Por Mahomed Bamba*
Resumo:
Este texto discute a relação dos cineastas africanos com a delicada e complexa problemática das imigrações pós-coloniais. O tema do exílio e das experiências migratórias foi diversamente abordado e retratado em todas as fases da história dos cinemas da África do norte e subsaariana. Hoje, a maioria dos cineastas deste continente vive e trabalha fora de seus respectivos países. Enquanto seus discursos tendem a “descriminalizar” e “legitimar” o desejo de emigrar e o “exílio cultural”, suas obras fílmicas procuram destacar as dimensões subjetivas, íntimas, culturais, históricas e políticas das experiências migratórias. Meu objetivo neste texto é, portanto, situar as diferenças e as singularidades das narrativas dos cinemas africanos no conjunto dos discursos sobre as imigrações. Para isso, examinei, em filmes de ficção e documentários (mais antigos e contemporâneos), as estratégias de mise-em-scène dos “lugares de emigração” e os modos de representação dos “desejos de alteridade”, da memória íntima, da fala, dos sonhos e do imaginário do imigrante africano; questões geralmente tratadas em alguns filmes com a condição pós-colonial como pano de fundo.
Palavras chave: Cinemas africanos; Experiências migratórias, “Exílio cultural”; Errância
“Primeiro queria mostrar que esta forma de travessia era literalmente uma operação suicida para esses jovens. Ao ouvi-los preferirem ser comidos por peixes a ficar no país, isso me parece grave. Dois grandes problemas surgem aí: um sentimento difuso de pertencimento que liga muitos jovens argelinos ao seu país e, por outro lado, este mar mediterrâneo que o Ocidente definiu como uma espécie de “muro de Berlim” que impede a livre circulação da metade da humanidade. Esta raiva do enclausuramento que ferve na juventude argelina (…). Portanto, preciso testemunhar, simplesmente mostrar que as coisas hoje não estão certas”. (o diretor argelino Merzak Allouache, sobre o filme Harragas (2010))
“No exílio, leva-se consigo sua própria história” (Mahamat-Saleh Haroun, cineasta de Tchad)
Introdução:
Enquanto o mundo inteiro se mostrava admirativo e louvava a coragem dos jovens da Tunísia pela maior revolta popular espontânea nunca vista na história recente dos países do Magrebe (Norte da África), dezenas de embarcações aportavam na ilha de Lampedusa (Itália), transportando centenas de outros jovens tunisianos que, aproveitando o caos e a vacância de poder, preferiram deixar o país para tentarem a sorte e uma vida melhor na Europa. Essas imagens de atualidade, em flagrante contradição com o momento histórico que a Tunísia e a África do norte estavam vivendo naquela “primavera árabe” de 2011, poderiam ser lidas como surrealistas se elas não lembrassem outras imagens de grupos de imigrantes africanos que desembarcam nas ilhas italianas e espanholas todos os anos.
Com o passar do tempo, criou-se uma espécie de iconografia dos imigrantes africanos, banco de imagens formado por imagens televisivas e do fotojornalismo, mas também pelas imagens das narrativas cinematográficas. Enquanto a televisão e a fotografia jornalística nos dão geralmente uma representação “imediatista” e sensacionalista da chegada, da detenção e expulsão dos imigrantes “clandestinos”, o cinema tenta abordar o tema da imigração com certo recuo, com certa distância: os filmes partem da realidade migratória para levantar outras questões correlatas de ordem sócio-política, cultural e identitária. Com isso não quero dizer que o registro fílmico produz imagens mais ou menos justas do fenômeno em questão. Porém, ao narrativizar, na ficção ou no documentário, as experiências de vida de homens, mulheres e jovens que deixam seus países, cada diretor procura, antes de tudo, partir de casos particulares para chegar a uma forma de representação que revela todas as dimensões humanas e universais da problemática migratória.
As ondas migratórias (que levam milhões de jovens fora da África do norte e subsaariana) são vistas, por alguns, como um signo do fracasso e da falência dos estados pós-coloniais africanos. Para outros, trata-se de uma realidade que faz parte da história dos movimentos populacionais que incrementou com a modernidade e a globalização. Num mundo “globalizado” e aparentemente sem fronteiras não circulam apenas capitais, circulam também imagens de felicidade dos países do “primeiro mundo” que refletem, como miríades de estrelas cadentes, nas telinhas dos países do “terceiro mundo” (cf o filme Heremakono de Abderrahamne Sissako, 2002). Enquanto vozes se elevam para defender o direito de qualquer homem de sonhar com países “melhores”, continuamos assistindo à criminalização das imigrações (sobretudo as imigrações econômicas). Quais imagens os cinemas africanos nos dão do fenômeno das imigrações pós-coloniais? Como os cineastas africanos se apropriam deste tema sem, no entanto, produzirem filmes de caráter dissuasivo? Como eles “narram” experiências de exílio voluntário ou forçado pensando ou não no princípio do 13º artigo da declaração Universal dos direitos humanos: “Todo homem tem direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio e a este regressar”? Eis alguns desafios que todas as gerações de cineastas africanos enfrentaram ao longo da história dos cinemas africanos.
Este texto não tem a pretensão de revisar a representação das formas de imigração e do exílio em todos os cinemas africanos. Quero apenas partir de um paralelo que faço entre as imagens desses jovens imigrantes tunisianos desembarcando em Lampedusa (na Itália) e as cenas do recente filme “Harragas” do diretor argelino Merzak Allouach (2009) para discutir as dimensões subjetivas, coletivas, íntimas, históricas e políticas da experiência da imigração na representação cinematográfica. Para isso, examinaremos os trabalhos de mise-en-scène da fala, do sonho, do imaginário e das figuras do imigrante em alguns filmes africanos mais antigos e contemporâneos.
Cinema e imigração
A forma como o cinema contemporâneo africano retrata a realidade dos movimentos de população é, na verdade, uma variação sobre um tema que perpassa toda a história do cinema. A relação do cinema e as imigrações é proteiforme e remota. Já em alguns filmes dos primeiros anos de balbucio do cinema narrativo, assistimos ao esboço de traços do viajante estrangeiro que se tornariam mais tarde as figuras arquetípicas de qualquer imigrante no cinema Americano e hollywoodiano. Figuras essas que, mais tarde, seriam revisitadas e complexificadas de acordo com os gêneros e os contextos sócio-históricos da cinematografia de cada país.
A maioria dos filmes sobre a imigração tem em comum o fato de pôr em cena aquilo que doravante se chama a “experiência da imigração”; experiência que pode revestir várias formas entre as quais a viagem (real ou imaginário) de um indivíduo ou grupo de pessoas. A narrativa fílmica tende a fazer a economia da representação das razões que empurram a emigrar e a trama se concentra nas condições da viagem ou nas consequências da decisão de partir. Sobretudo por causa das questões de alteridade que o imigrante terá que enfrentar na sociedade de acolhida e que são boas matérias para explorar cinematograficamente falando. A partir do momento em que as cinematografias nacionais se consolidam e se firmam como práticas sociais engajadas, muitas dessas questões acabaram fazendo parte da agenda de preocupações dos cineastas de cada país interessados em discutir a realidade da imigração de seus próprios concidadãos no resto do mundo. Com os cinemas africanos não podia ser diferente. A iconografia das imigrações africanas conta também com as imagens fílmicas produzidas pelos próprios cineastas africanos. Os cineastas dos países do norte e das regiões subsaarianas da África sentem-se cada vez mais interpelados pela realidade das imigrações; por meio das suas narrativas ficcionais e documentais, eles procuram, como os escritores e outros artistas africanos, ampliar o espectro dos debates sobre este fenômeno sob outras perspectivas.
As figuras do imigrante nos cinemas negro-africanos:
No período colonial, muitos jovens africanos foram estudar ou trabalhar na França. Todos vivenciaram diferentemente essa experiência de estarem sob a dominação colonial e serem instruídos no conhecimento e nos valores da cultura ocidental. Não foi, por acaso, que a intelectualidade negra que está na origem do movimento anti-colonial tivesse germinado fora da África, isto é, no coração da Metrópole. Afrique sur-Seine (1955), o primeiro filme da história dos cinemas negro-africanos, por exemplo, pode ser considerado duplamente como um “filme de imigração”: foi realizado por dois estudantes africanos em Paris, Paulin Vieyra e Mamadou Sarr, e tinha como objetivo registrar “alguns aspectos da vida dos africanos em Paris”. O tema da imigração surpreende, portanto, os cinemas africanos no início e no curso da sua evolução. Ao inaugurar o registro da experiência da alteridade do sujeito africano fora da África, Afrique-sur-Seine tem em germe aquilo que se tornaria o arquétipo das representações fílmicas dos africanos na França. Por outro lado, Paulin Vieyra e Mamadou Sarr acabaram criando também a primeira imagem do imigrante africano na França: o estudante africano que vai até a metrópole aprender a cultura do colonizador. É um sujeito cindido, cheio de ilusões e que mantém uma relação ainda ambígua com a ex-Metrópole colonial . As representações cinematográficas das tribulações do jovem africano que cai sem paraquedas na sociedade ocidental serviram de bom pretexto para denunciar o colonialismo (a hipocrisia da sua suposta missão civilizatória universal) e as contradições e os paradoxos da realidade pós-colonial (tanto na Europa como na África). Sembène Ousmane e de Med Hondo, por exemplo, fizeram desse personagem desterrado o protagonista dos seus filmes em que problematizam as relações ambíguas da sociedade francesa e com a figura do colonizado.
As primeiras imagens dos créditos do filme Soleil Ô (1969) aludem já para as contradições da colonização. Med Hondo constrói o paratexto de seu filme como uma história em quadrinhos; dessas bordas do texto fílmico ecoa uma voz-off que, entre gargalhadas, profere esta frase: “C´est nous les africains qui venons de loin ”. Os desenhos mostram um personagem negro corpulento sentado no chão, em seguida ele aparece rodeado por colonos; dois deles o abraçam num gesto ambíguo de fraternidade e de submissão. É esta ambiguidade que vai permear todas as situações da narrativa. A primeira parte do filme descreve de forma sintética e propositalmente teatral o batismo de um grupo de jovens negros por um padre francês. Antes do batismo, em terra da África, eles confessam ter falado a língua de seus respectivos grupos étnicos. Depois da confissão, são batizados. Outra cena mostra um grupo brigando e se matando sob o olhar divertido de um colono em pé sobre um pedestal. Na segunda parte do filme, assistimos à chegada de um desses jovens batizados numa estação de trem numa cidade francesa. Como ele foi educado com a ideia que os franceses são “seus irmãos gauleses”, portanto, ele emigra com a plena certeza de que irá se sentir em casa na França. Em voz-off o filme põe o espectador em contato com seus pensamentos: “Hier nous avions les mêmes ancêtres gaulois”, “Ici je suis aussi chez moi ”. O filme deixa subentendido que depois de ter criado estes seres híbridos e aculturados, a colonização, de certa forma, predispõe os colonizados africanos à experiência da imigração, entendida aqui como um desejo de ir ao encontro daquele que é supostamente um semelhante, um “irmão”. Mas, como a própria colonização, esta experiência é feita de doces ilusões, esperanças frustradas e desencantamentos. Naquela altura da descolonização, a ex-metrópole se torna já um lugar tão sonhado para adquirir aquele saber que o colonizador quer inculcar no africano como algo de universal. Nas cidades do país do ex-colonizador, o ser africano híbrido se torna um sujeito errante: o personagem de Soleil Ô perambula pelas ruas tentando entender essa nova realidade. Med Hondo prefere logo caracterizá-lo como um trabalhador imigrante: ele começa por procurar um emprego, lendo pequenos anúncios nos jornais. Ele é preterido pelos empregadores franceses. Mesmo assim, o personagem de Soleil Ô quer reconstruir sua vida na França (que é também a “terra dela”) como alguns colonos fazem na África. Mas chega a hora do desencantamento, no meio a todas essas peripécias, o personagem passa a questionar seu lugar nessa sociedade inóspita. Ele se torna numa espécie de cientista social que indaga as condições dos trabalhadores africanos na sociedade pós-colonial francesa (cena da entrevista com um economista francês sobre o interesse e o valor de se usar ou não a mão de obra negra).
Como o filme de Med Hondo, outros filmes africanos procuram abordar a experiência da imigração através do percurso caótico de um personagem que, depois de enfrentar vários obstáculos, tem um fim trágico ou decide se instalar na sociedade francesa ou prefere retornar à sua terra natal e ancestral. Em La noire de… Sembène Ousmane opta por um drama psicológico em que uma jovem negra, empregada doméstica, acompanha seus patrões franceses de Dakar a Paris. Uma vez que eles chegam na França, a relação amigável e quase familiar com seu empregadores muda completamente e ela se vê reduzida à condição de semiescravidão. Apesar do mutismo da personagem, o espectador consegue sentir o seu drama que acaba culminando no gesto do suicídio. Nota-se que na construção da figura do imigrante em La noire de…(1966) e Soleil Ô prevalece a preocupação dos dois diretores em falarem do racismo do colono contra o negro.Em todos os casos, aquilo que os filmes de Soumanou Vieira, Med Hondo, de Sembène Ousmane têm em comum, é o fato de passarem pela imigração para questionar o colonialismo sob uma outra perspectiva, isto é, a partir do olhar invertido do sujeito colonizado ou descolonizado que vai até a Metrópole fazer a experiência da alteridade .
Novas estratégias de representação da emigração nos filmes contemporâneos africanos
A partir dos anos 90, os cineastas africanos começam pouco a pouco a frisar nos seus filmes alguns fatores internos que provocam e justificam os movimentos de emigração . O desencantamento, a falta de perspectiva e a deliquescência da situação sócio-política na maioria dos países africanos servem agora de pano de fundo na representação do desejo de partir que cresce nos jovens desempregados, nos intelectuais e nos artistas desiludidos. Toubab Bi (Moussa Touré, 1991), Clando (Jean-Marie Teno, 1996), Pièces d´identités (Mweze Dieudonné Ngangura, 1999), Heremakono (Abderrahmane Sissako, 2002) etc., são filmes contemporâneos que, ao abordarem essas questões numa perspectiva pós-colonial, ostentam também uma preocupação formal e estética no trabalho de mise-em-scène e de construção dramática. Enquanto os filmes Touki Bouki (Djibril Diop Mambety, 1973) e Heremakono tematizam diversamente este desejo de expatriar-se sem nunca deixarem os jovens emigrantes irem embora dos lugares onde erram, Clando e Toubab Bi permitem a fuga dos sujeitos “desejantes”, embora os mostrem depois em crise existencial entre ficar na Europa ou voltar para casa. Mesmo um filme, como Moi et mon Blanc (Pierre Yaméogo, 2000), que começa como um “filme de imigração”, isto é, na cidade de Paris, acaba tomando os aspectos de um “filme de emigração”, pois na volta do personagem do seu “périplo profano” na Europa, ele se depara com uma dura realidade que o incita a querer deixar novamente o seu país. Um filme como Ali Zaoua (Nabil Ayouch, 2000), por exemplo, explora habilmente o imaginário infantil para falar do desejo de viagem real e imaginária como meio de fugir da realidade social do Marrocos. A partir das leituras que sua mãe lhe fazia, Ali, criança de rua que dorme no porto de Casablanca, imagina um país onde tem dois sóis e para onde ele quer zarpar com uma bússola que carrega no bolso. No fim do filme ele tem direito ao funeral digno de um “príncipe” e é conduzido a este país imaginário por seus compadres e demais meninos de rua de Casablanca. Todos embarcam com o corpo de Ali a bordo de uma pequena embarcação.
E se a representação da imigração mudasse de lado?
Geralmente, o destino é trágico para os imigrantes tanto na travessia (aqueles que nunca atingirão o país tão sonhado) quanto para aqueles que chegam a porto seguro. Mas para muitos deles quando o “Eldorado” vira uma espécie de purgatório, restam três alternativas: ou trabalham para se integrar rapidamente na sociedade nova, ou retornam (voluntariamente ou não) para o país de origem (em caso de desilusão), ou vivem nas margens da sociedade que os acolheu. São as situações decorrentes das duas últimas alternativas que muitos filmes vão explorar nas suas narrativas. Os imigrantes africanos continuam esbarrando nos obstáculos mais insuperáveis de aceitação e integração na maioria dos países europeus. No contexto francês, por exemplo, Nicolas Bancel e Pascal Blanchar (1998) estudaram as formas como a imagem do imigrante foi substituindo progressivamente a imagem do “indigène ” no imaginário coletivo francês. Os dois historiadores chegam à conclusão que depois que a ideologia colonial elaborou um modelo de “indigène” selvagem, coube à República francesa trazer o “selvagem” às luzes da “civilização”. Mas o paradoxal mito da assimilação cultuado pelo colonialismo também participou da criação de “estereótipos coloniais” que, infelizmente, continuam norteando a percepção dos franceses sobre o imigrante africano. São estes estereótipos, antigos e novos, que os filmes Moi et mon Blanc (Pierre Yaméogo, 2000) e Africa Paradis (Sylvestre Amoussou, 2007), por exemplo, vão explorar. Como sabemos, a auto-ironia que começa por uma forma de humor e de zombaria de si mesmo conduz, num segundo tempo, à reflexão crítica sobre uma determinada situação retratada. Percebe-se que nos dois filmes é este efeito que é procurado; espera-se do espectador uma leitura no segundo grau das duas histórias que giram em torno da questão da imigração. Por outro lado, Moi et mon Blanc e Africa Paradis têm em comum o fato de serem filmes de baixo orçamento feitos por diretores que pertencem à nova geração de cineastas africanos.
Pierre Yaméogo constrói seu filme como uma comédia dramática em que o espectador acompanha com sorriso um estudante africano (Burkina Faso) nas suas peripécias em Paris. Ao mesmo tempo em que prepara o seu doutorado, Mamadi precisa também trabalhar ilegalmente como segurança/vigia num grande parking. Depois de defender sua tese, algumas atrapalhadas precipitam sua volta para o seu país de origem. Ele desembarca em Ouagadougou, capital de Burkina Faso, com seu amigo e colega francês, Franck, que também teve que fugir precipitadamente de Paris. Em terras africanas, Franck passa a viver parte da experiência que Mamadi viveu na França. Apesar de ser tratado constantemente como um ser diferente, ele quer aprender a viver naquele país africano. No final do filme, Franck consegue abrir uma vídeolocadora com sua namorada africana. Como podemos ver, o diretor Yaméogo revisita neste filme a velha figura do estudante africano em Paris. Embora permita o retorno de seu personagem para a sua terra de origem, é para fazê-lo sentir-se tão estrangeiro quando seu amigo e companheiro francês. Nesta aventura intercultural de Mamadi e de Franck, a condição de ser estrangeiro em qualquer lugar é hábil e jocosamente posta em cena.
O filme Africa Paradis leva até suas últimas conseqüências este exercício do olhar invertido sobre a imigração e sobre o outro ao construir uma história que se parece mais com uma ficção científica de que com um drama social. O filme se abre com a imagem de um luxuoso edifício acima do qual flutua uma bandeira estrelada. Logo aparece um letreiro: “États-Unis d´Afrique – 2033”. Se a data 2033 nos remete a um futuro distante, a trama do filme se deixa, porém, ler como uma parábola do presente, pois o conteúdo narrativo é todo construído com referências sócio-políticas e culturais contemporâneas. Nos primeiros planos vemos um político negro que discursa no palanque de uma assembléia: ele propõe a integração dos imigrantes na sociedade, enquanto um outro parlamentar negro questiona este direito concedido aos estrangeiros brancos. Uma voz off descreve rapidamente a situação calamitosa em que se encontram todos os países da Europa:
“Por não ter conseguido sua unificação, a Europa se tornou uma região subdesenvolvida. Lutas selvagens opõem povos diferentes (…), epidemia, golpes de estado se tornaram coisas corriqueiras. (…). A França caiu numa total decadência. Enquanto a África, por ter conseguido sua unificação, tornou-se hiperdesenvolvida. Sendo assim, milhares de brancos sonham com um visto para ir neste paraíso negro”. (em seguida vemos uma longa fila de pessoas na frente da embaixada de “Estados unidos da África”).
A partir dali, o espectador passa a acompanhar as tribulações de um jovem casal francês (um técnico em informática e sua esposa professora) que quer sair da França e rumar para este “paraíso negro” e este novo eldorado. Primeiro os dois jovens candidatos à imigração esbarram, na embaixada, nas dificuldades habituais de obtenção do visto (o famoso sésamo abre-se de qualquer imigrante). Depois eles conseguem entrar clandestinamente no país e começam a viver as peripécias típicas da vida de imigrantes de hoje na Europa e na França em particular. Ao falar da imigração dentro do gênero do cinema da antecipação e partir de uma África imaginária, na verdade, o diretor Amoussou lança mão de uma estratégia retórica eficaz para abordar diferentemente um problema que parece já batido. O filme reconstrói a figura do imigrante africano sob os traços da imagem pouco plausível de imigrantes europeus na África. Graças à ficção, o diretor de Benin consegue inverter o lugar e o ponto de visto donde se fala da imigração; ao fazer isso ele põe em cena alguns clichês sobre a figura do imigrante africano que se tornaram tão banais que nem se questionam mais. Longe de ser uma obra revanchista ou política, o próprio diretor define seu filme como uma mensagem de tolerância, de amor e de fraternidade, mas também como um recado tanto para os países africanos (“incitar os africanos a tomar suas responsabilidades”) e para a França (contra a diabolização e criminalização do imigrante).
Quando emigrar se torna sinônimo de “queimar” a própria vida
Se alguns cineastas se usam da comédia dramática, do humor, da auto-ironia e da fantasia para frisar alguns aspectos da realidade pós-colonial que se revela na imigração, outros preferem enveredar pelo caminho do realismo para dar um tom, às vezes, mais documental à representação críticas das condições sócio-políticas de alguns países africanos que não deixam nenhuma oportunidade às suas juventudes a não ser emigrar. É o caso o diretor argelino Merzak Allouache que se interessa pelo drama dos emigrantes clandestinos argelinos em Harragas (2009). O filme parte de fatos que também se tornaram corriqueiros entre os países do Magrebe e a Europa: história de centenas de jovens, “os harragas ” que arriscam a vida na travessia do mar Mediterrâneo para chegar na Espanha e na França. Allouache opta por construir seu filme como um drama social de um realismo cru. O filme se abre com as duas menções escritas lacônicas: “Mostaganem, cidade portuária argelina. Estamos a 200 quilômetros das costas espanholas”. Estas precisões geográficas além de servirem como dados de contextualização, têm também uma importância capital no desenrolar da trama do filme. Em seguida, aparecem em plano fechado dois pés descalços suspensos no ar. Antes de descobrirmos que é o corpo do jovem Omar que acabou de se suicidar, um narrador em voz off interpela o espectador e se apresenta: “Meu nome é Rachid. Não, não são meus pés que vocês estão vendo. São os de Omar. Ele era meu melhor amigo, quase um irmão. Ele decidiu nos abandonar assim, sem deixar uma palavra. Isto foi uma tragédia para todos nós”. A cena acontece numa espécie de velho galpão escuro. Enquanto estas informações são dadas, a câmera faz um movimento vertical de baixo para cima para revelar o corpo inteiro de Omar. Ao lado dele há papéis no chão. Em seguida, vemos, em plano aberto, uma rua movimentada por onde perambulam jovens que parecem sem rumos, alguns deles vendem bugigangas entre os carros e nas calçadas cheias de transeuntes. A voz off assume novamente a narração e nos apresenta mais uma personagem (no meio dessa multidão, a câmera destaca uma pessoa que anda rápido pela rua, só é mostrada de costa): “o cara apressado aí ainda não sou eu. É Nasser, meu outro melhor amigo. Crescemos juntos no mesmo bairro (…). Omar, Nasser e eu decidimos “queimar”: imigrar, cair fora deste país, deixa tudo para trás. Como fizeram outros antes de nós e como o farão outros depois de nós”. Depois vemos Omar comprando um GPS e negociando com um atravessador. Com estas informações preliminares o espectador vai tomando conhecimento do plano de fuga de Nasser, Rachid (personagem-narrador) e de Omar (que não fará mais parte da viagem). Na verdade Omar deixou uma carta para sua irmã em que explica as razões de seu suicídio. Após três tentativas frustradas de sair do país, ele preferiu se matar. Na carta ele lamenta a situação do país e a falta de perspectiva: “se eu for embora eu morro, se eu não for embora eu morro. Sendo assim estou partindo sem sair daqui: decidi morrer. É o caminho mais simples”.
Enquanto a primeira parte do filme nos faz ver os trâmites e os preparativos secretos da grande viagem desses três jovens argelinos (agora a irmã de Omar tomou seu lugar no grupo e quer “queimar” também em homenagem ao seu irmão morto e enterrado em frente ao mar), a intriga da segunda parte do filme é toda focada nas peripécias que ritmam a travessia. Esta parte do filme é construída como um filme de ação e de aventura. O espectador se sente literalmente no meio desta pequena embarcação vivenciando as mesmas tensões e variações de sentimentos e de humor entre os harragas. Com os tipos sociais presentes (um policial desertor, lavradores da região do norte, três jovens graduados desempregados e um jovem convertido ao islamismo), Allouach consegue recriar um microcosmo social e falar indiretamente das contradições da Argélia de hoje. Só a vontade de partir une estas pessoas de origens sociais diversas. Quando o GPS pára de funcionar e a barca parte à deriva, aumenta a tensão dramática do filme: a crise se instala entre os ocupantes do barco, são dominados pela fome, pela sede, pelo medo de serem capturados; os ânimos se esquentam, velhos rancores sociais ressurgem. Dois morrem e são jogados ao mar. Mas, apesar desta confusão toda e dos desentendimentos, uma mesma convicção habita os harragas que ainda estão no barco: melhor morrer do que voltar atrás para Argélia. Como explica Rachid, o personagem-narrador: “quando a gente se sente perdido no mar, o único medo é voltar, por acaso, para Argélia. É isso que dizem todos os harragas”. Através deste filme, Allouach procura fazer entender e sentir o drama de toda uma juventude que fez da imigração a única e válida opção de sobrevivência. Além de mostrar, o filme Harragas também tenta entender o imaginário desta geração de “queimadores”, esses novos boat people que, segundo o diretor Merzak Allouach, representam o símbolo do drama que vive toda a juventude argelina dividida entre o islamismo e a solução do suicídio individual ou da fuga do país. A imagem do suicídio de Omar logo no início do filme tem, portanto, um valor simbólico: representa o desespero de toda uma geração de jovens que só olha para o mar, mas simboliza também toda a sua determinação de sair desta situação.
Todos os filmes de ficção tentam dizer a sua parcela de verdade sobre a realidade do exílio, através de narrativas fortes e eficazes que, sem procurar dissuadir os candidatos à emigração, suscitam reflexões e debates . Recentemente, os cinemas africanos registraram uma boa safra de filmes documentários entre os quais alguns estão voltados resolutamente para o tema da realidade presente das imigrações, mas também para as histórias e as memórias das imigrações africanas . Muitas vezes, os “eldorados” fantasiados e os “paraísos imaginários” acabam se revelando lugares de sofrimentos de todos os tipos e donde os imigrantes legais ou ilegais não conseguem mais escapar . É no interior desses lugares que alguns cineastas vão ao encontro de homens e mulheres que não hesitam mais em confessar, por exemplo, que se arrependem de ter saído do seu país ou mesmo de dizer que “esqueceram-se” deliberadamente de tudo da terra de origem. É como se os documentaristas retirassem, por alguns, instantes os imigrantes de sua invisibilidade. Sendo assim, os filmes documentários procuram apreender as dimensões íntimas e subjetivas das experiências da imigração dando a palavra a esses seres errantes, permitindo assim que eles mesmos contem suas histórias, suas desilusões, seus sonhos fracassados.
Compreender, mostrar, testemunhar.
Enquanto o diretor Merzak Allouach construiu seu filme a partir das atualidades, das notícias de jornais e dos depoimentos de alguns “harragas” (“queimadores”), a diretora de Burkina Faso, Eléonore Yaméogo, optou pelo documentário para falar do “mito” de Paris no imaginário da imigração africana. O filme Paris mon paradis (2011) é o resultado de um mergulho e uma imersão direta no universo dos imigrantes africanos em Paris. O documentário é todo construído como uma busca de respostas a uma inquietação que assola tanto a diretora quanto a qualquer africano. Segundo este mito, Paris seria sinônimo de sucesso garantido assim que o imigrante desembarca na cidade-eldorado. Sendo assim, por ser africana, Eléonore Yaméogo parte da sua própria experiência e de seu próprio imaginário para sondar um mito que ela mesma compartilha com todos os emigrantes africanos. Mas a cineasta precisa que o objetivo de seu documentário não é quebrar o sonho legítimo de qualquer ser humano de querer sair do seu país. Misturando os estilos da pesquisa de campo e de entrevista, ela vai à procura dos imigrantes em alguns lugares bem específicos de Paris; eles testemunham com o rosto descoberto diante da câmera. Ao longo do documentário, os sentimentos de arrependimento, de amargura e de vergonha se misturam para dar-nos uma imagem e uma visão mais do que paradoxal e contraditória da situação do imigrante africano em Paris: mesmo vivendo na margem da sociedade francesa e em condições precárias e piores do que em seus próprios países de origem, todos continuam temendo o retorno, interpretado como sinônimo de fracasso pelo próprio imigrante e pelos parentes e amigos na África. Isso é um dado revelador que diz tanto sobre a dimensão subjetiva da experiência da imigração quanto sobre a dimensão simbólica do fenômeno. A imigração não seria apenas movida por questões econômicas ou pela fuga da fome na África (como se costuma pensar). Há outra forma de fome e de carência que faz nascer o desejo de exilar-se e que tem muito a ver com o desejo da alteridade. Entre os depoimentos, o documentário intercala imagens de cartão postal de Paris. Uma jovem moça, imigrante de Burkina Faso, faz a seguinte reflexão: “o mais duro para nós é deixarmos as suas casas na África e vir dormir nas ruas em Paris. Como explicar isso?”. Para este outro imigrante que dorme na rua, a resposta parece simples: “alguns negros africanos quando se encontram aqui em Paris, acreditam que estão no paraíso, enquanto, na verdade, estão de passagem”. Sonhos, devaneios e momentos de lucidez se entrelaçam neste documentário investigativo de Eléonore Yaméogo para revelar as múltiplas facetas de um mito, mas também algumas contradições ainda inerentes à situação pós-colonial de que a imigração é apenas um dos pontos do iceberg.
Como podemos ver até aqui, tanto no registro do filme de ficção como no documentário, os cineastas africanos procuram, através de seus filmes sobre a emigração, o exílio e a imigração, fazer também uma revisão crítica da condição pós-colonial que continua mantendo a maioria dos países africanos e a França num estranho espaço geográfico imaginário. Afinal de contas, os desejos que sustentam e motivam as imigrações pós-coloniais provêm diretamente da memória coletiva e de algumas experiências culturais que continuam à existir entre o ex-colonizador e o ex-colonizado. São as contradições, os paradoxos e os mitos dessas relações pós-coloniais que vamos encontrar problematizados nos trabalhos dos próprios cineastas africanos exilados na França.
Elogio da imigração, do exílio e do nomadismo no cinema pós-colonial africano
As contradições pós-coloniais concernem também aos cineastas africanos que vivem como nômades e seres divididos entre dois continentes: vivem na França e realizam seus filmes sobre as realidades africanas. Hoje cineastas, escritores e poetas africanos que esta realidade transnacional e transcultural insistem não só sobre a dimensão humana e universal da imigração, bem como fazem o elogio do exílio e do nomadismo que impele o ser humano a empreender todos os tipos de viagem, inclusive, a viagem interior. O desencantamento político pós-independência e a falta de política de apoio endógena à atividade cinematográfica obrigaram muitos cineastas a exilarem-se na Europa. Este exílio, forçado ou voluntário, deu assim aos cinemas contemporâneos africanos sua categoria de cineastas exilados : cineastas engajados que vivem fora do continente, mas que continuam “representando suas terras de origem e seus povos” com uma aguda consciência política. Alguns voltam, às vezes do exílio, para filmar em seus respectivos países na África. Desta aventura resulta aquilo que Hamid Naficy (2001) chama de “cinema transnacional”, um cinema feito de tensões e de matérias primas decorrentes do exílio e da condição diaspórica. Os filmes sobre o exílio são híbridos e atravessados por questões subjetivas e de questionamentos políticos e culturais também. Cada cineasta africano vive diferentemente a condição do exílio e o sentimento de pertencimento a uma diáspora . Consequentemente, cada cineasta criará narrativas em que se combina um exercício de “escrita de si” e uma discussão crítica dos paradoxos do sentimento de duplo pertencimento cultural, por exemplo. Não é de estranhar que alguns deles, inclusive, façam o elogio do “exílio cultural”, da “viagem interior”, da errância e do nomadismo.
Por outro lado, o interesse dos escritores, artistas e cineastas africanos pelo tema do desenraizamento cultural foi se transformando numa reivindicação legítima do direito de pertencer ao mundo, à “literatura-mundo” e, sobretudo, ao “cinema-mundo”. Mesmo assim, perguntas do tipo “como se vive e se cria no exílio?”, “o que significa ser cineasta africano residente na Europa?”, “como e para quem filmar a África desde o exterior?” continuam perseguindo e inquietando estes artistas e cineastas africanos exilados. É no afastamento temporário ou definitivo do seu país de origem que o cineasta vai procurar objeto e motivo para a criação. Desde um país estrangeiro, ele adota uma melhor perspectiva donde ele pode retratar a realidade da imigração e seus corolários identitários com maior profundeza e complexidade. Também ele pode sondar as memórias das “migrações íntimas”.
A partir do momento em que os próprios cineastas são os primeiros concernidos pela experiência da imigração e do exílio, o discurso fílmico se impregna também de certa subjetividade. Passamos assim da representação do “imigrante” como o “outro” para um relato quase autobiográfico (ou, pelo menos, para uma narrativa em que o personagem imigrante funciona como um alterego do próprio cineasta). Aqui vou destacar duas obras recentes dos cineastas Mahamat-Saleh Haroun (do Tchad) e Balufu Bakupa-Kanyinda (da República Democrática do Congo) que me parecem bem representativas do gesto estético de transformação da experiência do exílio em fonte e tema da criação cinematográfica. Os dois cineastas vivem e definem o exílio como uma chance e não como uma condenação. Balufu vai mais longe ao recusar a assimilação das palavras “imigração” e “exílio”. A presença dos artistas, escritores e cineastas congoleses na Bélgica, precisa Balufu, “não é econômica”. Todos aqueles que foram para Europa para estudar e não para “vender seus músculos”, permanecem “voluntariamente” lá pelo conhecimento. Sendo assim eles estão em “exílio cultural ”.
No seu último filme, Juju Factory (2007), Balufu cria uma espécie de alter ego através do personagem principal Congo Kongo. É a história de um homem que recebe a incumbência de sua editora para escrever um livro sobre a vida e a história de um bairro diaspórico em pleno coração de Bruxelas. Ele recebe um adiantamento financeiro. Mas a tarefa de “narrar” este reduto da comunidade de imigrantes congoleses acaba se transformando numa crise pessoal e num “conflito criativo”. Instala-se, portanto, um desentendimento entre o escritor Kongo e seu editor (ele também exilado congolês em Bruxelas, mas socialmente bem-sucedido). Os dois representam as duas facetas da figura do exilado cultural: um é permanentemente assolado, no seu processo criativo, pela história colonial e faz das reminiscências do passado uma fonte de inspiração (o caso do personagem do escritor Kongo). Quanto ao editor, ele representa, ao contrário, aquele negro africano que tem a impressão de ter se integrado plenamente no seu novo contexto sócio-cultural a ponto de esquecer sua “negritude e africanidade”, portanto, compraz-se no seu estatuto de cidadão “belga”. A trama do filme gira em torno do embate do escritor com o passado, com a ideia e com a forma do romance, mas também com o seu editor. O filme começa por planos de sobreposições de imagens em que transparecem manchetes de jornais (que trazem notícias policiais sobre o bairro Matonge), imagens de cenas cotidianas e imagens do mar e de coqueiros de uma praia qualquer na África. Com a mixagem destas imagens heteróclitas (de atualidade e de arquivo) com uma voz-off (que declama frases num tom acusador), o narrador procura traduzir a confusão mental que começa a ferver em Congo Kongo que está à procura de uma forma e uma matéria para o livro (no início do filme o vemos acordar bruscamente de um pesadelo).
Como um jornalista, ele começa a se documentar sobre o bairro e seus problemas; recolhe depoimentos dos moradores. Enquanto vemos o escritor esboçar as primeiras frases do romance na tela do seu computador, ouvimos e vemos imigrantes africanos sendo entrevistados, falando do bairro e do ele representa para eles (um dos entrevistados, inclusive, compara Matonge à capital do Congo). Estas entrevistas dão um ar de documentário a vários segmentos do filme. Se o vaivém entre passado e presente entrava o bom andamento da escrita da crônica de Matonge, por outro lado, permite ao personagem de Congo Kongo levantar vários tipos de questionamentos históricos e políticos. Afinal de conta, parte da memória de Matonge está intrinsecamente ligada ao passado colonial e pós-colonial. O filme faz do retorno ao passado colonial o fio condutor e o desenlace da narrativa. Mesmo o dia a dia de Matonge (o bairro em questão) sendo o assunto do romance, o escritor recorre à memória e aos traumas da história colonial, contrariando assim a expectativa do seu editor. Mas, nas cenas finais quando Kongo e seu editor se voltam respectivamente para um lugar e um monumento de memória, é para indagarem e interrogarem diferentemente a história da relação entre a Bélgica e a África. Enquanto o escritor vai a um museu-cemitério da colonização (por dever de memória) para encontrar fonte de inspiração para seu romance (e também para melhor apreender o presente e as contradições desta comunidade congolesa plantada no meio de Bruxelas), o seu editor, ao contrário, vai procurar conselhos junto ao “Rei dos Belgas” (numa cena do filme o vemos numa estranha conversão-confissão) com a estátua de Leopoldo II (o “Rei dos Belgas”). Em seguida ele se dirige até uma igreja, acende uma vela, confessa-se novamente. Embora Balufu prefira definir o seu filme como a “história de um indivíduo, de uma personagem, refém de uma intriga narrativa”, não há dúvida que o tema central de Juju Factory é o problema da memória e do tipo e do processo de criação doloroso no exílio cultural. O conflito entre a editora e o escritor Congo Kongo ilustra a própria crise de Balufu que, desde o seu lugar de “exílio cultural”, precisa questionar o seu presente recorrendo à história pós-colonial. No final do filme, o romance de Congo Kongo sobre o bairro Matonge acaba sendo publicado com o título “Matonge village” (“Aldeia de Matonge”), uma alusão clara a uma aldeia africana que se constituiu no coração de uma cidade belga como conseqüência indireta da colonização. Uma maneira de dizer também que depois dos belgas terem trazido e exposto escravos africanos como “peças de museus” em zoológicos humanos, agora lhes cabe aprender a conviver com os imigrantes e exilados africanos.
Qualquer imigrante é um ser errante, suas andanças podem ser físicas e imaginárias. Todas as formas de imigração (econômica ou “íntima”) e de exílio (“cultural” ou forçado) conduzem sempre à formação de bolsões diaspóricos nos espaços urbanos que não deixam de suscitar o interesse de qualquer cineasta. Numa instalação de vídeo criado como um tríptico e intitulado Ombres (Sombras), o cineasta Mahamat-Saleh se interessou pela representação da cidade de acolhida como pretexto para problematizar a imigração e a realidade diaspórica. Para Mahamat, a imigração e a diáspora são, antes de tudo, “realidades urbanas”. Sendo assim, a melhor maneira de abordar este tema é ir buscar aquilo que há de mais universal e humano na presença visível/invisível dos grupos formados pelas ondas migratórias e instalados de forma duradoura nas cidades. A melancolia e a memória é a “força vital” destas comunidades diaspóricas urbanas, diz Mahamat. É este emaranhado de sentimentos que dá todo o seu sentido às errâncias.
“As trajetórias da diáspora africana são completamente individuais. Nas sociedades-anfitriãs, as diásporas são vivas. Escolhi trabalhar com as sombras que constituem o traço daquilo que é vivo. Queria me afastar do cinema: encontrei uma maneira de falar do assunto concebendo uma instalação mais plástica, que faz intervir o vídeo. Nas sociedades que os acolhem, os imigrantes são, ao mesmo tempo, visíveis e invisíveis. Eles se integram, trabalham, estão presentes em diversos níveis da sociedade. Mas esta visibilidade é limitada porque eles não são representados em certas áreas, em certos meios. Se o termo diáspora existe, é porque levanta um problema que, portanto, é denominado assim. Através das sombras furtivas agarradas no diversos territórios urbanos tais como Londres, Paris, Lisboa e Port au Prince, quis filmar as errâncias de silhuetas africanas que constituem de alguma forma o lado oposto do visível ” (HAROUN, 2007, p.105).
Ao tratar das questões do exílio, das migrações e da diáspora numa mesma instalação-vídeo, a intenção de Mahamat-Saleh Haroun é sublinhar que o desenraizamento, por qualquer motivo que seja, acompanha-se de uma imperiosa necessidade de enraizamento num novo espaço. Ancorar-se num novo contexto social e cultural é um desafio, mas também uma aventura instigante. Este desejo de re-enraizamento pode ser vivido de forma coletiva (em comunidades) ou individual (subjetivamente). É esta problemática que passa a predominar nos trabalhos de muitos cineastas nascidos na imigração.
Conclusão:
A experiência da imigração e as diferentes formas de exílio aparecem de forma transversal em todas as fases de formação do discurso pós-colonial dos cinemas africanos. As figuras e as imagens do imigrante africano dentro das narrativas ficcionais e de documentários se tornaram também múltiplas e complexas. Este artigo não pretendia revisar todas as facetas da representação do sujeito imigrante. A imigração sendo um fenômeno histórico, as respostas de cada filme devem ser analisadas levando em conta as estratégias e o estilo de representação e de mise-en-scène adotados na narrativa. Por outro lado, acredito que parte da revisão da modernidade dos discursos dos cinemas africanos passa pela análise dos tipos de relação que os cineastas da África negra e do Magrebe vêm travando com os temas da imigração, do exílio e do nomadismo. Alguns tratam destas questões de forma conjuntural na sua filmografia, outros o fazem de forma recorrente. Mas todos abordam estes temas com um senso de compromisso político e ideológico. A partir do momento em que esses mesmos cineastas vivem e trabalham fora da África, suas obras passaram a constituir um “cinema de exílio”.
1. Mahomed Bamba, professor na Faculdade de Comunicação e no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia –Facom/PósCom-UFBA).
2. Penso nos personagens dos filmes Making an American Citizen (de Alice Guy Blaché, 1912) e O Imigrante (de Charles Chaplin, 1917) nas suas chegadas aos EUA.
3. Em 1979 a revista de CinémAction dedicou seu oitavo número ao tema do “cinemas da emigração”.
4. Cf a história da Revista Présence Africaine por Alioune Diop em 1947 em Paris.
5. Esta imagem do imigrante, aliás, se encontra também no filme Petit à Petit de Jean Rouch (1971).
6. “Somos nós os africanos que viemos de longe”.
7. “Ontem tínhamos os mesmos ancestrais gauleses”; “Aqui também sinto-me em casa”.
8. Cf Os filmes Concerto pour un exil (1968) e À nous deux Paris (1969) de Désiré Écaré. Nestas duas obras o cineasta da Costa do Marfim põe em cena duas experiências de exílio que concernem, respectivamente, à vida de estudantes africanos em Paris e à relação de alteridade de uma mulher negra com as mulheres francesas.
9. A partir daqui, passamos a fazer uma distinção, como é comum, entre os termos de “imigração” e “emigração”, destacando o segundo como um desejo de exilar-se e, portanto, como um “desejo de alteridade”.
10. “A viagem da hiena” é o título original deste filme.
11. Nome dado às populações nativas das ex-colônias francesas.
12. Numa entrevista, o diretor Sylvestre Amoussou explica que não queria fazer um “filme político”; porém, “a ideia de Africa Paradis é apontar para os problemas inerentes às relações entre africanos e europeus, focar o racismo, a xenofobia e a intolerância, tudo isso, com um tom leve e com um olhar de jovem diretor africano que vive na França desde vinte anos”.
13.A palavra “harragas” em árabe significa “os queimadores”, referência ao fato de queimar seus documentos, queimar as fronteiras, e queimar sua própria vida durante a travessia.
14. Cf O excelente texto de Farid Zahi, “L´autre rive, l´autre rêve: les figures de l´emigré”, que analisa detalhadamente a problemática e a construção das figuras do “emigrante” nos cinemas do Magrebe. In CinemAction, nº111, 2004, p.130-134.
15.Além dos documentários de cineastas africanos, convém mencionar também nesta “safra” as obras de cineastas bi-nacionais e descendentes da segunda geração de imigrantes na França, na Bélgica, etc. Penso particularmente na obra da cineasta franco-argelina, Yamina Benguigui, que, em documentários como Mémoires d´immigrés: l´héritage maghrébin (1998) e 9-3 Mémoire d´um territoire (2008), fez do resgate da memória e da história das imigrações magrebinas na França a preocupação de seu trabalho de documentarista.
16. Cf o filme do diretor belgo-marroquino, Rhalib Jawad, El Ejido, la loi du profit (2006). Depois de um enfrentamento entre a comunidade de imigrantes africanos e a população local da cidade de El Ejido, na província agrícola de Almería no sul da Espanha (enfrentamento que resultou na morte de um marroquino), Rhalib decide fazer um documentário sobre a dura realidade dos trabalhadores agrícolas africanos que, além de serem discriminados, vivem em condições de total precariedade no sul da Espanha. O retrato é incisivo e os depoimentos e as percepções de alguns patrões e habitantes espanhóis sobre estes imigrantes são impiedosos.
17. Penso na categoria do “Exilic filmmakers” de Hamid Naficy (2001).
18. Falando de seu sentimento de pertencimento à diáspora africana na França, o cineasta de Tchad, Mahamat-Saleh Haroun diz o seguinte: “Tenho afinidade com a diáspora africana da qual faço inevitavelmente parte. Nossas experiências são comuns, compartilhamos de uma mesma memória. Porém, rapidamente, surge a questão política. No plano político, somos indivíduos em total liberdade que não aspiram necessariamente a algo de comum.” In “Dans l´exil, on emporte son histoire avec soi: entretien avec Mahamat-Saleh Haroun” in Africultures, nº 72, p. 103.
19. Cf entrevista de Balufu Bakupa-Kanyinda, “Le conflit créatif d´un artiste en exil: entretien avec Balufu Bakupa-Kanyinda” in Africultures nº68, p.32-37.
20. Vídeo-instalação apresentada no evento “Diaspora: exposition sensorielle”, organizado entre o dia 2 de outubro de 2007 e 6 de janeiro de 2008 no Musée du Quai Branly em Paris, sob a curadoria da cineasta Claire Denis que reuniu um coletivo de artistas e cineastas.
21. Cf. Entrevista de Mahamat-Saleh Haroun in “Dans l´exil, on emporte son histoire avec soi: entretien avec Mahamat-Saleh Haroun”. In Revue Africultures, nº 72, 2007, p.101-105.
Referências bibliográficas
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HAROUN, Mahamat-Saleh. “Dans l´exil, on emporte son histoire avec soi: entretien avec Mahamat-Saleh Haroun” in Africultures, nº 72, (dossier Diaspora: identité plurielle). Paris: L´Harmattan, 2007, p.101-105.
HENNEVELLE, Guy. “Cinemas de l´emigration”. In CinémAction, nº8, 1979.
LEQUERET, Elisabeth. Le cinema Africain: um continent à la recherche de son propre regard. Paris: Cahiers Du cinema (Les petits Cahiers-Scérén-CNDP), 2003
NAFICY, H. An accented cinema: exilic and diasporic filmmaking. New Jersey: Princeton University Press, 2001.
ZAHI, Farid. “L´autre rive, l´autre rêve: les figures de l´emigré”. In CinémAction, nº111. Paris: Corlet-télérama, 2004, p.130-134.
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