Wanderson Lima*
Idiots and Angels (2008) representa, na obra do animador americano Bill Plympton, um salto do sarcasmo ao “american way of life” a uma paragem nova, uma abertura a questões da natureza humana que resvalam em assuntos de natureza religiosa e metafísica, como a graça e a presença do mal. Concebido fora dos grandes estúdios e num esquema de produção quase familiar, Idiots and angels se alinha ao filão do desenho adulto, contrastando o traço “primitivo” a uma atmosfera densa e ricamente alegórica. A premissa do filme é de uma simplicidade exemplar: narra-se a história de um brutamonte mal-humorado, metido em negócios ilícitos, cuja vida prosaica se desenrola entre a cama e um bar decadente; num belo dia, porém, o insólito irrompe: nasce-lhe um par de asas. Não bastasse o absurdo de tal fenômeno, acrescente-se o fato de que estas asas literalmente obrigam o carrancudo a ser bom, a fazer o bem.
Resumindo assim o enredo, pode-se dar a impressão a quem não assistiu ao filme que se trata de uma banal história de redenção, com um fundo moralista. De fato, trata-se de uma história de redenção, mas a sinuosa trajetória rumo à libertação do protagonista passa ao longe de qualquer facilidade. Trata-se, na verdade, de uma narrativa alegórica eivada de símbolos e com uma atmosfera situada entre o expressionismo e o surrealismo. O nó do enredo é a luta agônica do protagonista entre sua natureza intrinsecamente má e a graça recebida (o par de asas) que o forceja a “renascer” um outro homem; há porém um pano de fundo ao norte narrativo que constitui uma deliciosa e ácida sátira social. O núcleo mais persistente dessa sátira é o bar freqüentado pelo homem mal-humorado. Um verdadeiro microcosmo habitado por tipos “vencidos pela vida”. Há a rameira envelhecida e solitária; a bela sonhadora que caiu nas mãos de um atende no bar insensível; e o ganancioso e sem escrúpulos, dono do bar e cônjuge da sonhadora. Fora deste ambiente, há o médico sem ética que sonha retirar as asas do homem e transplantá-las em si, para obter os aplausos da comunidade médica e o amor de sua secretária. Aqui neste reduzido mundo, Plympton reconstrói a imagem das baixezas e dos sonhos redentores de uma humanidade que, aparentemente, merece menos nosso asco que nossa piedade.
Impressiona como Bill Plympton constrói sua alegoria com total liberdade poética, sem amolgar seu material a nenhum ditame ideológico, embora dialogue de perto com a doutrina da graça (Santo Agostinho) e, visualmente, com a escola expressionista e, até certo ponto, a surrealista. Essa liberdade exorciza qualquer previsibilidade por parte do interlocutor: a história permanece aberta e misteriosa o tempo todo. Mesmo após seu final, não conseguimos discernir a fronteira do onírico com o real. Plympton nos conduz, com incomum poder de sedução, a oscilarmos, hesitantes e estupefatos, entre o mal-estar causado pelas situações insólitas e inexplicáveis, diria kafkianas, e o humor corrosivo que abranda mas felizmente não dilui a visceralidade das imagens que invadem nossa retina. É tentador erguer Idiots and Angels àquele panteão, tão acrescido nesta última década, das obras-primas do cinema de animação.
Dois detalhes devem ser acrescentados. Em primeiro lugar, que o filme prescinde de diálogo e, mesmo assim, nada perde em clareza e dinamicidade, graças ao traço despojado mas exato de Plympton; em segundo lugar, cabe destacar a música, rigorosamente convergente com o enredo, pensada, sem dúvida, para agregar novos dados à compreensão da psique transtornada dos personagens.
*Wanderson Lima é escritor e professor de literatura da UESPI. Co-edita a revista dEsEnrEdoS [http://www.desenredos.com.br/] e mantém o blog O fazedor [http://blogdowandersonlima.blogspot.com/], onde escreve sobre cinema e literatura