Entrevista com Bruce Labruce

Por uma Estética Pornô

Integrando influências do punk, da arte pop e da cultura camp, o cineasta Bruce Labruce prova que, após sucessivas transgressões em sua trajetória no cinema pornô, a ternura é o último tabu a ser quebrado.


Bruce Labruce

Por Plynio Nava*

Cineasta, escritor, fotógrafo e diretor de uma filmografia pornográfica invejável, Bryan Bruce, mais conhecido como Bruce Labruce, aproximou-se do cinema através dos pais, aficionados pelos clássicos de Hollywood.  Mas suas primeiras marcas autorais – que atravessariam toda a sua trajetória artística – só seriam forjadas mais tarde, ao ingressar no movimento punk. Deste, surgiram produções como os zine J.D’s, G.B Jones, e, finalmente, sua estreia no cinema, que lhe daria projeção internacional, além de uma ambígua relação com a crítica especializada.

Embora suas primeiras experiências com o cinema mantivessem uma coerência com o desenvolvimento posterior de uma unidade estética própria, foi somente através da pornografia que Bruce Labruce foi alçado à condição de autor e seu cinema celebrado em publicações respeitadas como Cahiers Du Cinéma e artigos do The New York Times e Guardian, ao status de obra prima. Niilista ao extremo, potencialmente cáustico e eventualmente contraditório, Labruce transita entre a estrutura da indústria pornô para sabotá-la em seu núcleo mais sensível, depositando em sua narrativa o caráter revolucionário do sexo, povoando a tela do cinema com líderes da extrema esquerda, neo-nazistas homossexuais, ingênuas massas de manobra políticas, zumbis e mortos-vivos, que funcionam perfeitamente como uma espécie de vírus, que aos poucos corrói as engrenagens que movimentam e dão força ao metamórfico e debilitado mercado audiovisual do sexo.

Banho de Sangue em L.A. Zombie

Polêmico, Labruce carrega seus desafetos como prêmios, suas críticas negativas como bons resultados e, embora se possa esperar de sua atitude transgressora uma recíproca contrária que só reitere a insensatez de opiniões repetidamente preconceituosas, é certo que nem artistas como Boy George ( que já ironizou seus filmes), Kevin Kostner ( que teve acessos de raiva após deixar uma sala de cinema onde se exibia um filme de Labruce) ou Alexander Korda ( que chegou a processar o cineasta pelo uso da célebre fotografia do guerrilheiro Che Guevara em um de seus filmes) corromperam o caráter revolucionário de seu cinema: ao contrário, trouxeram à tona todo o potencial criativo do cineasta, a quem os críticos mais entusiastas – e nem por isso menos cautelosos – batizaram de “ Brecht Pornográfico”, consideração que somente reafirma a função deste gênero cinematográfico como lócus ideal para expressão de sua estética.

Nesta entrevista, Bruce Labruce conversa comigo sobre questões como autoria, vanguarda, tecnologias digitais na pornografia e realismo cinematográfico.

Plynio Nava – Alguns de seus filmes exibem cenas que normalmente se afastam dos padrões de identificação do espectador de filme pornô, ao expô-los a situações visualmente desagradáveis, como em Hustler White ( onde um cliente é penetrado pela perna mecânica de um michê),  Otto ( que exibe cenas de ingestão de vísceras animais) e L.A Zombie ( no filme, corpos ensanguentados são penetrados em vias “ alternativas” pelo pênis putrefato de um zumbi). O fato é que, ainda assim, você continua a trabalhar com as convenções da pornografia, produzindo nos espectadores uma ambígua relação de excitação e repulsa. Fale um pouco sobre esta relação aparentemente contraditória em seus filmes.

Bruce Labruce – Eu sempre tive uma reação ambivalente com a pornografia em geral. Às vezes, ela me excita, outras vezes, me enoja. Às vezes me motiva, em outras, me faz sentir desconfortável. Mas o principal objetivo da pornografia é permitir às pessoas realizarem suas fantasias sexuais – conscientes ou não – assistindo a representações de sexo que podem ser politicamente incorretas, incômodas ou mesmo ofensivas ( por exemplo, a maioria das pessoas concorda que o sexo coercivo ou não-consensual é repugnante e imoral, mas as fantasias de estupro estão presentes na grande maioria dos filmes pornô comerciais). Os meus filmes, que eu considero como um hibridismo de pornografia e arte, lidam com imagens sexuais que são similarmente incômodas e “ofensivas”. Para mim, estas imagens podem ser interpretadas como uma projeção ou extrapolação de minha ambivalência geral com relação à pornografia, ou como uma crítica aos tipos extremos de imagens sexuais pelas quais as pessoas são normalmente estimuladas no filme pornô. O que mais me espanta nessa discussão toda é que não importa o quão longe eu ultrapasse os limites da representação, nem quantos tabus eu quebre, há sempre alguém que me diz que ainda se excita sexualmente com meus filmes.

Em L.A Zombie o zumbie é interpretado pelo ator pornô François Sagat

Plynio – Nos últimos anos, algumas discussões sobre o realismo cinematográfico vem reaparecendo através de conceitos como O Retorno do Real ( Hal Foster), Ritos do Realismo ( Ivone Margulies) e Realismo Corpóreo ( Lucia Nagib). Algumas destas discussões estão centralizadas no corpo e suas abordagens pelo cinema contemporâneo. Em sua opinião, qual a importância destes debates sobre o realismo no filme pornográfico?

Labruce – Eu não sigo religiosamente filmes contemporâneos ou teorias do cinema. Propositalmente, eu abandonei a academia nos anos 80 por causa da tendência semiótica ao ofuscamento intelectual e sofístico. Decidi me tornar um artista/cineasta e trabalhar mais intuitivamente. Eu nunca fui um grande interessado em teoria pós-estruturalista francesa (apesar de ter lido tudo de Lacan que foi traduzido no inglês para a conclusão meu curso de pós-graduação em “ Psicanálise e Feminismo”, por isso não me sinto interessado por Hal Foster. Eu adoro Chantal Akerman, e me interesso por suas idéias sobre o assunto).

Plynio – Alguns padrões do cinema pornô têm sido revisitados por uma sucessão de cineastas atualmente. Entretanto, estas ligações com a estética pornográfica são muito frágeis, transitórias ou pouco relevantes. Você acha que é possível discutir conceitos como cinema de autor e vanguarda na pornografia contemporânea?

Labruce – Claro! Não há dúvida que exista uma profunda conexão entre a vanguarda gay e a pornografia, por exemplo. Vários dos cineastas gays de vanguarda por quem sou influenciado – Jean Genet, Kenneth Anger, Jack Smith, Andy Warhol, Paul Morrisey, Mike  Kuchar, Curt McDowell, John Waters, etc –  foram fortemente influenciados pela pornografia e fizeram filmes considerados pornográficos, fazendo referência à pornografia ou a suas convenções, além de reconhecerem a forte conexão entre a representação sexual extrema e sua expressão vanguardista. Vários dos grandes cineastas pornôs da década de 70, por quem também me sinto influenciado, – Peter Berlin, Fred Halsted, Wakefield Poole, Peter de Rome, Jack Deveau,  entre outros – foram claramente influenciados pelas vanguardas de cinema e arte e fizeram trabalhos que dialogavam tanto com a arte, quanto com as convenções do filme pornô.

Em Skin Flick, Labruce ataca frontalmente o arquétipo dos skinheads

Plynio – Fale-me sobre como estes cineastas – particularmente Kenneth Anger e Andy Warhol – influenciaram suas produções.

Labruce – O trabalho de Anger interessa a mim pelo atrelamento das imagens rituais e sua confluência dos tropos históricos e culturais clássicos à iconografia contemporânea, à música, além de sua inebriante mescla de vanguardismo e cultura pop. Jurgen Anger, personagem do filme Hustler White, foi concebido parcialmente como um tributo a Kenneth Anger ( mesmo que ele despreze profundamente o filme). E quanto ao Warhol, sempre fui influenciado por seu trabalho, particularmente seu trabalho no cinema e seu modelo de produção de vanguarda na Factory, sua reconfiguração do star system hollywoodiano em um depravado contexto homossexual novaiorquino, seu distanciamento emocional, seu sarcasmo, sua natureza fofoqueira e sua marcada afetação.

Plynio – O aparecimento de novas tecnologias no cinema trouxe consigo outras formas de percepção das narrativas audiovisuais, oferecendo aos espectadores ilusões imersivas. Como você avalia o uso destas novas tecnologias no cinema contemporâneo ( particularmente na pornografia)? A experiência da Pina, de Win Wenders, por exemplo, parece confirmar um uso criativo destas novas tecnologias da sensibilidade.

Labruce – Eu não tenho nada contra a tecnologia, mas acho que há uma tendência para esta nova fixação pela fetichização dos novos aparatos da tecnologia e dos avanços tecnológicos para produzirem trabalhos que privilegiem considerações formais em detrimento dos conteúdos, para despolitizarem a arte, tenderem à mercantilização, enfim.  Acabam-se reduzindo a novas parafernalhas e engenhocas.

*Plynio Nava é estudante de Comunicação Social na Universidade Federal do Maranhão, pesquisador de cultura e cinema . Apresenta o programa Sampler, na Rádio Universidade FM.

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