Argumento #2 – Internet e mistificação da comunicação alternativa

Os processos de mobilização atualmente em curso no Brasil estão fazendo a juventude não só experimentar a prática política como também sentir a necessidade de outras formas de comunicação. Naturalmente, correm para onde estão mais habituados: a internet. Mas esse hábito acaba por vezes por se transformar em zona de conforto. É preciso romper certos limites. Diante de um mundo cada vez mais conectado, é preciso repensar constantemente nossas práticas comunicativas.

Por Romerito Pontes *

 

Festas juninas

Nunca antes, pelo menos para essa nossa geração, nossas festas juninas foram tão calorosas. As fogueiras eram muitas e estavam por todas as partes: espantalhos, catracas de papel, pneus fechando rodovias, ônibus, nas portas da ALERJ e do Itamaraty. Os rojões estouraram por todos os cantos, principalmente nas praças públicas e nas grandes avenidas. Muitas vezes durante o dia ainda, e bem próximo às pessoas. Mas a analogia não é minha. Pode-se achá-la em vários veículos de comunicação alternativa na rede, em alguns virais e cartazes, inclusive. É uma comparação irreverente e tipicamente nossa, mas revela o espanto e a surpresa que todo esse gigantesco processo de mobilização representa para nossa juventude, ocupando suas mentes inquietas e criativas com esse tipo de produção. A verdade é que nunca vimos algo parecido. O mais próximo, o Fora Collor, sempre pertenceu à última geração.

Mas ainda assim, temos um diferencial importante: somos a geração Z. Somos nativos digitais, o que nos diferencia profundamente dos que protagonizaram o último grande processo político da juventude brasileira.  Mas isso não nos dá muita segurança – pelo contrário – nos traz mais dúvidas. Isso porque não estamos ainda familiarizados com o uso da internet para fins políticos. Vale lembrar que as eleições municipais de 2012 foram as primeiras do país a regulamentarem e a permitirem o uso oficial da internet como plataforma de campanha. Como afirmou Henry Jenkins[1], embora tenhamos superado a fase de utilização anárquica e volumosa, típica dos primeiros anos de internet, avançamos apenas para uma utilização mais sistemática. A cultura da convergência é um processo em curso e ainda fazemos um uso muito lúdico de tudo isso. Nada muito sério. Vide como a rede tem sido usada pelo humor.

A verdade é que ainda não se fez no mundo experiências suficientes que nos oriente a como utilizar politicamente as redes, embora tenhamos casos notórios como o da utilização das redes sociais nos processos de luta do oriente médio ou na campanha de Obama. É tudo ainda muito virtual, não no sentido de que não é real, mas no sentido que nos coloca Levy[2]: no sentido de que as coisas ainda estão no campo das potencialidades, coisas que estão por vir a ser. Ora, muito se falou nas potencialidades emancipadoras da internet, mas na verdade, o que vimos nos últimos anos, foi a ascensão do fenômeno dos memes – unidades mínimas de memória (o meme está para memória assim como o gene está para o código genético, daí seu nome)[3].

 

O canto da sereia

Não quero com isso cair num discurso derrotista, onde não há esperanças. Mas também não podemos fechar os olhos para o fato de que existe algo de preocupante na supervalorização desses meios. Para ser mais direto, com a quase mecânica associação entre internet e mídia alternativa. Ora, não precisamos ir longe para notar essa ideia de onipotência da rede. Basta lembrar que há algumas semanas havia uma convocação de greve geral marcada pelo Facebook, com milhões de adesões e que, obviamente, não aconteceu. As redes ajudam muito, mas ainda não tem esse poder (se é que um dia vão ter). O raciocínio é simples: as redes podem, sim, desempenhar um papel político fundamental, mas desconfio que não seja esse que querem dizer que é.

Basta olhar um pouquinho para a história. Durante todo o século vinte, principalmente na sua primeira metade – quando se viu a ascensão das ditaduras mais perversas da história moderna, tanto à esquerda quanto à direita – realizaram-se tentativas e mais tentativas de se moldar a opinião pública, disputas ideológicas ferrenhas, manipulações etc. Milhares de páginas sobre relações públicas, psicologia social, propaganda, teoria da comunicação e muitos outros assuntos foram publicadas. Vejamos o quanto foi complexo o processo, protagonizado por Edward Bernays, para convencer a opinião pública de que mulheres poderiam fumar[4]. E se uma coisa relativamente simples assim exigiu tanta genialidade, 140 caracteres e fotos com filtros lomográficos dificilmente bastarão para “disputar as consciências”, como pretendem alguns. Essa é uma ilusão que tentam enfiar nas cabeças de nossa geração.

Todavia, hoje é corrente um discurso permeado de uma fé quase cega no poder de transformação das redes. Parecem ignorar duas coisas, a primeira é que a internet no Brasil atinge apenas cerca de 40% das residências[5] (com grande variação entre as regiões). Sem considerar que redes sociais, embora relativamente livres para publicações, ainda são plataformas corporativas e que, portanto, podem, sob pressão do Estado, limitar conteúdo[6]. E a segunda é que ignoram todos os debates já realizados na história da comunicação, em especial os da comunicação brasileira na década de 80, quando o foco era todo voltado para participação social e política e em como os meios de comunicação alternativos poderiam contribuir para isso – período em que, obviamente, não havia internet. Não se trata de desprezá-la, mas essa crença incontestável pode se transformar em um canto da sereia que pode nos arrastar para um beco do qual levaremos mais uns bons anos para superar.

 

Contra espetáculo

Mas a tendência à supervalorização da internet não é o único ponto que devemos nos atentar. Se a ideia é produzir informação alternativa, em contraponto à mídia hegemônica, devemos fazê-lo em forma e em conteúdo. Afinal midialivrismo não é, nem deve ser, revanchismo. Já possui mais de 55 mil compartilhamentos o vídeo do policial carioca que atira sua arma no fogo e passa para o lado dos manifestantes. Embora interessante, a construção do vídeo é claramente sensacionalista, terminando, ao som de Que país é esse?, com o chamado um tanto quanto populista: “Policiais do Brasil:  o futuro está nas suas mãos”. Será que é esse o papel que a mídia alternativa deve cumprir? Será que um Datena que defenda os manifestantes é algo tão libertador?

O fato é que a alienação também está na forma, e por isso tenho minhas dúvidas. A mídia alternativa, a mídia independente e a popular devem cumprir um papel emancipador. Não queremos sair de uma cela para sermos aprisionados em outra, do outro lado do corredor. E isso necessariamente passa pela forma e pelo conteúdo. Temos que nos perguntar: e depois de subir todas as fotos de repressão policial, todos os vídeos das passeatas, o que temos com isso? Não basta combater o sensacionalismo e o espetáculo com mais…. espetáculo! É uma forma de comunicação tão mistificadora quanto.

Claro que não se trata de uma generalização, mas sim de uma tendência. Não quer dizer que não seja reversível. Muito menos que não haja quem esteja fazendo um ótimo trabalho. Existem, por exemplo, fotógrafos profissionais e de alta qualidade, liberando seus trabalhos gratuitamente na rede; existem as transmissões ao vivo de assembleias, reuniões e das próprias passeatas. Mas não podemos deixar nos enganar com a cereja de um bolo que pode estar envenenado.

 

O papel da comunicação alternativa diante disso

Temos então que pensar qual o lugar das comunicações alternativas, independentes e populares diante de todo esse processo – tarefa que cabe, principalmente, aos protagonistas que de fato estão interessados em uma comunicação diferente. O primeiro passo deve ser, então, desmistificar todo esse fetichismo que se construiu entorno da internet. Devemos olhar para trás e ver que em nosso país já existem pelo menos 30 anos de acúmulo teórico e prático sobre mídia alternativa – o que necessariamente nos faz transcender o âmbito virtual. Que comunicação também se faz com revistas, jornais, panfletos, cartilhas, cartazes, rádios comunitárias, jornais murais, cineclubes e muitas outras formas muitas vezes mais eficientes dependendo do público que se quer atingir.

Outra coisa que devemos parar para pensar é sobre o que está se produzindo. A internet proporciona uma válvula de escape para o anseio de participação e de produção latente na juventude. Mas temos que ter critério. Não podemos apenas registrar cenas que depois serão utilizadas pela Globo como “imagens de um cinegrafista amador” – geralmente as de quebra-quebra, claro. Muito menos produzir sensacionalismo para combater sensacionalismo. Temos sim é que ter uma perspectiva em longo prazo, um trabalho mais sistemático, para que seja mais eficiente.

As formas de comunicação alternativa são imprescindíveis para otimizar os processos de mobilização. Mas é preciso ir além. A internet é um campo muito vasto e em constante transformação. Ainda temos muito que aprender para fazer um uso coerente dela se queremos uma mídia alternativa consequente. Exemplos existem, temos que reconhecê-los. Mas não podemos deixar-nos encantar. Mais de um século de experiência já provou que continua sendo, ainda, a práxis crítica a única forma eficaz de emancipação da consciência. E é disso que nós, interessados em uma outra comunicação, nunca devemos nos separar.

 

* Romerito Pontes é graduando em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora. 


[1] JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Aleph, 2008.

[2] LEVY, Pierre. O que é o virtual?. Ed. 34, 1996.

[3] O nome foi cunhado pelo evolucionista britânico Richard Dawkins, em seu livro O gene egoísta.

[4] Edward Bernays, pai das relações públicas e sobrinho de Freud, teve que se apoiar em toda a teoria de seu tio para consolidar o cigarro como algo aceitável pelas mulheres. Todo esse processo está registrado no documentário The century of the self, disponível no YouTube.

[5] A pesquisa foi realizada pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias de Informação e Comunicação (CETIC) e publicada pela Agência Brasil.

[6] Luis Eduardo Tavares publicou uma interessante matéria sobre o tema no Le Monde Diplomatique Brasil, na edição de julho de 2013.

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