Durante a 8ª Mostra Audiovisual de Cambuquira (MOSCA) foi realizada uma oficina que se intitulava “Realização Audiovisual: a revolução não será televisionada”, que trazia a premissa de se discutir o cenário atual e realizar um documentário (a cobertura pode ser lida aqui). A oficina foi ministrada por Felipe Carrelli, com quem a RUA conversou. Graduado em Imagem e Som, dirigiu quatro documentários (Temporão, Cercado, Copa em Reflexo, Janela do Madeira) e um curta-metragem de ficção (Aurhora), além de atuar como montador na produtora Filmes para Bailar.
Por Lidiane Volpi *
Transcrição por Chris Ribeiro **
RUA: Mesmo que a revolução não seja televisionada, com certeza ela será filmada por centenas de pessoas. O que impede com que aquilo que é inquestionavelmente captado aos montes chegue à televisão ou outro tipo de mídia de massa?
Felipe Carrelli: Eu acho que é por causa dos interesses. A mídia não tem o papel de informar a verdade e nem de acabar com algum problema ou de mudar a realidade social. Eu vi uma vez num filme, chamado The Corporation, um cara que falava que o papel da mídia nunca foi o de acabar com a violência. O papel da mídia é você deixar as pessoas com mais medo daquilo que está acontecendo pras pessoas deixarem de fazer as coisas, então nesse caso o papel da mídia, no caso dessas manifestações, é passar o lado violento, o lado perigoso, enfim, o pior lado possível pras pessoas não se motivarem a irem atrás disso, porque quando você mostra essas filmagens que as pessoas fazem mostrando o outro lado, às vezes estimula muito as pessoas a participarem e verem que só o simples fato de você ir às ruas e colaborar pode mudar uma realidade. Então eu acho que a mídia não está a serviço da população, essa que essa é a grande questão (a grande mídia, no caso). A grande mídia não está em função da população, pois se estivesse teria uma abordagem diferente. Eles têm o interesse deles e as pessoas que estão por trás, que estão gerindo essas grandes empresas, têm apoio e patrocinadores, financiam certos políticos que tomam certas decisões que não necessariamente são as melhores pro povo. A revolução pode ser televisionada, mas primeiro é preciso que a televisão mude. Essas manifestações que tiveram agora colocaram um pouco em cheque o papel da mídia porque ou a mídia muda, ou a mídia acaba. Eu acho que ficou muito claro isso. Eles tiveram que mudar a postura e começaram a ter essa visão. O que faltou pra eles foi essa leitura ao longo do tempo de que as pessoas foram mudando, porque isso não é de hoje. As pessoas foram mudando e isso vem sendo discutido, e nem acho que agora acabou. Ainda tem muita coisa pra ser discutido. Mas, foi um momento histórico importante nesse sentido, foi um ponto clímax. A partir de agora as coisas não vão ser mais as mesmas, eu acredito, mas é aquela velha discussão: as coisas não acontecem do nada, já tem um processo há muito tempo, sempre existiu.
RUA: Recentemente, a mídia de massa passou de um estado de omissão perante as movimentações sociais, omissão já existente há tempos, para um estado de dedicação permanente. O que teria provocado essa drástica mudança?
FC: Omissão? Eu não sei se omissão é a palavra, talvez seja. Porque omissão é quando você não se manifesta sobre aquilo. Me parece que essa omissão é mais uma postura política, mesmo. Porque omissão parece que eles sabem o que tava acontecendo, mas não tomaram uma atitude política, mas eu acho que o fato deles se omitirem é uma atitude política, sim. E eu acho que mudou por causa disso, porque eles fizeram a leitura, mesmo que tardia, que as coisas tão mudando e que as pessoas não precisam mais dessa mídia pra se comunicarem, pra serem ouvidas e nem pra serem representadas. Elas podem ter várias outras formas de representatividade, que já existiam antes, só que agora você consegue divulgar isso. Esses pequenos grupos já atuavam há muito tempo, talvez agora com essa questão da mídia social, ela atinja pessoas que não se interessavam tanto pelo assunto ou que se sentiam meio por fora. Uma coisa que eu vejo é que tá na moda isso também. Eu acho que tá na moda pra caramba você ta ali na manifestação, levantando uma bandeira. Eu acho que é positivo que as pessoas estão saindo nas ruas e acordando, como todo mundo diz, mas eu fico com medo porque a mídia agora, mesmo demorando, ela fez essa leitura. Ela sacou que as pessoas estavam saindo na rua, estavam se mobilizando e agora eles tão querendo fazer parte disso, e eu não sei se isso necessariamente vai ser uma coisa positiva. Eu acho que eles tão tentando se apropriar a todo o momento porque eles não são burros, eles são muito inteligentes. É lógico que eles entenderam que essas manifestações tiveram um impacto e que as pessoas vão ter um poder que antes elas achavam que não tinham ou que elas achavam que estavam dormindo, realmente. Só que eu não acho que eles vão agora, de uma hora pra outra, sair de um “ah, então agora vamos ser do povo”. Eu não acho que é assim. Eles vão continuar tendo a postura deles, como eles sempre tiveram, a mesma opinião ideológica, só que agora eles vão ser mais sutis, vão ser mais na surdina. Por isso que eu acho que tem que tomar cuidado, porque agora eles tão envolvidos nessas redes sociais, eles tão fazendo parte. Às vezes você tá ali compartilhando uma coisa que ta colaborando com esse status quo, que eu acho que é o que a gente quer quebrar, no final das coisas, é tudo isso. Eu acho que as pessoas tão cansadas desse status quo e dessas pessoas que formam opiniões e que são sempre as mesmas porque elas formam opiniões que não condizem mais com nossa realidade, então eu acho que a mídia saiu dessa parte de omissão. Qual que era a pergunta mesmo? (entrevistador repete a pergunta) Ah, então. Como eu disse, eu acho que realmente foi o medo de perder a credibilidade, que acho que é a palavra que a grande mídia sempre fica batendo: credibilidade, moral, não sei o quê… Daí eles perderam isso. Só que essa… Como você põe? Atividade permanente? Dedicação permanente. Eu acho que eles não tão se dedicando pelo povo. Eu acho que eles tão se dedicando pra eles mesmos. Isso a gente só vai ver no futuro, mas não pode achar que a grande mídia é amiguinha, porque não é. A gente sabe quem tá no poder e não é de um dia pro outro que alguém que ta ali estagnado, que tem uma bagagem tão grande de repressão contra o povo que vai acordar num dia e dizer “nossa, realmente. Eu estava errado e todos os outros estão certos”. A gente sabe que não é assim, né. Eu acho que a gente tem que ficar mais ligado ainda porque antes a gente tinha um inimigo que era fácil de iluminar, agora ele tá infiltrado nesses movimentos, assim.
RUA: O Youtube e as redes sociais têm sido um meio de evasão eficiente para os conteúdos audiovisuais produzidos de maneira independente por centenas de cidadãos comuns? É necessária a articulação de coletivos organizados de jornalismo e mídia independente?
FC: Eu acho que sim, que tem ajudado muito, é evidente isso. Essa questão dos coletivos eu acho massa pra caramba, inclusive tá se criando esse conceito. A gente trabalhava numa casa de cultura onde tinha um pessoal que trabalha, que é a Pública. É um pessoal de jornalismo que faz vários trabalhos de mídia alternativa, mesmo, muito legal. Eles tão sempre participando da Belo Monte, de coisas que acontecem no lá no Pará também, da Copa do mundo, eles também tem uma pista muito forte, de corrupção e tal, e mesmo nessas manifestações teve uma galera do Fora do Eixo, teve vários grupos que agora tão ganhando força. Eu acho legal isso porque você começa a ter também o que falta às vezes na internet, que eu vejo, que é fonte, sabe. Você não sabe quem que tá fazendo aquilo, então não sei se dá pra confiar tanto. Porque você também tem como saber “quem que é esse cara”, sabe. E será que ele é, como apareceu na Veja, “a voz do povo”, que é tipo um cara que trabalha na Globo, e que não representa ninguém. Não sei também. Eu fico com o pé atrás também, porque tem a maior potência, todo mundo pode se expressar, mas todo mundo pode se expressar de qualquer forma. Eu acho legal que quando começam a nascer esses grupos, você conhece o trampo deles, você sabe quem são essas pessoas, de onde eles são, começa a seguir blogs e sabe que pode meio que confiar e sabe que se alguém pisar na bola, você sabe que pode, tipo, “não vou mais seguir esse blog”. Eu acho que o indivíduo é muito importante nesse momento, mas a partir do momento que você começa a formar opinião, precisa ser coeso com aquilo que você fala e faz, senão fica muito aleatório, qualquer um pode postar qualquer coisa, e acontece que nem essa greve geral, que é um cara totalmente despolitizado chamando pra uma greve. Acaba sendo meio irresponsável nesse sentido. E até pode parecer um discurso meio conservador, porque eu já muito isso de várias pessoas da grande mídia falando, mas eu acho que é real, também. Eu acho que têm coisas que a gente precisa tomar cuidado, porque numa dessas, nasce um loucão, sei lá.
RUA: Como o formato documental se relaciona com a cobertura das mobilizações dos movimentos sociais?
FC: Eu acho que ele é a estética do ao vivo, do momento, do acaso, você saber enxergar. É muito difícil, né. Porque você tá ali no momento e tem que sacar as coisas que tão acontecendo, e tão acontecendo várias e precisa sacar a que é importante naquele momento, e é difícil. Você tem que ter o maior tato, e o documentário é essa estética, porque você não controla a situação, você tem meio que sacar o que tá acontecendo. Por isso que eu acho que é massa. Mesmo pros jornalistas e tal, eu assisti bastante coisa de documentário, principalmente esses que são mais sobre o olhar. O que falta nesses tipos de manifestações é o olhar diferente. Às vezes a gente acaba tendo uma visão de uma maneira meio radical… Eu precisava pensar mais sobre isso… O documentário é a forma mais rápida, mais honesta, mais sincera de fazer isso. É tudo que você tá sentido, seu ponto de vista.
RUA: O estudante de Audiovisual teria um compromisso ético com a difusão livre e alternativa dos movimentos e denúncias sociais?
FC: Quanto a questão de difusão de imagens, sim. Quanto a participação dos estudantes, sim também, mas essa pergunta é ainda mais importante. Eu não sei como é hoje na universidade, mas na época que eu entrei na universidade, tinham pouquíssimas pessoas que se importavam com isso, pelo menos na UFSCar, tanto que vários movimentos aconteciam, reuniões, manifestações, e poucas pessoas iam e faziam essa cobertura. Nesse sentido, cada um faz o que quer, claro, mas eu acho que a gente tem esse poder audiovisual. Então eu acho que é uma postura política também participar disso utilizando-se das suas técnicas. A gente, mais que as outras pessoas, têm essa capacidade e os equipamentos pra fazerem essas informações chegarem até o público geral, porque não adianta nada a gente ficar reclamando das grandes mídias e não fazer a nossa parte, né, porque se a gente tem essa grande responsabilidade, esse grande equipamento, esse saber, principalmente se você tá numa universidade pública, você tem que devolver pro público isso. Mas essa é minha opinião, não sei se é uma verdade, porque tem gente que tá na universidade e tá seguindo os seus caminhos. Assim como a gente cobra os médicos pra fazer estágio em lugares públicos depois que eles se formam, eu acho que estudante de audiovisual também tem que ter uma troca com a universidade pública. Tem que ter essa volta pro público, e nada melhor do que nesse momento pra isso. Eu acho que essa é a melhor troca que a gente pode fazer. Fazer um filme, colaborar com a cultura, gravar algo etnográfico, é importante, mas gravar essas manifestações também é. É uma forma mais ativa de participar das coisas.
* Lidiane Volpi é estudante de Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos e editora da RUA.
** Chris Ribeiro é estudante de Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos e editora da RUA.