mas como você Vê um evento regional para a SOCINE? E que tendências você consegue perceber nos estudos de Audiovisual hoje?

Eu acho que essa SOCINE regional foi muito importante. É bom falar no final porque já deu para perceber como ocorreu e acho que ocorreu muito bem. Acho que é muito importante exatamente por causa disso, há uma série imensa de pessoas no Brasil e fora a estudarem a questão do Audiovisual e um encontro por ano para isso é muito pouco. Já notamos até pela afluência de pessoas e a diversidade de temas que tem se tratado. Eu estive praticamente em todas as mesas e o que eu pude perceber é que não podemos dizer que há uma tendência específica sobre os estudos do Audiovisual, há por um lado talvez novos caminhos, que têm a ver com as novas tecnologias, com essa ideia de se pensar a confluência do Cinema como uma nova mídia e as relações que ele mantém com as outras mídias, principalmente as mídias digitais. Mas depois nota-se que há uma volta talvez da ideia de uma análise fílmica ainda super tradicional, clássica dentro daquilo que sempre se fez nas Universidades desde o princípio. Portanto, o que eu acho que há nesse momento é uma imensa pluralidade e muita afluência de pessoas em todas as direções e acho que isso é muito produtivo, porque no fundo senão também se tornaria uma coisa muito ditatorial. Ou só se estuda isso ou só se estuda aquilo. Portanto acho que foi muito produtivo e muito rico.

Sobre a discussão de “World Cinema”, do debate da separação do cinema ocidental hollywoodiano e um outro cinema que se convencionou chamar de “World Cinema”, eu queria saber se você concorda com esse conceito. E a partir de um texto seu que eu li, você fala de um “Cinema Outro” gostaria que você comentasse um pouco sobre isso.

Eu na verdade não gosto nem do tema “World Cinema”, como também não gosto de “pós- colonialismo”, como também não gosto nada desse tipo de teorização que no fundo trabalha algumas questões que são contemporâneas e que são absolutamente em um certo sentido convencionais, dentro de uma relação muito mais intensa de trocas com o mundo todo. Eu não consigo fazer essa divisão pelo menos em termos teóricos, de análise. E acho que há várias formas de fazer cinema, quer dizer, não há um modelo único e por isso quando se fala de World Cinema há uma espécie de reparação e quase como se fosse também uma forma de condescendência. Vamos usar “World Cinema”, coitadinhos eles até fazem cinema. E portanto, pra mim é uma espécie de desvalorização daquilo que é feito, porque não há um modelo único de cinema, mas acho que há uma pluralidade imensa e as pessoas fazem cinema dessa forma.

Minha próxima pergunta ainda é sobre o debate, na verdade é uma dúvida que eu tenho a partir de uma impressão. Porque me parece que não seria apenas uma questão de mudar o discurso teórico que se usa ao pensar o cinema feito “às margens”. Que mesmo que mudarmos o entendimento do conceito, os problemas enfrentados na realidade concreta irão permanecer, pois as diferenças de produção que são latentes, são diferenças históricas. Queria saber se você concorda com isso.

Eu acho que há um grande problema que a gente não pode dar volta a isso que é a questão econômica. Tanto há uma questão econômica por trás de tudo mais do que uma questão estética ou ética. Portanto, o cinema que é feito hoje em África, e eu estudo especificamente na África os países de língua portuguesa, porque é uma imensidão falar de cinema africano, é um absurdo, até porque há vários cinemas africanos mesmo dentro desse corpus que eu trabalho, que é muito pequeno, que é Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe, portanto é um universo muito pequeno dentro da África que é muito maior que isso. Mesmo dentro desses países há diversas formas de produção, alguns com mais incentivos outros com menos incentivos, e de modo geral o que acontece é uma tendência e acho que positiva, de facilitação da produção, graças aos novos meios tecnológicos o que permite que de fato seja feito cinema em todo lado. Agora há uma questão que é mais grave que isso tudo, que é a questão da distribuição. Este cinema não é visto, este cinema não circula nem dentro do próprio país. Eles não conhecem os moçambicanos, que é o caso que eu já tenho agora que já está completamente estudado, não passa cinema moçambicano em Moçambique, por exemplo. O único circuito que eles têm é o circuito de festivais e acho que talvez esse seja o grande problema, não é nem a questão da produção que cada vez é mais barata e mais fácil de fazer. É a questão da distribuição e essa questão é quase insolúvel, porque de fato você tende para uma questão profundamente econômica. E há no cinema, que a gente não pode negar que existe um sistema de produção e distribuição que é dominante e ele não vai abrir mão do que ele tem para abrir espaço para outro.

Por que o cinema africano, o que te trouxe até ele? Também a partir de um texto seu, eu peguei uma afirmação do Ousmane Sembène, que segundo ele, ele faz cinema com a finalidade de educar as pessoas. Assim como o cinema hoje feito pelas ONGs na África também cumpre esse papel. Gostaria que você falasse um pouco disso.

Eu na verdade acabei indo parar no cinema africano por causa de um projeto, que eu me envolvi, aliás que eu fui convidada para participar de um projeto que é da Fundação Calouste Gulbenkian que chama “Próximo Futuro” (Next Future) e que já existe há dois anos e é um projeto que trata da África, America Latina e das Caraíbas. E eu decidi trabalhar com cinema africano, até porque percebi nessa altura que não havia praticamente nada sobre cinema africano de língua portuguesa. Pensei ainda em trabalhar com cinema do Magrebe, mas já há muita coisa e muito mais cinema produzido. E meu interesse veio também pelo fato de viver em Portugal e de tentar conhecer um pouco essa realidade outra que no fundo é uma realidade que existe, que fala a mesma língua, mas que não é a mesma coisa. E também tentar perceber como é o sistema de produção. Se nós pensarmos, por exemplo, a África, tem no Burkina Faso, que é um dos países mais pobres do mundo, o maior festival panafricano de cinema. E é um festival que acontece todos os anos, mais ou menos em Março e que reúne entre 3 mil e 5 mil filmes às vezes, dos mais diversos tipos de produção. Não é só cinema, também é fotografia. O Burkina Faso tem uma escola de cinema, quer dizer, não tem nada, as pessoas passam fome, mas tem escola de cinema.

A Nigéria depois de Bollywood é um desses países fora do circuito que mais produzem cinema, apesar da maior parte da produção ser super pirata e feita com VHS e etc. E esses países que eu escolhi trabalhar, eles têm uma produção muito grande, mas vão muito nessa linha do Ousmane Sembène, que é um cinema feito e começou a ser feito com intenção pedagógica e com outra intenção que é… África, no fundo as Áfricas todas que existem, essa unificação que há e que foi uma unificação forçada pelo colonizador. Então a idéia do cinema acabou sendo uma espécie de sistema de unificação pela língua, ou quase imposição dessa língua e hoje em dia é uma forma de educação. A maior parte desses filmes produzidos vem com o dinheiro das ONGs, ou são financiados pelos Institutos. O Instituto Francês (IFP) é um dos grandes financiadores. O que impõem também um tipo de discurso que é um discurso que fala sobre HIV, a questão da violência doméstica, e portanto quase todo cinema que é feito, ele é feito com esse fim pedagógico.

E de minorias também…

De minorias em um certo sentido, porque no fundo por exemplo eles não colocam muito em pauta questões de identidades dentro do próprio país, essas coisas. Pelo menos nesse cinema não há, não há essa grande preocupação.

Queria que você falasse um pouco do comprometimento do cinema com a realidade, pensando em qual seria a responsabilidade ética do cinema com a realidade. Se podemos dizer que há uma “responsabilidade ética”.

Quer dizer, deveria ter. Quase sempre não tem. Aliás, o Wim Wenders dizia que o cinema mais ideológico que há no mundo é o cinema norte-americano, porque ele vende ideologia dizendo que não está vendendo nada. E por isso, o cinema que é assumidamente ideológico nesse sentido de que tem uma ideia a defender e acaba por ser político, o comprometimento que ele deve ter é de mostrar que é possível haver essa tolerância, essa convivência, esses discursos outros que há por ai, como uma forma única talvez de resistir a essa espécie de bulldolzer americano, de um certo modelo de cinema, que eu adoro assistir de vez em quando, com pipocas e tudo, mas que pra mim o que me incomoda é essa idéia de um discurso único. E, portanto, eu acho que o compromisso ético do cinema é exatamente mostrar que há uma miríade de discursos e que isso tem que ser ouvido.

*Por Priscila Lourenção, Thiago Jacot e Estela Andrade são graduandos em Imagem e Som pela UFSCar e editores da RUA.

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