Entrevista com a Profa. Dra. Lúcia Nagib

Por Thiago Jacot, Estela Andrade Heloá Pizzi Mauro*

Durante o 1° Encontro Estadual da SOCINE SP, que ocorreu nos dias 17, 18 e 19 de Julho de 2007 no campus São Carlos da UFSCar, a Profa. Dra. Lúcia Nagib, docente da University of Leeds na Inglaterra concedeu entrevista à Revista RUA. Além de perguntas sobre sua carreia, abordamos também o tema da sua palestra de abertura, intitulada: “World cinema e a ética do realismo”.

Thiago Jacot: A senhora possui uma extensa bibliografia sobre o cinema brasileiro e livros sobre o cinema em geral. Atualmente é professora da Universidade de Leeds na Inglaterra. Poderia começar nos contando, por favor, como aconteceu o início do seu trabalho com o cinema?

Lúcia Nagib: Puxa vida! Uma história comprida, melhor eu resumir. Eu comecei mais na área de jornalismo como editora da Revista Leia, não é do seu tempo, mas era uma revista literária muito interessante da [Editora] Brasiliense, minha área era mais literatura. Mas como também tinha o resumo da obra do Werner Herzog, eu me apaixonei pelos filmes e pelo livro que ele tinha escrito “Caminhando no Gelo” que tinha sido traduzido para o português. Daí eu resolvi fazer um Mestrado em cinema, que eu fiz com o Ismail Xavier, na época sobre a obra do Herzog. Em seguida, eu fiz um Doutorado com o Ismail Xavier pela Universidade de São Paulo sobre o Nagisa Oshima. Ambas as teses foram publicadas como livros. Depois disso eu passei um longo período lecionando na Unicamp, acho que uns dez anos, e metade desse período eu combinei Unicamp e PUC-SP, também lecionei lá. Passei um período breve na USP e daí, por razões pessoais, que são afetivas, eu comecei a ir para a Inglaterra, porque o meu segundo marido é inglês. Então comecei a visitar o país e fui convidada pela professora Laura Mulvey, – grande criadora/fundadora da teoria feminista/psicanalista do cinema – a passar um período como professora convidada no Birkbeck College[University of London]. Passei um ano lá como professora convidada. Durante esse período abriu-se essa Cátedra em Leeds de Cinema Mundial, essa cátedra comemora o centenário da Universidade de Leeds, por isso ela é uma Centenary Chair. Então eu concorri a essa cátedra e ganhei. O concurso foi em 2004 e assumi em 2005 onde sou diretora do Centro de Cinema Mundial.

Thiago: Aqui na programação da SOCINE a senhora realizou a palestra de abertura sobre “World Cinema e a Ética do Realismo” onde foi apresentada uma proposta de um olhar livre dos binarismos corriqueiros ao estudar e analisar o cinema. Atualmente vemos o cinema a partir de um paradigma hollywoodiano que é tomado como exemplo e comparação em detrimento a outras produções. Em que medida sua proposta contribui para os estudos de cinema?

Lúcia: O meu propósito é fugir de um esquema de visão do mundo e de divisão do mundo que reproduz a situação colonial. A situação colonial vê o mundo como um centro dominador rodeado por uma enorme periferia dominada. E esse centro dominador diz e dita as regras de como não apenas as pessoas devem se comportar no mundo inteiro, mas quais são os padrões válidos universalmente. Se você examina as guerras e os imperialismos que ocorrem no mundo inteiro, Guerras no Iraque, Guerras no Afeganistão, guerras no passado, Vietnã, você verá que elas são justificadas para o público mundial enquanto uma introdução da democracia nesses países. Então são regras que são criadas em países muito significantes e são levadas e impostas à força nos países que são considerados fora dessas regras. Estou exemplificando em situação extrema, mas de maneira muito mais sutil é isso que acaba acontecendo quando se cria paradigmas em determinados países considerados de centro e tenha que aplicar esses paradigmas para todo o restante do mundo considerado periferia. Eu não vejo que essa aplicação seja positiva. Em nenhuma área. Mas a minha área específica é a de cinema, então com relação ao cinema, eu acho que nós temos que nos liberar desse esquema que determina quem somos nós e quem são os outros. O outro é contra, porque justamente aquele outro que embora acobertado sob uma posição de vítima e sob um olhar névulo do eu, que não é a vítima, na verdade ele é condicionado a permanecer eternamente naquela posição de inferior. Eu sou contra a esse tipo de hierarquia, não acho que ela seja positiva para ninguém. Eu defendo um projeto policêntrico, esse projeto aceita, e na verdade, estimula como mais eficaz a produção de teorias baseadas em produções locais. Todo o mundo tem o direito de produzir sua própria teoria mais adequada ao seu próprio contexto e essas teorias são válidas para aquele júris ou produto, mas podem ter outras aplicações. O que é interessante de dizer, são as singularidades que existem entre as produções do mundo inteiro, e nesse momento podemos falar em regras e questões, padrões universais. Não quando existe uma divisão entre o eu e o outro, mas quando existe uma identidade, conexões, singularidades. Eu acho mais produtivo.

Thiago: Aproveitando a ocasião, já que estamos em um Congresso de Cinema, como a senhora avalia a produção do conhecimento acadêmico de cinema no Brasil?

Lúcia: Eu acho o Brasil um dos países mais abertos que eu conheço para novas teorias, novos conhecimentos. Eu acho que o Brasil tem uma sorte tremenda de estar livre de um regime fundamentalista. Existe uma religiosidade de pulga no país inteiro e todo mundo se diz religioso. Mas, é muito flexível essa religiosidade, muito mista, híbrida, centrípeta, e na verdade, permeável a novidade. Estamos despidos de falsos moralismos que vêm também do mundo colonial e por outro lado também estamos despidos de um fundamentalismo religioso que resiste a esse puritanismo/moralista/ colonial. Então esse meio termo é uma posição confortável para nós brasileiros, e eu vejo uma expansão de teorias, eu vejo uma pré – disposição a recepção de novas teorias daqui que faz com a gente reúna várias etapas e esteja aberto a outras línguas e outras culturas, ao aprendizado. Nós temos teóricos extremamente originais, sempre tivemos, desde Paulo Emílio Salles Gomes, passando por Ismail Xavier, vi até que tem uma comunicação sobre a obra dele na programação aqui, realmente ele tem teorias originais sobre cinema. Nós temos em outras áreas teorias originalíssimas e vejo uma pesquisa sobre cinema nos primeiros tempos no Brasil, sobre o próprio cinema brasileiro marginal. Essas peculiaridades como originalidades podem dar uma contribuição para o saber acadêmico mundial. Eu acredito nisso.

Thiago: A senhora exerceu a função de crítica de cinema na Folha de São Paulo, entre os anos 80 até 2004. Como avaliação, o quanto a crítica contribui para o cinema, na formação de público, e como ela é realizada atualmente?

Lúcia:Eu acho que mudou demais. Mudou demais com a internet. Porque hoje em dia com blogs, com redes sociais e essa transformação tremenda que foram essas redes na vida, sobretudo dos jovens pesquisadores no mundo inteiro, os papéis mudaram, se inverteram. Então hoje quem produz o filme também escreve a crítica sobre ele. Eu acho que os papéis estão muito reclusos e muito intricados uns aos outros. A crítica de cinema no jornalismo brasileiro teve um papel reduzido a quase o mínimo hoje em dia, você vê que é um bloquinho no jornal, ao passo que os diálogos na internet, esse bate-bola, esse ping- pong em que um escreve e outro completa é como um “Cadáver Esquisito” do surrealismo, que parece funcionar de maneira mais instigante. Acho que hoje se criou certo vácuo entre essa comunidade crítica que esta na internet e a comunidade acadêmica que é muito mais sofisticada do que isso e conversa entre si, muito mais do que com o público que lê jornal. E o jornalismo ficou uma coisa que você lê em cinco minutos e joga fora, o jornal em papel. Eu acho que algo tem que vir para preencher esse buraco, esse meio de campo que está vazio para aqueles que não têm muito tempo para a internet, mas também não querem se envolver em algo de justificações intelectuais do meio acadêmico. Então, eu acho que houve uma transformação e acho que estamos em período de transição e algo vai surgir para cobrir esse buraco que esta aí no momento.

Perguntas: Thiago Jacot*
Gravação de áudio: Estela Andrade*
Fotos: Heloá Pizzi Mauro*

*Thiago Jacot, Estela Andrade e Heloá Pizzi Mauro são graduandos do curso de Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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